A dissecção coronária espontânea é uma entidade rara e, por conseguinte, de etiologia, fisiopatologia e tratamento ainda não estabelecidos. Acomete, em geral, mulheres jovens, sem os clássicos fatores de risco cardiovascular, comumente ao longo do ciclo gravídico‐puerperal. Vários fatores influenciam na estratégia de tratamento, como quadro clínico, status hemodinâmico, topografia da dissecção, número de artérias afetadas e fluxo coronário distal. Como no caso relatado, em pacientes estáveis, com dissecções bem delimitadas e, sobremodo, quando o fluxo coronário é reestabelecido, pode‐se optar por uma abordagem conservadora, em razão da alta incidência de resolução espontânea e da baixa incidência de eventos adversos a longo prazo.
Spontaneous coronary dissection is a rare entity and, therefore, its etiology, pathophysiology, and treatment are not yet established. It affects mainly young women without the classic cardiovascular risk factors, commonly during the pregnancy‐childbirth cycle. Several factors influence the treatment strategy, such as clinical presentation, hemodynamic status, topography, number of affected arteries, and distal coronary flow. As in the reported case, in stable patients with well‐defined dissections and mainly when the coronary flow has been re‐established, one can choose a conservative approach, due to the high incidence of spontaneous resolution and low incidence of long‐term adverse events.
A dissecção coronária espontânea é uma entidade rara, potencialmente subdiagnosticada e, por conseguinte, de etiologia, fisiopatologia e manejo ideal ainda pouco conhecidos. Encontrada na literatura quase que exclusivamente sob a forma de relatos ou pequenas séries de casos, acomete, em geral, mulheres jovens, sem os clássicos fatores de risco cardiovascular, comumente ao longo do ciclo gravídico‐puerperal. A revascularização, cirúrgica ou percutânea, do leito coronário acometido é empregada na maioria dos casos.1–4 Por sua vez, nas casuais apresentações com estabilidades clínica e hemodinâmica, associadas à patência dos vasos acometidos, pode‐se lançar mão da estratégia conservadora, como no caso em questão.
Relato de casoMulher branca, casada, 41 anos, sem fatores de risco cardiovascular ou antecedentes patológicos relevantes, cursou, no oitavo dia de puerpério de sua primeira gestação (parto normal), com dor precordial opressiva, em repouso, resolvida 20 minutos após utilização de nitrato sublingual em serviço médico de emergência. Devido à elevação característica de marcadores de necrose miocárdica, definiu‐se o diagnóstico de infarto agudo do miocárdio sem supradesnivelamento do ST (eletrocardiograma sem alterações isquêmicas agudas), com estabilidades clínica, elétrica e hemodinâmica. Foi submetida, 24 horas após o início do quadro, à coronariografia em outro serviço, a qual evidenciou dissecção coronária espontânea extensa em porções proximal e média da artéria descendente anterior, com fluxo distal Thrombolysis in Myocardial Infarction (TIMI) 3. Optou‐se, então, em razão do contexto estável, por estratégia não intervencionista, com tratamento clínico à base de dupla antiagregação plaquetária (ácido acetilsalicílico e clopidogrel), betabloqueador e estatina. Recebeu alta hospitalar após normalização dos marcadores de cardiomionecrose, sem qualquer recorrência de sinais ou sintomas compatíveis com insuficiência coronária aguda. No seguimento ambulatorial, persistiu assintomática, inclusive sem evidência de isquemia miocárdica estresse‐induzida pela cintilografia de perfusão miocárdica com MIBI associado à adenosina (fig. 1). Nova coronariografia de controle, a critério do cardiologista assistente, realizada no nosso serviço, 4 meses após o evento agudo, confirmou o achado de dissecção extensa da artéria descendente anterior, desde seu óstio até seu segmento médio, envolvendo a origem de um ramo diagonal, ambos com fluxo TIMI 3 (fig. 2). A artéria coronária direita, dominante, não apresentava lesões, e a ventriculografia esquerda evidenciou função contrátil normal e competência valvar mitral (fig. 3). Devido à ausência de sintomas e de isquemia documentadas, optou‐se, novamente, em discussão com o Heart Team, por estratégia conservadora. Dez meses após o evento índice, mantinha‐se assintomática, sem qualquer limitação funcional ou recorrência de episódios similares.
