A valvoplastia mitral percutânea é o tratamento de escolha da estenose mitral reumática com anatomia favorável, por sua capacidade de prevenir complicações inerentes ao tratamento cirúrgico e com manutenção da eficácia. Faz‐se necessário promover comparações entre os resultados obtidos com o procedimento por centros de referência e alta drenagem de pacientes e por instituições de menor volume e casuística, sendo este o objetivo principal deste estudo.
MétodosForam analisados 31 pacientes consecutivos submetidos à valvoplastia mitral percutânea no período de setembro de 2006 a janeiro de 2015. Avaliaram‐se o sucesso imediato do procedimento e a sobrevida livre de eventos tardios, definidos como morte cardiovascular ou necessidade de nova intervenção valvar mitral.
ResultadosA média de idade foi de 40,9 ± 14,2 anos, com predomínio do sexo feminino (96,8%). O escore médio de Wilkins e Block foi de 8,1 ± 1,2. A totalidade dos procedimentos foi efetivada pela técnica de Inoue, com taxa de sucesso imediato de 90,3%. Em acompanhamento médio de 6,8 ± 2,5 anos, foram constatados sete eventos (22,6%), sendo dois óbitos de etiologia cardiovascular, quatro cirurgias de troca valvar mitral e uma comissurotomia mitral.
ConclusõesEm um hospital com volume intermediário de procedimentos, os resultados da valvoplastia mitral percutânea no tratamento da estenose mitral reumática com anatomia favorável foram comparáveis àqueles alcançados por centros de alto referenciamento.
Percutaneous mitral valvuloplasty is the treatment of choice for rheumatic mitral stenosis with favorable anatomy, for its ability to prevent complications inherent to a surgical procedure, while maintaining effectiveness. It is necessary to promote comparisons between the results obtained by the procedure performed at referral centers with high patient inflow and at institutions with lower volume and fewer patients, which represents the main objective of this study.
MethodsThirty‐one consecutive patients undergoing percutaneous mitral valvuloplasty were analyzed from September 2006 to January 2015. Immediate procedural success and late event‐free survival rates were evaluated, defined as cardiovascular death or need for a new mitral valve intervention.
ResultsThe mean age was 40.9 ± 14.2 years, with a predominance of females (96.8%). The mean Wilkins and Block score was 8.1 ± 1.2. All procedures were performed using the Inoue technique, with an immediate success rate of 90.3%. At mean follow‐up of 6.8 ± 2.5 years, seven events (22.6%) were observed: two cardiovascular deaths, four surgeries for mitral valve replacement, and one mitral commissurotomy.
ConclusionsIn a hospital with intermediate procedure volume, the results of percutaneous mitral valvuloplasty in the treatment of rheumatic mitral stenosis with favorable anatomy were comparable to those achieved by high‐volume centers.
A prevalência da febre reumática, etiologia predominante da estenose mitral, sofreu redução expressiva em países ocidentais, mas a valvoplastia mitral percutânea (VMP) ainda é o tratamento de eleição em pacientes com anatomia valvar favorável, por sua capacidade de prevenir complicações inerentes ao tratamento cirúrgico com manutenção da eficácia.1–3 O procedimento pode ser efetivado por diferentes métodos, como balão único, duplo balão ou comissurótomo metálico, sendo a técnica de Inoue4 a mais utilizada, ter a execução simplificada, traduzindo‐se em menor duração do procedimento e em incidência de complicações, com evolução tardia comparável às demais.5–7
Apesar da necessidade frequente de reintervenções após a VMP com sucesso, a sobrevida livre de morte cardiovascular, cirurgia de troca valvar ou insuficiência cardíaca classe funcional III ou IV é próxima de 50% em seguimento de até 20 anos, desfechos estes reportados por serviços dotados de grande experiência.8,9 Faz‐se necessário, porém, promover comparações entre os resultados obtidos com o procedimento por centros de referência e alta drenagem de pacientes, e por instituições de menor volume e casuística, tendo sido este o objetivo principal deste estudo.
