Cresce notadamente o número de países que têm adotado legislações que permitem o aborto ou a antecipação do parto quando existe o diagnóstico seguro e irrefutável de anomalia fetal grave.1 Documento recente publicado pelas Nações Unidas indica que entre 195 países avaliados em 2009 quase a metade contava com leis que permitiam a interrupção da gestação em caso de anomalia fetal.2 Alguns desses países especificam categorias de comprometimento fetal que diferenciam as condições incompatíveis com a vida extrauterina daquelas que limitam sobremaneira a vida independente após o nascimento. Outros preferem a organização de listas de danos fetais específicos, compatíveis com a possibilidade de interromper a gestação.1
Contudo, impressiona a divergência das legislações quando analisadas pela situação de desenvolvimento social e econômico desses países. Enquanto que 84% das nações desenvolvidas adotam leis que respeitam a decisão de interromper a gestação frente à malformação fetal, apenas 34% dos países em desenvolvimento permitem sua prática. Na América do Sul, a situação se mostra mais adversa para as mulheres: somente 17% dos países contam com legislações que descriminalizam a interrupção da gestação nessas situações. Trata‐se de uma singularidade, até mesmo entre os países pobres e em desenvolvimento, na medida em que esse valor é significativamente inferior à média de 32% verificada nos países africanos.2
Dentro da perspectiva jurídica, cabe reconhecer que até o século XIX a questão do aborto não tinha a mesma importância legal ou criminal dos dias de hoje. Acredita‐se que as restrições legais surgiram na Europa, com a pretensão de conter a mortalidade materna decorrente do aborto, predominantemente inseguro e de elevado risco naquela época. Em consequência, as leis sobre o aborto adotadas nesses países foram transferidas para suas colônias que, em grande parte, as mantiveram sem mudanças expressivas após sua independência.3
Mesmo assim, admite‐se que as transformações sociais e as mudanças na qualidade da atenção ao aborto foram fundamentais para que muitos países adotassem novos paradigmas sobre a interrupção da gestação nos últimos 50 anos.3 A tendência de reformulação das leis restritivas, particularmente nos países desenvolvidos, passou a permitir o aborto voluntário ou estabeleceu limites mais amplos em que ele pode ser feito. Caminhou‐se para um quase consenso entre os países, desenvolvidos ou não, de que o aborto é justificável e deve ser legalmente permitido quando necessário para evitar a morte da gestante.2
Por outro lado, nesse processo de revisão das leis em relação ao aborto, diversas condições impactantes para a vida das mulheres receberam tratamento diferente do risco de morte. Assim, enquanto que 84% dos países desenvolvidos permitem interromper a gestação decorrente de estupro ou incesto, apenas 37% dos países em desenvolvimento o fazem. Quando se analisa a permissão para o aborto quando há fortes razões sociais ou econômicas, 80% dos países desenvolvidos são favoráveis à decisão da mulher, em contraste com 19% dos países em desenvolvimento.2
Até meados do século XX, a questão das anomalias fetais graves como motivo para permissão do aborto pouco poderia ser colocada em prática. As limitações do diagnóstico pré‐natal não permitam a inclusão das malformações fetais como excludentes de crime nos códigos penais. Quando incluídas, era excepcional que a mulher conseguisse interromper a gestação pela falta ou imprecisão do diagnóstico. A mudança desse panorama somente ocorreria com a inclusão de novas tecnologias na atenção à saúde reprodutiva com métodos de detecção precoce das anomalias fetais, particularmente a ultrassonografia obstétrica.4
Mesmo com essas mudanças, a legislação penal brasileira não considera e não prevê a malformação fetal como condição para a interrupção da gestação, independentemente de sua natureza, gravidade ou taxa de letalidade. Permanece a necessidade de concessão de alvará judicial para descaracterizar o crime de aborto e permitir o atendimento adequado da gestante pelo sistema público ou privado de saúde. Além disso, a autorização judicial muitas vezes permite maior aceitação social do aborto e a minimização do sentimento de culpa imposto pelo julgamento moral ou religioso dessa decisão.5
Enquanto que no Brasil ainda é reservado ao Judiciário o poder de conceder ou não a autorização para interromper a gestação que cursa com malformação fetal, na maioria dos países desenvolvidos são as mulheres que vivenciam esse drama que têm autonomia para decidir. Em países como Suíça e Estados Unidos a maioria das mulheres opta pela interrupção da gestação frente o diagnóstico de anomalia cromossômica importante. O mesmo ocorre na identificação de desordens metabólicas fetais entre mulheres australianas. A maior parte das mulheres americanas e inglesas também decide terminar a gestação quando o feto apresenta espinha bífida.6 Esses casos parecem convergir para uma responsável consideração da mulher pela qualidade de vida da criança e da família após o nascimento,7 e não somente pelo sofrimento a elas imposto pela circunstância.
