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Vol. 29. Núm. 2.
Páginas 41-43 (mayo - agosto 2014)
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Malala Yousafzai e as meninas esquecidas do Boko Haram
Malala Yousafzai and forgotten girls Boko Haram
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Jefferson Drezett
Editor da revista Reprodução & Climatério e coordenador do Núcleo de Violência Sexual e Aborto Legal do Hospital Pérola Byington, São Paulo, SP, Brasil
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A estudante Malala Yousafzai tornou‐se mundialmente conhecida por seu ativismo pelos direitos civis no Vale do Swat, província de Khyber Pakhtunkhwa, território do Paquistão sob o domínio do regime Taliban que proíbe que meninas frequentem a escola. Defendeu com notável lucidez o direito à educação e os direitos fundamentais das mulheres. Em 2014, aos 17 anos, tornou‐se a mais jovem laureada com o Prêmio Nobel da Paz, compartilhado com Kailash Satyarthi, ativista indiano pela proteção e direitos da criança.1

Essa trajetória extraordinária, no entanto, foi marcada pela brutalidade. Começou em 2009, quando Malala Yousafzai, sob pseudônimo, escreveu um blog para a BBC e contou o cotidiano de uma jovem que vive sob o regime Tehrik‐i‐Taliban Pakistan. A paquistanesa compartilhava seu olhar crítico sobre a educação para as mulheres em uma região em que escolas eram fechadas pelas forças do Taliban. Algum tempo depois, o jornal The New York Times produziu um documentário que denunciava a gravidade da situação no Vale do Swat. Malala naturalmente entrou em destaque na mídia internacional e terminou indicada para o Prêmio Internacional da Criança pelo sul‐africano Desmond Tutu.2

A resposta do regime Taliban não tardou. Em 2012, Malala sofreu tentativa de assassinato quando voltava para casa em um ônibus escolar. Baleada na cabeça e no pescoço por um miliciano do Tehrik‐i‐Taliban Pakistan, permaneceu em estado crítico de saúde durante várias semanas. Com alguma melhoria, foi transferida para o Hospital Queen Elizabeth, na Inglaterra, para cuidados e reabilitação intensiva.2

O atentado contra a vida de Malala Yousafzai teve repercussão internacional. Manifestaram solidariedade à jovem paquistanesa figuras públicas importantes como Barak Obama, Ban Ki‐moon, Desmond Tutu, Hillary Clinton, Susan Rice, Asif Ali Zardari e Pervez Raja Ashraf. O enviado especial da Organização das Nações Unidas (ONU) para a educação global, Gordon Brown, lançou uma petição em nome de Malala que propõe que todas as crianças do mundo estejam inscritas na escola até o fim de 2015.3

A tentativa de assassinato de Malala também teve desdobramentos no próprio Paquistão. Religiosos islâmicos emitiram uma fatwa, pronunciamento fundamentado nas leis islâmicas, na qual censuraram severamente os militantes responsáveis pelo ataque. Indiferente a tudo isso, o Tehrik‐i‐Taliban Pakistan renovou publicamente sua determinação de assassinar a jovem e sua família.4

Malala Yousafzai deixou o hospital no início de 2013, após quase três meses de internação. Recuperada, em 12 de julho de 2013 comemorou os seus 16 anos com discurso na Assembleia da Juventude, na ONU, quando reiterou seu pedido de acesso universal à educação. Parte de sua fala, simples e despretensiosa, ganhou destaque mundial: [...] “Vamos pegar nossos livros e canetas. Eles são nossas armas mais poderosas. Uma criança, um professor, uma caneta e um livro podem mudar o mundo. A educação é a única solução” [...].4

Malala Yousafzai foi capa da revista Time e considerada uma das 100 pessoas mais influentes no mundo. Recebeu o prêmio Sakharov para a liberdade de pensamento e foi indicada para o World Children's Prize, na Suécia, entre outras condecorações.2 Sua reivindicação de educação para as mulheres se aplica a muitos países em desenvolvimento. Mas é ainda mais urgente no mundo islâmico. Segundo dados do United Nations Children's Found (Unicef), dos 24 países com escolaridade básica muito baixa, 17 são nações islâmicas. Cerca da metade da população adulta é analfabeta em muitos países islâmicos, mas a proporção de mulheres é ainda maior e ultrapassa os 70%.5 Em 2012, estudo do Fórum Econômico Mundial apontou Argélia, Jordânia, Líbano, Turquia, Egito, Omã, Arábia Saudita, Irã e Marrocos entre os piores países do mundo em relação às políticas sociais.6