MétodosPopulação do estudoA população do estudo foi constituída por uma coorte de 31 pacientes consecutivos portadores de estenose mitral de etiologia reumática moderada ou grave (área valvar mitral ≤ 1,5cm2), clinicamente sintomáticos (classe funcional > II), com morfologia valvar favorável, submetidos à VMP na Santa Casa de Marília, em Marília (SP), no período de setembro de 2006 a janeiro de 2015.
ProcedimentosSob sedação superficial e anestesia local, obtiveram‐se o acesso venoso femoral direito, com introdutor 7 F, e o acesso arterial em femoral esquerda, com introdutor 5 F. Registraram‐se, retrogradamente, as pressões em capilar pulmonar, tronco de artéria pulmonar, ventrículo direito, átrio direito, ventrículo esquerdo e aorta. A ventriculografia esquerda foi realizada em projeção oblíqua anterior direita a 30°, sendo o grau de regurgitação mitral estabelecido de acordo com a classificação de Sellers. Nos pacientes com mais de 40 anos, complementava‐se o exame com coronariografia.
Para a punção transeptal, utilizou‐se a técnica de Brockenbrough, sob monitoração pressórica contínua e usando o cateter pigtail, posicionado acima da valva aórtica como referência. Completada a punção do septo, o cateter de Mullins foi mantido na cavidade atrial esquerda, e administravam‐se 2.500 UI de heparina. Registrado o gradiente pressórico transvalvar mitral, introduzia‐se fio‐guia em espiral até o átrio esquerdo, seguido da dilatação do septo interatrial com dilatador 14 F. O tamanho do balão de Inoue era determinado pela fórmula apresentada pela equação:
diâmetro máximo do balão (mm) = [altura do paciente (m) × 10] + 10
O balão avançava sobre o fio‐guia, ficando sua extremidade distal próxima ao orifício valvar mitral. O balão era, então, insuflado parcialmente com 1 a 2mL de contraste diluído para facilitar sua flutuação através do orifício valvar e impedir sua passagem através das cordas tendíneas. Com o auxílio do estilete, o balão era dirigido, de forma a ultrapassar a valva mitral. A porção distal do balão era inflada, e o conjunto, recuado até sua ancoragem na face ventricular da valva mitral. Em seguida, a porção proximal do balão era inflada, conferindo uma aparência de ampulheta, até que, na insuflação completa, a constrição medial desaparecesse. O cateter pigtail era avançado para a cavidade ventricular esquerda, para a análise do gradiente mitral residual. Quando disponível, procedia‐se, nesta etapa, à avaliação ecocardiográfica transtorácica bidimensional. Caso o resultado fosse considerado inadequado, o balão era novamente introduzido, para insuflações adicionais e com maior volume. Ao término do procedimento, registravam‐se a manometria de câmaras direitas e a ventriculografia esquerda de controle. Ecocardiografia era realizada rotineiramente 24 a 48 horas após a VMP, sendo a área valvar mitral aferida pela planimetria.
Definições e desfechos de interesseO sucesso do procedimento foi definido pelo aumento da área valvar mitral ≥ 25% da área inicial e área valvar final ≥ 1,5cm, na ausência de insuficiência mitral grave (> 2/4) e de eventos adversos cardíacos ou cerebrovasculares graves, como morte, acidente vascular encefálico, tamponamento cardíaco ou cirurgia valvar mitral. Os desfechos avaliados no seguimento tardio foram morte cardiovascular e necessidade de nova intervenção na valva mitral, percutânea ou cirúrgica.
Análise estatísticaTodos os dados foram armazenados prospectivamente em um registro iniciado em 2006. A estimativa da probabilidade livre de eventos foi determinada de acordo com o método de Kaplan‐Meier. As variáveis qualitativas foram resumidas em frequências absolutas e porcentagens. Os dados quantitativos foram descritos em médias e desvios padrão.