Mesmo assim, a interrupção da gestação nas anomalias fetais graves e inexoravelmente incompatíveis com a vida extrauterina ainda enfrenta obstáculos, principalmente nos países em desenvolvimento. Essas barreiras não se fundamentam somente em doutrinas religiosas, princípios morais ou divergências bioéticas.8 No Brasil, cabe o exemplo recente da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 54 que tratou da interrupção da gravidez em casos de anencefalia. Em abril de 2012, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que não há crime no aborto ou antecipação de parto na gestação de fetos anencefálicos e que as mulheres têm o direito de escolher manter ou interromper a gravidez.4
No entanto, a decisão do STF não foi unânime. Entre dez ministros, Antonio Cezar Peluso e Ricardo Lewandowski votaram em desfavor das mulheres. Não faltaram argumentos para tanto, com lastros jurídicos ou não, muitos deles equivocadamente pautados no temor dos odiosos ideais de eugenia. O então ministro Peluso declarou em seu voto que “não se pode impor pena capital ao feto anencefálico, reduzindo à condição de lixo ou de alguma coisa imprestável um incapaz de pressentir tal agressão e de esboçar defesa”. Acrescentou que permitir o aborto do anencéfalo em nada se diferenciava “do racismo, do sexismo e do especismo” e destacou como “absurda a defesa e absolvição da superioridade de alguns sobre outros”. No mesmo sentido, o ministro Lewandowski manifestou seu entendimento de que ao permitir a interrupção da gestação de anencéfalos “retrocederíamos aos tempos dos antigos romanos, em que se lançavam para a morte, do alto de uma rocha, as crianças consideradas fracas ou debilitadas”.9
Independentemente dessas e de outras expressões desfavoráveis aos direitos humanos das mulheres que desejam interromper a gestação com anencefalia, o STF decidiu que não se justifica a tutela do Estado para o feto anencefálico e que tampouco faz necessário a obtenção de autorização do Poder Judiciário para interromper essas gestações.4 Prevaleceram posições como a do ministro Marco Aurélio Mello, que ressaltou que somente a mulher grávida de feto anencéfalo seria capaz de mensurar o sofrimento a que se submete e que atuar sem qualquer dogma ou paradigma moral e religioso gera a obrigação de “garantir, sim, o direito da mulher de manifestar‐se livremente, sem o temor de tornar‐se ré em eventual ação por crime de aborto”.9
Perspectivas mais sensíveis, como essa, parecem influenciar a decisão de muitos países cujas legislações não adotam o direito de interromper a gestação pelo tipo ou gravidade da anomalia fetal, mas em função do impacto social e emocional que a situação provoca na vida das mulheres.10 Isso constitui uma extraordinária diferença quanto aos motivos que uma sociedade toma como justos e éticos para que uma mulher possa recorrer ao aborto em situações de anomalia fetal. Aloca‐se em menor plano a secular tutela do Estado em relação ao feto e busca‐se uma posição mais humana. Passa a se considerar o sofrimento dessas mulheres e a relevância de sua decisão, na medida em que não se pode exigir delas diferente conduta frente ao seu drama.8
No entanto, as evidências indicam que estamos distante de uma uníssima direção no respeito dos direitos humanos das mulheres, mesmo nos casos de anencefalia, nos quais sequer existe estrutura encefálica que permita estabelecer a existência de vida. De fato, o ministro Peluso expressa sua discordância de pensamento ao afirmar que “o sofrimento em si não é alguma coisa que degrade a dignidade humana; é elemento inerente à vida humana. O remorso também é forma de sofrimento. E o que o sistema jurídico não tolera não é o sofrimento em si, porque seria despropósito que o sistema jurídico tivesse a absurda pretensão de erradicar da experiência humana as fontes de sofrimento. Nem quero discorrer sobre o aspecto moral e ético – não me interessa – de como o sofrimento pode, em certas circunstâncias, até engrandecer pessoas”.9