Malala Yousafzai foi uma das muitas vítimas do Taliban, movimento islâmico nacionalista que se difundiu no Afeganistão e no Paquistão a partir de 1994, principalmente entre a etnia pachtun. O regime é marcado pelo fundamentalismo e bane livros, cinema, artes, televisão e música. Proíbe‐se até mesmo situações curiosas, quase insensatas, como empinar pipas e a previsão do tempo. Mas suas ações também são extremas e violentas, como a destruição das gigantescas estátuas dos Budas de Bamiyan, patrimônio da humanidade com mais de 500 anos, consideradas ídolos pelo regime Taliban e, portanto, afrontas aos ditames do Alcorão.7

O Taliban também é reconhecido por sua hostilidade contra as mulheres, mas não somente pelas regras rígidas que limitam fortemente sua educação. Mulheres não podem trabalhar e não podem sair às ruas desacompanhadas de um homem. Chegam a ser impedidas de ter acesso aos hospitais públicos para que não recebam tratamento por médicos e enfermeiros do sexo masculino. Em algumas situações, viúvas ou mulheres que não tenham filhos não são consideradas pessoas.7

Contudo, o Taliban não é o único grupo extremista religioso que representa a misoginia extrema. Em Chibok, na Nigéria, o grupo Boko Haram foi responsável pelo sequestro de 234 jovens de 7 a 15 anos em abril de 2014. Trata‐se de uma organização fundamentalista islâmica oficialmente denominada Jama’atu Ahlis Sunna Lidda’awati wal‐Jihad, que adota métodos terroristas para impor em todo o país a legislação Sharia, nome que se dá ao direito islâmico quando não há separação entre a religião e o Estado. Todas as leis são norteadas por escrituras consideradas sagradas ou pela opinião arbitrária de seus líderes religiosos. A Sharia se tornou lei no norte da Nigéria, de maioria muçulmana, enquanto o sul, predominantemente cristão, resiste à sua implantação.8

O Boko Haram alega que seus atos são necessários para combater tanto a corrupção do governo como a “falta de pudor das mulheres”, a prostituição e outros “vícios”. Os extremistas culpam o cristianismo, a cultura ocidental e a tentativa de educar mulheres e meninas como a causa desses “males”. De fato, o significado do nome Boko Haram não deixa dúvida sobre seus propósitos: “A educação ocidental ou não islâmica é um pecado”.9

O Boko Haram argumenta que as meninas foram sequestradas para começar uma “vida nova”, na condição de “servas”. Mas isso não é verdade. O Boko Haram é responsável pelo extermínio de populações inteiras de vilas cristãs no norte da Nigéria. São inúmeros os ataques contra escolas de meninas, capturadas para serem estupradas pelos terroristas ou levadas para vilas muçulmanas para que sejam violentadas pela população. As que sobrevivem devem se casar com um de seus torturadores. As jovens que recusam esse matrimônio têm o mamilo direito lixado na madeira até que desapareça. Em alguns casos, o mamilo é simplesmente cortado para que fique definitivamente marcada sua recusa de iniciar uma “nova vida”.10

Aos olhos dos países ocidentais, democráticos ou não, ações como as do Taliban e do Boko Haram contra as mulheres expressam a barbárie e a selvageria, algo abominável e inaceitável. Desde 1993, a Conferência Mundial dos Direitos Humanos, ocorrida em Viena, declara que os direitos humanos das mulheres são inalienáveis e que constituem parte integrante e indivisível dos direitos humanos universais. Todas as formas de violência de gênero e de violência contra a mulher são incompatíveis com a dignidade humana.11

Mesmo assim, muitas formas de violência contra a mulher ainda são toleradas e entendidas como aceitáveis em determinados contextos. Em comunidades do norte da Nigéria, a idade média das meninas para o casamento é de 11 anos.12 Em Eastern Cape, África do Sul, membros da etnia xhosa mantém a crença de que a infecção pelo HIV possa ser curada praticando‐se sexo com mulheres virgens, o que faz com que crianças sejam submetidas à relação sexual forçada com homens soropositivos.13

Outra manifestação tradicional e cultural das mais virulentas contra as mulheres é a mutilação genital feminina, amplamente praticada em alguns países africanos e do Oriente Médio, que causa danos físicos e psicológicos graves e irreversíveis. Feita quase sempre sem o uso de anestésicos, pode equivaler a sessões de tortura e de horror, com instrumentos de corte como facas de cozinha, pedaços de vidro ou navalhas sem esterilização.14