ResultadosAs características clínicas e demográficas dos pacientes são apresentadas na tabela 1. A média de idade foi de 40,9 ± 14,2 anos, com predomínio do sexo feminino (96,8%). O escore médio de Wilkins e Block foi de 8,1 ± 1,2. Dentre os procedimentos, um foi realizado em gestante e cinco em portadores de comissurotomia mitral prévia. Após o ano de 2007, houve estabilização no volume médio de casos, com a realização de aproximadamente quatro VMP por ano.
Características clínicas e demográficas dos pacientes
Variáveis | n = 31 |
---|---|
Idade, anos | 40,9 ± 14,2 |
Sexo feminino, n (%) | 30 (96,8) |
Índice de massa corporal, kg/m2 | 26,4 + 6,0 |
Hipertensão arterial sistêmica, n (%) | 4 (12,9) |
Diabetes melito, n (%) | 2 (6,5) |
Dislipidemia, n (%) | 3 (9,7) |
Tabagismo, n (%) | 4 (12,9) |
Doença aterosclerótica coronariana, n (%) | 4 (12,9) |
Acidente vascular encefálico prévio, n (%) | 3 (9,7) |
Fibrilação atrial, n (%) | 3 (9,7) |
Gestante, n (%) | 1 (3,2) |
Comissurotomia mitral prévia, n (%) | 5 (16,1) |
Valvoplastia mitral prévia, n (%) | 0 (0,0) |
Escore valvar de Wilkins e Block | 8,1 ± 1,2 |
Insuficiência cardíaca, n (%) | |
Classe funcional II | 10 (32,2) |
Classe funcional III | 18 (58,1) |
Classe funcional IV | 3 (9,7) |
Ano do procedimento, n | |
2006 | 1 |
2007 | 8 |
2008 | 4 |
2010 | 5 |
2011 | 4 |
2012 | 4 |
2013 | 0 |
2014 | 4 |
2015 | 1 |
A totalidade dos procedimentos foi efetivada pela técnica de Inoue. A taxa de sucesso foi de 90,3%, sendo os três insucessos atribuídos à falha na punção transeptal (n = 2) e a tamponamento cardíaco (n = 1). Monitoramento por ecocardiograma transtorácico foi empregado em 80,6% dos casos. As características dos procedimentos e as informações ecocardiográficas estão expressas na tabela 2.
Características e resultados da valvoplastia mitral percutânea
Variáveis | n = 31 |
---|---|
Técnica de Inoue, n (%) | 31 (100,0) |
Via de acesso, n (%) | |
Veia femoral direita | 29 (93,5) |
Veia femoral esquerda | 2 (6,5) |
Duração do procedimento, minutos | 71,4 ± 21,7 |
Tempo de fluoroscopia, minutos | 18,1 ± 9,5 |
Ecocardiograma transtorácico periprocedimento, n (%) | 25 (80,6) |
Sucesso do procedimento, n (%) | 28 (90,3) |
Área valvar mitral pré‐valvoplastia, cm2 | 0,9 ± 0,2 |
Área valvar mitral pós‐valvoplastia, cm2 | 1,8 ± 0,3 |
Gradiente diastólico médio transvalvar pré‐valvoplastia, mmHg | 16,8 ± 4,9 |
Gradiente diastólico médio transvalvar pós‐valvoplastia, mmHg | 3,9 ± 2,2 |
Pressão média de artéria pulmonar pré‐valvoplastia, mmHg | 37,7 ± 12,6 |
Pressão média de artéria pulmonar pós‐valvoplastia, mmHg | 28,6 ± 9,2 |
Em acompanhamento médio de 6,8 ± 2,5 anos, foram constatados sete eventos (22,6%), sendo dois óbitos de etiologia cardiovascular, quatro cirurgias de troca valvar mitral e uma comissurotomia mitral. A estimativa da probabilidade livre de eventos em 8 anos pelo método de Kaplan‐Meier foi de 72,5% (fig. 1). Dentre o subgrupo de pacientes com comissurotomia mitral prévia (16,1%), obtivemos sucesso imediato na totalidade dos casos, sendo constatado, no seguimento tardio, um caso de reestenose com indicação de cirurgia de troca valvar mitral.