Essa maneira com que parte da sociedade trata a questão do aborto pretende fazer acreditar que todo o sofrimento, o desolamento e toda a angústia que assolam a vida dos casais que vivenciam a anomalia fetal letal não justificam o direito de interromper a gestação. Além disso, parece esquecer que a recusa do acesso ao aborto faz com que essas mulheres enfrentem riscos significativamente aumentados de morbimortalidade. Isso está evidente nos casos de anencefalia, que se associa com maior risco de complicações maternas, como poli‐hidrâmnio, descolamento prematuro da placenta, hipertensão arterial, gravidez prolongada, distocia bisacromial, atonia uterina e rotura prematura de membranas.4
Poucos tocoginecologistas, ancorados firmemente em princípios morais ou religiosos compartilham essa perspectiva restritiva e divergem do direito da mulher interromper a gestação que cursa com anomalia fetal inviável. Poucos são, de fato, na medida em que apenas 13,4% dos ginecologistas e obstetras brasileiros concordam com a legislação atual e outros 0,2% declaram que o aborto deveria ser totalmente proibido, mesmo nos casos de risco de morte para a gestante.11
É razoável supor que esses profissionais se recusassem atender essas mulheres, mesmo que a lei permitisse o aborto por anomalia fetal grave. Essa recusa tem amparo legal e do Código de Ética Médica, com poucas exceções em que o médico não pode recorrer à objeção de consciência. O acato aos ditames pessoais não pode transgredir o limite da urgência, da ausência de outro médico para fazer o aborto ou do dano ou sequela para a mulher pela recusa de atendimento.12
Diferentemente disso, a maioria dos ginecologistas e obstetras brasileiros defende que sejam reduzidas as restrições ao aborto legal no país, particularmente nos casos de malformação fetal.11 Portanto, o estado atual de nossa legislação não tem apoio da maioria dos médicos que diretamente prestam cuidados à saúde sexual e reprodutiva da mulher. Ao contrário, a posição predominante do tocoginecologista brasileiro parece, cada vez mais, traduzir o respeito pela autodeterminação da mulher e por sua autonomia. E o compromisso de atuar dentro dos princípios fundamentais da beneficência, da justiça e da não maleficência.13
Parece oportuna e necessária a provocação do respeitado juiz de direito brasileiro José Henrique Rodrigues Torres14 ao lembrar a célebre obra de Lewis Carroll (Charles Lutwidge Dogson) Alice no País das Maravilhas, de 1865. Lembra o magistrado que, angustiada, a jovem Alice confessa ao Gato de Cheshire não saber para onde ir. Ele, sempre sorridente, responde: “Então, não importa que caminho tome”. O Estado brasileiro não pode mais alegar não saber qual direção seguir ou se afastar dessa responsabilidade. Ele deve decidir se deseja caminhar ao lado de Malta, país da União Europeia com as leis mais obtusas e misóginas em relação ao aborto e aos direitos humanos das mulheres, que condiciona a vida pública a preceitos religiosos impostos pelo Estado. Ou deve se aproximar de países democráticos e desenvolvidos como a Holanda, em que a laicidade do Estado e os direitos civis são profundamente respeitados. País com o mais amplo acesso ao aborto legal e seguro e, ao mesmo tempo, com a menor taxa de abortos induzidos no mundo.14 Mas não tem o Estado o direito de se comportar como a inocente Alice.