Discutir saúde na atualidade, talvez mais que em qualquer outra época, constitui uma tarefa desafiadora. Se por um lado o debate acerca do conceito de saúde tem sido bastante ampliado, especialmente no meio acadêmico, por outro, institui-se um abismo do ponto de vista prático à medida esse construto não é suficientemente compreendido em todos os espaços onde a saúde é debatida, promovida, financiada, ou concretizada.
Se em um primeiro instante a discussão dessa temática pode parecer uma falácia, basta um olhar mais atento para se perceber que sua compreensão é determinante para a elaboração de objetivos concretos dos quais derivem ações efetivas na área da saúde sejam elas de cunho polí-tico-admininstrativas (ações governamentais em todos os níveis, políticas internacionais), educativas (envolvendo, desde as discussões da temática nos espaços de ensino aprendizagem até as diretrizes de financiamento de pesquisas na área), de caráter social (que dizem respeito ao cidadão no âmbito de sua cultura e do grupo social onde ele vive) ou de outra natureza.
Tradicionalmente, muitas das discussões em torno do conceito de saúde e das ações nesta área têm sido levadas a efeito a partir da referência de que saúde e doença são situações polares1-3. Esse fato tem implicações severas em diversas dimensões da vida humana uma vez que, sob esta perspectiva, promover saúde equivale a tratar doenças. Considerando a fragilidade dos construtos emergentes dessa lógica, as discussões acerca da temática saúde, essencialmente na última década, têm sido focadas na reconstrução teórica do objeto saúde, buscando refletir as questões que as abordagens centradas na doença não dão conta de responder.
Esse artigo se propõe a retomar os pontos centrais na discussão sobre o conceito de saúde, buscando elementos que subsidiem e fomentem a discussão acerca do tema, considerando-se as dimensões de sua aplicabilidade, as relações com as diferentes áreas do conhecimento e, transcendendo a esfera acadêmica, sua compreensão pela comunidade.
Contextos e possibilidadesA visão tradicional de saúde compreendida como ausência de doenças, embora ainda presente na percepção de boa parte da população, parece já superada do ponto de vista acadêmico4-7. No entanto, um consenso em torno da construção conceitual do objeto saúde que possa atender às demandas e especificidades das disciplinas da área ou mesmo sua aplicação no contexto sócio-político-cultural ainda parece distante.
A Organização Mundial da Saúde8 (OMS), refere-se à saúde como um “estado de completo bem-estar físico, mental e social e não somente a ausência de doenças ou incapacidades”. Ainda que aparentemente em seu momento histórico esse conceito tenha trazido avanços importantes admitindo outras dimensões além da biológica e ainda, considerando que a análise pura e simples do conceito proposto pela OMS sem um entendimento do contexto histórico e do documento do qual este conceito faz parte seja, por vezes, muito rigorosa e, no viés da crítica pela crítica, aspectos positivos desta produção teórica sejam deixados de lado, é fundamental entender que o mesmo não rompe com o paradigma da saúde vista como um “análogo inverso da doença”, como referido por Almeida Filho9 e tampouco é eficiente para propósitos de avaliação ou para elaboração de políticas públicas de saúde. Atualizando uma análise de Donnangelo10, é um conceito irreal e unilateral.
Numa perspectiva de se avançar na definição de saúde, pode-se considerar que o conceito proposto por Minayo11, como um movimento de ruptura da visão anteriormente apresentada: “Saúde é resultante das condições de alimentação, habitação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra e acesso aos serviços de saúde”.
Parece plausível a idéia de saúde como resultante. Todavia, se saúde é resultante do acesso aos “serviços de saúde” e estes serviços se constituem a partir de políticas e ideologias ainda fortemente fundamentadas no paradigma saúde/doença, como pode essa idéia, efetivamente, representar uma ruptura? Talvez nessa lógica, seria mais prudente dizer que os serviços de prevenção e tratamento, assim como a alimentação, habitação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra, entre outros aspectos, afetam igualmente a saúde.
Ao que parece, o desafio ora posto é aglutinar elementos suficientes para fomentar uma discussão que transcenda os limites disciplinares e da própria área da saúde. Nessa dimensão, é imprescindível a ruptura de padrões historicamente estabelecidos como, por exemplo, os saberes que competem a cada área do conhecimento ou ainda a questão da transferência da demanda por conhecimento, das áreas (ciências biológicas, da saúde, sociais e aplicadas, humanas e sociais ou ainda outra denominação que se queira adotar) para os indivíduos, o que implica uma mudança importante, em que os problemas ou temáticas de estudo deixem de ser, majoritariamente, frutos das discussões acadêmicas e passem a ser, na sua maioria, reflexo direto do viver humano.
