Enquanto a insuficiência mitral (IM) moderada a grave leva a altas taxas de morbidade e mortalidade caso nenhuma intervenção seja realizada, um número considerável de pacientes é tratado de forma exclusivamente clínica devido ao seu alto risco cirúrgico;1 de fato, as taxas de eventos adversos entre os pacientes de alto risco que se submetem à cirurgia de válvula mitral são relevantes.2 Desse modo, há uma grande necessidade não atendida de tratamentos transcateter nesse cenário.1 Nessa edição da Revista Brasileira de Cardiologia Invasiva, Brito Jr. et al.3 descrevem os dois primeiros procedimentos de reparo borda a borda da válvula mitral realizados no Brasil utilizando o sistema MitraClip® (Abbott Vascular, Abbott Park, EUA). Gostaríamos de parabenizar os autores por serem os pioneiros nesse importante campo.
Enquanto o único ensaio randomizado publicado até hoje comparando o implante do sistema do MitraClip® com cirurgia valvar mitral incluiu principalmente (∼70%) pacientes com IM primária (isto é, degenerativa), cenário em que a cirurgia da válvula mitral proporciona ótimos resultados,4 grandes registros do mundo real, como o ACCESS‐EU,5 GRASP,6 e TRAMI,7 incluíram, em sua maioria, pacientes com IM secundária (isso é, funcional), o que reflete o potencial de utilização do sistema MitraClip®, no cenário no qual a cirurgia da válvula mitral oferece os piores resultados, como a falta de benefício na sobrevida e os altos índices de recidiva, juntamente da alta morbidade e mortalidade.2 Estudos randomizados comparando o implante do sistema MitraClip® com cirurgia valvar mitral em pacientes com IM funcional grave, como o estudo em curso COAPT (Clinical Outcomes Assessment of the MitraClip Therapy Percutaneous Therapy for High Surgical Risk Patients; NCT01626079), certamente lançarão mais luz sobre a abordagem ideal para esse subconjunto específico de pacientes. Acreditamos, no entanto, que a aprovação no Brasil do MitraClip® para IM primária e secundária foi extremamente criteriosa e importante, pois se baseou não apenas em dados randomizados, o que poderia restringir suas indicações para a IM primária, mas também em grandes experiências da prática clínica, que incluíram milhares de pacientes com IM funcional (isto é, aqueles com maior probabilidade de não serem submetidos à intervenção cirúrgica)1 que foram tratados com êxito e com a maior parte demonstrando resultados sustentados em longo prazo.
O aumento da experiência do cirurgião permitiu a expansão das indicações do MitraClip®, as quais foram inicialmente limitadas por critérios ecocardiográficos rígidos propostos no estudo EVEREST II.5 De fato, enquanto nosso grupo foi pioneiro no implante desse novo dispositivo na Itália, em 2008, também demonstramos recentemente o potencial para expandir as indicações para cenários anatômicos mais complexos, ao mesmo tempo mantendo os desfechos favoráveis.6,8 Enquanto preditores de insucesso em procedimentos agudos com MitraClip® foram demonstrados por Lubos et al.,9 nós identificamos preditores de longo prazo de desfechos clínicos desfavoráveis após o implante do MitraClip®,10 o que, em última análise, permitiu uma compreensão mais detalhada dessa intervenção. É importante notar, no entanto, que a curva de aprendizagem associada com o sistema MitraClip® pode ser relativamente acentuada; portanto, seguir os critérios ecocardiográficos inicialmente propostos pelo estudo EVEREST II4 pode ser a melhor maneira de iniciar um novo programa, enquanto a transição para cenários mais complexos ocorre progressivamente.
O implante do MitraClip® está associado à melhora hemodinâmica, remodelagem reversa do ventrículo esquerdo e melhoria na qualidade de vida. Quando a redução de IM para ≤ 2+é alcançada, o procedimento pode ser considerado bem‐sucedido, tal como demonstrado nos dois casos descritos por Brito Jr. et al.3 É importante ressaltar que não se deve esperar a resolução completa da IM com o MitraClip®; de fato, a melhoria na qualidade de vida foi comparável em doentes com IM 1+e 2+pós‐procedimento, em uma análise recente do estudo EVEREST II.11
Da mesma forma que o implante transcateter de valva aórtica, os centros de intervenção cardíaca estrutural que incluem o MitraClip® em seu arsenal terapêutico certamente notarão um aumento nas taxas globais de encaminhamentos para a avaliação da disfunção da valva mitral e, dessa maneira, não apenas intervenções transcateter, mas também intervenções cirúrgicas da válvula mitral provavelmente aumentarão (“efeito de halo”). Isso pode se tornar ainda mais importante quando o reembolso para o procedimento MitraClip® constituir um problema. Por exemplo, embora esperado para o segundo semestre de 2015, até o presente momento não há, nos Estados Unidos, cobertura total para a implantação do sistema MitraClip®. No entanto, esse fato não impediu que os centros de excelência adotassem essa nova técnica, oferecendo, assim, um espectro mais amplo de intervenções para doenças cardíacas estruturais aos seus pacientes.
Enquanto o MitraClip® é o único procedimento transcateter aprovado pela Food and Drug Administration para tratar IM grave, o implante transcateter de válvula aórtica balão‐expansível foi utilizado em posição mitral para tratar disfunção de bioprótese cirúrgica ou anéis de anuloplastia,12 com resultados promissores; da mesma forma, as válvulas mitrais com calcificação anular importante também foram tratadas de forma similar.13 Enquanto essas intervenções representam, provavelmente, a única opção terapêutica para pacientes com risco cirúrgico proibitivo, o objetivo final nesse campo é a possibilidade de implante transcateter de válvulas cardíacas dedicadas na posição mitral. Vários dispositivos diferentes estão sendo testados atualmente, mas a experiência com seres humanos está ainda no início.
Conflitos de interesseOs autores declaram não haver conflitos de interesse.