Cada vez mais, jovens transgénero procuram ajuda médica para os auxiliar na transição de género, com terapia hormonal e/ou cirurgia de redesignação sexual. Contudo, estes tratamentos limitam a fertilidade, podendo deixá‐los irreversivelmente inférteis. Estudos demonstram que a população transgénero deseja ter filhos biológicos e, para os auxiliar na concretização deste desejo de paternidade, existem técnicas de preservação da fertilidade, como a criopreservação de gâmetas, de embriões e de tecido ovárico ou testicular. Todavia, a par destas técnicas, existem questões éticas e vários desafios antes, durante e após estes procedimentos, que podem levar à rejeição destes métodos de preservação da fertilidade por parte dos jovens transgénero. Em suma, os profissionais de saúde devem estar devidamente informados sobre toda esta dinâmica, entre as terapias de transição de género e o seu impacto na fertilidade, para conseguir orientar melhor estes indivíduos na sua decisão.
Young transgender people increasingly seek medical help to assist them in their gender transition with hormone therapy and/or sex reassignment surgery. However, these treatments limit fertility and may make them irreversibly infertile. Studies show that the transgender population wishes to have biological children and, to help them achieve this desire for parenthood, there are techniques for preserving fertility, such as cryopreservation of gametes, embryos and ovarian or testicular tissue. However, alongside these techniques, there are ethical issues and several challenges before, during and after these procedures, that may lead young transgender people to reject these methods of preserving fertility. In conclusion, health professionals should be informed about all these dynamics between gender transition therapies and their impact on fertility, in order to better guide these individuals in their decision.
Segundo o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, 5ª edição, (DSM‐5), a disforia de género é caracterizada pelo sofrimento de um indivíduo devido à incongruência entre a sua identidade de género e o género designado no seu nascimento. Quanto ao termo transgénero, este se refere ao indivíduo que, de forma transitória ou persistente, se identifica com um género diferente do de nascimento. Por fim, o termo transexual refere‐se ao indivíduo que procura ou passa por uma transição social de género, envolvendo uma transição somática por tratamento hormonal e cirurgia genital de redesignação sexual1.
Quanto à prevalência de indivíduos transgénero, esta varia entre 0,005 a 0,014% para os do sexo masculino ao nascimento (mulheres transgénero) e entre 0,002 a 0,003% para os indivíduos do sexo feminino ao nascimento (homens transgénero). Estas taxas podem estar subestimadas, visto que nem todos os indivíduos transgénero procuram cuidados médicos1.
Após um adolescente ser diagnosticado como transgénero, pode iniciar a terapêutica médica que envolve a supressão da puberdade, com os agonistas da hormona libertadora de gonadotrofinas (GnRH). A Endocrine Society recomenda que o início deste tratamento seja apenas após o adolescente exibir as primeiras alterações físicas do início da puberdade, confirmadas pelos níveis de estradiol ou testosterona, mas não antes de atingir o estadio 2‐3 de Tanner2.
Posteriormente, quando o adolescente atinge os 16 anos, pode ser iniciada, gradualmente, a terapia de transição de género para induzir a puberdade do género oposto desejado. No caso dos homens transgénero é iniciada a testosterona, enquanto que nas mulheres transgénero é utilizado o estrogénio2.
Depois dos 18 anos e pelo menos um ano após a hormonoterapia, o adolescente pode ser referenciado para cirurgia de redesignação sexual2. No homem transgénero pode ser realizada mastectomia bilateral, vaginectomia, ooforectomia, histerectomia total e faloplastia2. Na mulher transgénero pode ser efetuada orquidectomia, penectomia, vaginoplastia e vulvoplastia3.
Material e métodosOs artigos revisados neste trabalho foram obtidos através duma pesquisa em bases de dados internacionais, como o PubMed, e foram selecionados tendo em conta a sua pertinência para os temas fertilidade e preservação da fertilidade em indivíduos transgénero.
Para identificar os documentos adequados foram utilizadas as seguintes palavras‐chave, segundo o Index Medicus (MeSH), “fertility preservation” e “transgender persons”. Ainda, através de referências e citações relevantes, foram encontrados outros artigos relacionados.
ObjetivosEsta revisão bibliográfica visa clarificar os efeitos na fertilidade dos tratamentos médicos e cirúrgicos de transição de género, assim como as diferentes técnicas disponíveis de preservação da fertilidade e os vários desafios e obstáculos a que estes indivíduos são sujeitos antes, durante e após todo este processo. Também serão abordadas questões éticas e a opinião pública acerca deste tema.
Consequências da transexualidade na fertilidadeO primeiro nível de tratamento com as terapias hormonais de supressão da puberdade, com os agonistas da GnRH, não só previne o aparecimento dos caracteres sexuais secundários, como também suspende a maturação das células germinativas. Após a interrupção desta terapêutica, aparentemente, a puberdade sucede normalmente, mostrando que os seus efeitos são reversíveis, e não nocivos para a fertilidade4,5.