DiscussãoModalidade pioneira na abordagem não cirúrgica da doença valvar adquirida, a VMP constitui um procedimento complexo, associado a uma curva de aprendizagem, notadamente pela necessidade de punção transeptal. Resultados tardios de grandes séries de pacientes foram recentemente publicados, demonstrando se tratar de técnica madura capaz de oferecer benefícios em longo prazo no prognóstico dos pacientes.
Dentre 1.024 pacientes submetidos à VMP entre os anos de 1986 e 1995 na França, a sobrevivência livre de morte cardiovascular ou nova intervenção valvar mitral cirúrgica ou percutânea em 20 anos foi de 30,2%.9 Em acompanhamento médio de 11,6 anos de 482 pacientes que realizaram o procedimento em registro italiano, a taxa de eventos foi de 41,9%, à custa sobretudo da necessidade de cirurgia valvar mitral (27%).10 No Brasil, evoluções muito tardias envolvendo até 308 pacientes demonstram resultados duradouros, com probabilidade livre de reestenose em 20 anos em mais de um terço dos casos.11,12 Em comum, esses dados refletem a experiência de grandes centros de referência em intervenções estruturais, com elevado fluxo de pacientes.
Nossa casuística, embora modesta, exibe taxa de sucesso elevada, baixo índice de complicações e sobrevida livre de eventos comparável aos grandes centros.13 Alguns aspectos justificariam nossos achados. O principal deles é a seleção de pacientes favoráveis à aplicação da técnica, como idade não avançada, predomínio de ritmo sinusal (90,3%) e escore ecocardiográfico médio de 8,1 fatores estes sabidamente associados a melhor evolução tardia.9,12,14 De caráter especulativo, outra estratégia utilizada de forma recorrente e que poderia auxiliar na prevenção de complicações foi o monitoramento ecocardiográfico periprocedimento em 80,6% dos casos. Uma vez que o ecocardiograma no laboratório de intervenção fornece uma informação rápida e acurada da área valvar mitral e do grau de refluxo, podem‐se prevenir insuflações adicionais e a consequente instalação ou agravamento da insuficiência valvar.
Um subgrupo de pacientes submetidos à VMP de especial interesse é aquele com reestenose após comissurotomia mitral cirúrgica, uma vez que o tratamento percutâneo, quando factível, evita a troca valvular e suas consequentes implicações tardias. Porém, comissurotomia prévia é tradicionalmente considerada variável preditora de piores resultados imediatos e tardios pós‐procedimento.15 Nossos dados mostraram‐se favoráveis nessa população, em concordância com publicações mais atuais, que apontam sucesso imediato em mais de 80% dos casos e sobrevida livre de cirurgia mitral em 20 anos, em até um terço dos pacientes.16
A principal limitação do estudo foi o pequeno tamanho amostral e a reprodutibilidade de seus achados. Apesar do volume intermediário de procedimentos, os operadores envolvidos em sua realização participaram de forma direta, durante sua formação, de aproximadamente 30 VMP, cumprindo, assim, uma curva de aprendizagem. Com a queda na prevalência da estenose mitral reumática, a obtenção de proficiência em etapas do procedimento, como a punção transeptal, torna‐se prejudicada. No entanto, o advento de novas tecnologias de imagem e dispositivos aplicáveis em formas diversas de cardiopatias estruturais e degenerativas, a oclusão do apêndice atrial esquerdo em pacientes com fibrilação atrial e a atuação terapêutica nas arritmias têm o potencial de resgate da técnica de punção pela necessidade comum de acesso anterógrado ao átrio esquerdo.
ConclusõesOs resultados obtidos com a técnica de Inoue na realização de valvoplastia mitral percutânea em pacientes portadores de estenose mitral reumática em hospital terciário com volume intermediário de procedimentos estruturais foram comparáveis àqueles alcançados por centros de referência e alta drenagem de pacientes.
Fonte de financiamentoNão há.
Conflitos de interesseOs autores declaram não haver conflitos de interesse.
A revisão por pares é de responsabilidade da Sociedade Brasileira de Hemodinâmica e Cardiologia Intervencionista.