A Organização Mundial da Saúde (OMS) tem feito esforços para desencorajar essa prática e a Convenção sobre os Direitos da Criança considera a mutilação genital como ato de tortura e abuso sexual. Da mesma forma, alguns desses países têm aprovado, lentamente, leis que condenam a mutilação genital feminina. Mesmo assim, muitas comunidades continuam indiferentes ao apelo ou ignoram a proibição por acreditar que se a jovem não for submetida à tradição não conseguirá se casar ou será considerada prostituta, o que resultaria em sua exclusão da sociedade local.15

Distante de qualquer argumento cultural ou antropológico e um desafio à Convenção de Viena, a violência de gênero também é empregada como meio de perseguição e vingança política. Ainda que as nações civilizadas não admitam, o estupro em situações de guerra é frequentemente tolerado.16 Muitos grupos armados consideram as mulheres de grupos inimigos como “espólio de guerra” e, portanto, objetos dos quais podem dispor como quiserem. Os conflitos armados na Bósnia‐Herzegovina, Croácia e Libéria são exemplos contemporâneos dessa prática.

Embora classificado como grave crime de guerra, mulheres capturadas são violadas muitas vezes de forma múltipla e repetida e, não raro, submetidas à tortura, mutilação e execução. A ONU estima que foram violentadas cerca de 50 mil mulheres na antiga Iugoslávia com o perverso objetivo de provocar a gravidez forçada e alcançar a eliminação étnica.17 Cerca de 20 mil mulheres jovens e meninas em Uganda podem ser infectadas pelo HIV a cada ano como resultado do estupro praticado por forças militares ou milícias armadas.18

Enquanto situações como essas causam profunda perplexidade nos países ocidentais, muitos indicadores locais fortemente negativos para as mulheres não provocam semelhante indignação, nem resultam nas mesmas respostas públicas ou governamentais. A cada dia morrem 800 mulheres no mundo por complicações evitáveis relacionadas com gestação, parto e puerpério.19 A mortalidade materna ainda é um drama violento, sinalizador do respeito que uma sociedade tem (ou não) pela saúde e pelos direitos reprodutivos das mulheres. Quase 99% desses óbitos ocorrem nos países em desenvolvimento e atingem, principalmente, mulheres pobres e vulneráveis, sem causar maior comoção.20

O recente relatório da ONU, resultado de pesquisa em 190 países, estima que 120 milhões de mulheres no mundo sofram estupro antes dos 20 anos. O homicídio é a principal causa de morte entre jovens de 10 a 19 anos em países da América Latina como Venezuela, Colômbia, Panamá e Brasil. Segundo o Relatório Global sobre Homicídios, feito pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), em 2012 foram registrados 50.108 homicídios no Brasil, equivalente a 10% dos assassinatos cometidos em todo o mundo, o que coloca o país no segundo grupo de países mais violentos do mundo.

No que toca às mulheres, os números não são mais favoráveis. Entre 2002 e 2006 foram registrados mais de oito mil óbitos de mulheres brasileiras entre 15 e 29 anos, resultado direto de agressões físicas praticadas pelos homens. Quase 12% das regiões analisadas no país apresentam taxa elevada de letalidade de mulheres, muito acima da média nacional, o que alerta para a magnitude e as complexidades regionais do problema.21

A violência de gênero é uma relação de forças que transforma as diferenças entre os sexos em desigualdades. Homens e mulheres terminam classificados pelo gênero e separados em duas categorias, uma dominante e outra dominada, e obedecem‐se requisitos impostos pela heterossexualidade.22 A violência contra a mulher é um fenômeno universal. Contudo, elementos da cultura e do cotidiano ainda permitem que suas diferentes expressões causem distintas reações. Ao mesmo tempo em que as ações do Taliban e do Boko Haram são censuradas e tratadas como absurdos no mundo ocidental, a morte e o sofrimento de milhões de mulheres em nosso meio pouca vezes provoca a mesma reação.

A jovem Malala Yousafzai merecidamente não será esquecida por sua coragem e determinação ao enfrentar e denunciar a violação dos direitos humanos das mulheres no Paquistão. Tristemente esquecidas estão as meninas sequestradas pelo Boko Haram, as mutiladas em nome da estupidez da crença, as cruelmente torturadas pelas guerras, as violentadas cotidianamente nas nossas cidades, as que morrem ou têm suas vidas devastadas pela violência de gênero ou pelo descaso do Estado. Para todas elas e para todos nós, resta o pensamento do escritor anglicano John Donne, que em 1764 afirmava: “Nunca procure saber por quem os sinos dobram, eles dobram por ti”.

Referências
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