A dissecção coronária espontânea é causa rara de eventos cardiovasculares e pode se apresentar como síndrome coronariana aguda, com ou sem supradesnivelamento do ST, insuficiência cardíaca aguda ou até morte súbita, geralmente por envolvimento do tronco de coronária esquerda.1–4 Descrita pela primeira vez em 1931, em uma mulher de 42 anos,5 sua prevalência varia de 0,1 a 1,1%, consoante as séries de pacientes submetidos à cinecoronariografia.1
Apresenta‐se em uma proporção de 3:1 de mulheres:homens, sendo que até um terço dos casos é observado durante a gestação ou o puerpério. No sexo feminino, as dissecções ocorrem predominantemente na coronária esquerda (87%), em geral acometendo mulheres jovens e sem os clássicos fatores de risco. Os homens, por sua vez, costumam ser vitimados em uma faixa etária um pouco mais tardia, algumas vezes com a presença dos fatores de risco e o envolvimento da artéria coronária direita em dois terços dos casos.3 De maneira geral, a artéria descendente anterior é afetada em 75% dos pacientes, a artéria coronária direita em 20%, a circunflexa em 4% e o tronco de coronária esquerda em menos de 1%.3 É forte a associação da dissecção coronária espontânea com a gestação, o puerpério e o uso de contraceptivos orais. Durante a gravidez, pode haver alterações patológicas na parede arterial em decorrência de fragmentação de fibras reticulares, hipertrofia de células musculares lisas, e alterações nos conteúdos de mucopolissacárides e composição de proteínas, com enfraquecimento da parede e, por fim, com a sua ruptura durante ou após o trabalho de parto.2,6
O diagnóstico clínico e angiográfico dessa entidade pode estar subestimado, pois, na maioria dos casos, não se lança mão de técnicas de imagem intracoronária. Apesar de sugestivo, o aspecto angiográfico pode não evidenciar claramente o fenômeno, o qual deve ser considerado quando há linha de dissecção, com ou sem luz falsa, redução súbita e significativa de calibre, ou obstrução com bordas lisas e sem aspecto de doença aterosclerótica.2–4
A ultrassonografia intracoronária e a tomografia de coerência óptica, por fornecerem informações morfológicas detalhadas das lesões coronárias e da localização dos planos de dissecção entre as diferentes camadas da parede arterial, permitem uma avaliação mais minuciosa das dissecções coronárias espontâneas. Ademais, a angiotomografia coronariana não invasiva tem sido usada no seguimento clínico de pacientes que sofreram dissecção coronária espontânea.7
Por seu caráter raro, ainda não foi determinado o manejo ideal dessa condição. Vários fatores influenciam na estratégia de tratamento, como o quadro clínico, o status hemodinâmico, a topografia da dissecção, o número de artérias afetadas, o fluxo coronário distal e a disponibilidade de serviços de cardiologia intervencionista e cirurgia cardíaca.1–4
A intervenção coronária percutânea é o tratamento de escolha em casos de dissecção uniarterial sintomática e/ou com isquemia aguda. O implante de stent visa selar o flap intimal para reexpandir a luz verdadeira. Não há benefícios comprovados dos stents farmacológicos em relação aos convencionais. Também não é sabido se seu uso evita a recorrência da dissecção.4 A cirurgia de revascularização miocárdica é uma alternativa em casos com acometimento multiarterial, na dissecção do tronco de coronária esquerda ou quando há insucesso do tratamento percutâneo.4 Como no caso em questão, nos pacientes clinica e hemodinamicamente estáveis, com dissecções bem delimitadas e, sobremodo, quando o fluxo coronário é reestabelecido, pode‐se optar por uma abordagem conservadora, em razão da alta incidência de resolução espontânea da dissecção, inclusive com comprovação por reestudos angiográficos,8 e a baixa incidência de eventos adversos a longo prazo.1–4
Em revisão recente de uma série consecutiva de 25 casos de dissecção coronária espontânea do nosso serviço, os autores encontraram: prevalência do sexo feminino (56%); idade média de 48,8 ± 10 anos; apresentação como síndrome coronariana aguda em 92%; acometimento da artéria descendente anterior em 48%; taxa livre de eventos hospitalares e tardios de 92 e 84,2%, respectivamente; manejo conservador em 56%, e percutâneo em 40%, sendo a revascularização cirúrgica aplicada em apenas um caso, com dissecção coronária espontânea de múltiplos vasos.9
De maneira geral, as taxas de sobrevivência após o tratamento variam de 70 a 90%.1 Há relatos de recorrência de dissecção em metade dos casos em um período de 2 meses.10 Números semelhantes são relatados em outras séries, o que sugere maior suscetibilidade na fase aguda do episódio, possivelmente explicada por fragilidade generalizada da parede vascular. Isso é reforçado pela observação de que mais de 40% das gestantes com dissecção coronária espontânea podem cursar com dissecção em outro leito vascular.1,6
Fonte de financiamentoNão há.
Conflitos de interesseOs autores declaram não haver conflitos de interesse.
A revisão por pares é de responsabilidade da Sociedade Brasileira de Hemodinâmica e Cardiologia Intervencionista.