Nesse contexto, um construto fundamentado no conhecimento acadêmico e permeado pelas experiências e expectativas do dia-a-dia, parece mais próximo de influenciar a saúde do que postulados teóricos que não se aproximam do existir humano. A partir dessa perspectiva, o não-estabelecimento da doença como uma condição a partir da qual a saúde possa existir e o abandono do conceito clássico de risco, seja na dimensão individual ou coletiva5,12, são determinantes. Considerando-se essa premissa, seria importante revisitar a produção histórica acerca do tema, resgatando, a partir da ótica das demandas do homem e não da demanda das disciplinas, aspectos que possam constituir um ponto de partida para a tarefa de (re)construção do conceito de saúde na dimensão que sua aplicabilidade exige. A partir dessa compreensão, rediscutir documentos históricos como a Constituição da OMS8 ou a Carta de Otawa13 pode trazer avanços importantes, seja a partir de aspectos considerados coerentes nesses documentos ou mesmo a partir daqueles apontados como os grandes equívocos na história da produção do conhecimento na área da saúde.
Os desafios no processo de construção do conceito de saúdeCertamente, há muitos aspectos que dificultam a mudança de padrões na área da saúde. A discussão no âmbito deste trabalho considera como desafios centrais: a) a integralização do objeto saúde como sendo maior que a soma de seus constituintes, b) a inclusão do indivíduo e sua cultura como dimensões necessárias ao conceito de saúde e; c) a superação da questão da saúde como oposto da doença.
No âmbito dessa discussão, o ponto de partida é a compreensão de saúde a partir do conjunto dos seus constituintes. A apreensão de cada um dos elementos e dimensões constituintes da saúde não dá acesso à integralidade do objeto. Essa compreensão de saúde implica um redimensionamento na elaboração dos construtos que deverão compor o que Almeida Filho9, chama de “nova teoria da saúde”. Dessa forma, os indicadores de saúde necessitam ser revistos a partir de uma perspectiva de transcendência dos limites teóricos das áreas do conhecimento, das disciplinas e das barreiras culturais, econômicas e educacionais. Nesse sentido, os índices de morbidade e mortalidade devem ser substituídos por indicadores que possam efetivamente proporcionar uma avaliação consistente da saúde, ou seja, um conjunto de referências que transcendam os limites teórico-conceituais e práticos referidos anteriormente e possam gerar ações que efetivamente impactem na vida das pessoas, podendo ser percebidas por estas e, num processo contínuo de avaliação e retroalimentação possam subsidiar, tanto as decisões individuais e coletivas a respeito do quê e quando fazer ou não fazer, quanto as discussão e proposições de novos indicadores. Nesse sentido, todos os sujeitos do processo, a partir de uma compreensão compartilhada do que seja saúde, podem (re)significar modelos e conceitos além de pro-por novos indicadores capazes de melhor avaliar com vistas à promoção efetiva de saúde.
Outro desafio importante a ser assumido na definição do objeto saúde é a incorporação do indivíduo e sua cultura como dimensões do conceito de saúde. Neste sentido, Leininguer14, refere-se à necessidade de uma maior aproximação com as diferentes culturas, de forma a compreender a essência das novas interações culturais. Assim, considerar os conhecimentos e experiências, da perspectiva do indivíduo e sua cultura, numa tentativa de associá-lo ao conhecimento acadêmico, é um dos pontos centrais desse desafio.
Tratar a questão da saúde a partir uma proposta que considera o indivíduo e o processo de educação para a saúde traz uma perspectiva de ruptura dos modelos tradicionais de abordagem do tema. No entanto, a compreensão de saúde em toda sua complexidade não é um conhecimento de domínio da maioria da população, especialmente a mais carente e com menor acesso ao conhecimento que, no entanto, pela sua condição social, econômica e cultural mais necessita dos “serviços públicos de saúde”.
Por fim, debater a ruptura do paradigma saúde/doença, parece ser outro fator determinante para os avanços necessários para produção do conhecimento na área e a efetiva compreensão do objeto saúde. Nesse sentido, a idéia proposta por Canguilhem15, na qual a saúde é entendida como a “possibilidade de agir e reagir de adoecer e se recuperar” parece ser um avanço epistemológico importante e pode constituir um ponto de partida para o debate acerca do conceito de saúde.
Contudo, se partirmos do pressuposto de que esse conceito deve, como premissa, possibilitar um diálogo entre as disciplinas e áreas do conhecimento protagonizado por todos os sujeitos do processo, dois aspectos são fundamentais: a compreensão de que saúde e doenças não são análogas ou polares e, a educação como premissa para um processo participativo de construção do objeto saúde.
Em síntese, esses dois aspectos implicariam, respectivamente, em duas condições práticas. Na primeira, significaria dizer que desde o médico da unidade ou médico de família, passando pelos gestores e usuários de um sistema de saúde, todos teriam que ter claro que estar doente não significa não ser saudável. A segunda equivaleria a um conjunto de condições a partir das quais todos esses sujeitos tivessem suficiente autonomia para tomada de decisões tanto de caráter individual quanto coletivo.
Uma vez que esses pressupostos, a princípio, utópicos, pelo menos se aproximam da realidade, o conceito de saúde daí emergente, adquire uma dimensão teórica e prática mais próxima do real.
PerspectivasUma vez superados os desafios propostos, é fundamental um esforço coletivo para se produzir indicadores consistentes que possibilitem avaliar a saúde de maneira satisfatória, permitindo autonomia nas decisões individuais e coletivas e a elaboração de políticas públicas efetivas com reflexos positivos na saúde.
Superar os desafios e propor um constructo coletivo para saúde, embora difícil, não constitui um obstáculo insuperável. Em princípio, a apropriação do conhecimento produzido acerca dessa temática e o seu debate por todas as áreas do conhecimento e em todos os espaços onde a vida se dá, é o esforço primeiro e necessário para a elaboração de um conceito de saúde suficientemente complexo para dar conta das demandas que dele se exigem e, ao mesmo tempo, de tal objetividade, que possa ser compreendido em todas as áreas onde for aplicável.
Considerações finaisUm conceito de saúde que possa ser aceito majoritariamente e compreendido de forma semelhante pelos diferentes setores e segmentos da sociedade parece estar ainda muito distante. No entanto, as produções teóricas acerca do tema em todas as áreas do conhecimento têm trazido contribuições bastante interessantes.
Nesta lógica, a incorporação do ponto de vista do indivíduo e sua cultura ao debate e a disseminação do conhecimento para além da esfera acadêmica e numa linguagem que possa ser compreendida por todos constituem um passo fundamental para a construção coletiva do objeto saúde.
Considerando-se as premissas expressas anteriormente para a construção do objeto saúde, parece sensato que haja uma ruptura com concepções tradicionalmente aceitas e que, conforme já discutido, não permitem o avanço do debate na área. Neste sentido, “desconstruir” paradigmas consiste uma tarefa primária na reconstrução do conceito de saúde.
Embora para um grande número de pessoas pareça difícil argumentar que se pode estar doente e com boa saúde, por exemplo, o exercício de ruptura para avanço do conhecimento em relação ao conceito de saúde inicia com um exercício mental simples. Se partirmos do pressuposto de que a palavra saúde deriva do latim salus, que denota salvação, conservação (da vida)16, a doença deixa de ser a negação da saúde e passa a ser compreendida como uma dimensão desta. Embora essa idéia não seja novidade em vários espaços de discussão, o é para a maioria esmagadora da população e para uma parcela considerável dos profissionais da saúde.
Dessa forma, o conceito de saúde não pode ser construto de uma disciplina, de uma área de conhecimento ou de alguns segmentos profissionais (“profissionais da saúde”). Esse conceito é essencialmente multi e transdisciplinar e, necessariamente, deve refletir a condição humana, em que o conhecimento dá suporte à autonomia do indivíduo e permite a compreensão das dimensões individual e coletiva do viver humano (viver bem) e da preservação da vida.
AgradecimentosOs autores agradecem a Professora Solange da Silva Reis e ao Dr. Ricardo Vaamonde Lemos por suas contribuições na revisão deste manuscrito.
RESUMOToda discussão envolvendo a temática saúde constitui tarefa bastante desafiadora. Por um lado está à dificuldade de se estabelecer um consenso em torno do seu conceito e, por outro, a fragilidade dos construtos que precisam dar conta de demandas e especificidades das diversas disciplinas e dos diferentes espaços onde a saúde é debatida, promovida ou financiada. Assim, esse artigo busca elementos que subsidiem a reconstrução do conceito de saúde, conside-rando-se as dimensões de sua aplicabilidade, a relação com as diferentes áreas do conhecimento e a inclusão do indivíduo e sua cultura como fatores determinantes para a construção do objeto saúde.
Palavras-chave:
Saúde. Conhecimento em saúde. Transdisciplinariedade.
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