No entanto, muitos transgénero iniciam os tratamentos com hormonas de transição de género simultaneamente com a terapêutica de supressão da puberdade5, pelo que as células germinativas nunca chegam a completar a sua maturação. Desta forma, torna‐se necessário discutir as opções de preservação da fertilidade (PF) antes do início dos agonistas da GnRH6.
Quanto ao segundo nível de tratamento com as hormonas de transição de género, na mulher transgénero a exposição prolongada a altas doses de estrogénio diminui a espermatogénese, diminuindo a contagem e a motilidade dos espermatozoides, podendo culminar em azoospermia7,8. No homem transgénero, o tratamento de masculinização com testosterona induz amenorreia, que pode ser reversível, atresia folicular e hiperplasia estromal do ovário9.
Contudo, pensa‐se que os efeitos das hormonas de transição de género podem ser reversíveis. Um estudo realizado com 41 homens transgénero reportou gravidezes após a toma prévia de testosterona, sendo que 80% destes menstruaram após 6 meses da interrupção da hormonoterapia, enquanto que 20% continuaram em amenorreia10. No entanto, ainda não foi estabelecida uma relação direta entre o tempo de exposição a estas hormonas de transição de género e a afetação permanente da fertilidade6.
Num outro ensaio clínico realizado com 28 mulheres transgénero, foi demonstrado que a qualidade das amostras de sémen diminuía com a toma de hormonas de transição de género. Foram comparados 3 grupos: um que nunca tinha realizado hormonoterapia, um que suspendeu o tratamento antes da colheita (entre 3 a 6,5 meses) e um que manteve a toma de estradiol. Verificaram que no grupo que manteve a hormonoterapia existia uma diminuição significativa na concentração e motilidade dos espermatozoides, com alguns casos de azoospermia. Desta forma, demonstraram que a descontinuação das hormonas de transição de género está associada a uma melhoria da qualidade das amostras de sémen, possibilitando o seu uso para inseminação intrauterina11.
A cirurgia de redesignação sexual, que inclui a remoção dos órgãos reprodutivos, resulta, inevitavelmente, em infertilidade irreversível12. Desta forma, a Endocrine Society recomenda que todos os transgénero devem ser informados e aconselhados sobre as opções de PF antes do início da terapia hormonal de transição de género e, no caso dos adolescentes, antes do início dos tratamentos de supressão da puberdade2.
Transexualidade e paternidadeNum estudo realizado com 156 adolescentes transgénero, entre os 14 e os 17 anos, em que se investigou o desejo de paternidade entre estes jovens, verificou‐se que 70,5% pretendem adotar e 35,9% desejam ter filhos biológicos. Foi demonstrado que apenas 20,5% destes jovens foram abordados acerca deste tema e somente 13,5% dos adolescentes discutiram os efeitos da hormonoterapia na fertilidade com um profissional de saúde. Todavia, a maioria dos participantes mostrou‐se interessada em aprender mais acerca das suas opções de PF13.
Desta forma, para se compreender o desejo dos indivíduos transgénero em relação à paternidade, foi efetuado um estudo, com 99 mulheres transgénero e 90 homens transgénero. Nesta investigação, são comparadas as respostas dadas pelos dois géneros, antes e após iniciar os tratamentos hormonais de transição de género14.
Neste ensaio clínico, verificou‐se que o desejo de ter filhos, antes de iniciar a hormonoterapia, era significativamente maior entre os homens transgénero (46,2%) comparativamente com as mulheres transgénero (15,4%). Em contraste, após iniciarem o tratamento hormonal, o desejo de ter filhos igualava‐se para ambos os géneros e cerca de metade dos participantes referia que imaginava ter filhos no futuro14.
Cerca de um terço dos participantes afirmou que teriam pelo menos pensado em preservar as sua células germinativas, antes de iniciar a hormonoterapia. Contudo, não o fizeram devido a razões técnicas. Em comparação, 76% dos participantes de ambos os grupos indicaram que teriam pelo menos pensado em PF antes da transição, após iniciar os tratamentos hormonais. Apenas uma pequena minoria afirmava que a razão pela qual não iniciaram técnicas de PF se devia ao facto de não terem sido informados acerca das suas opções14.
Por fim, num outro ensaio clínico, foi observado que os jovens transgénero, apesar da baixa adesão a técnicas de PF, após a transição médica com hormonas e a exploração de relações amorosas, sentiam‐se mais confortáveis com o seu corpo e, desta forma, mais capazes emocionalmente de considerar o desejo de paternidade no seu futuro15.
Técnicas de preservação da fertilidadeHomens transgéneroAtualmente, existem três opções de PF para os homens transgénero: a criopreservação de oócitos ou de embriões e a criopreservação de tecido ovárico.
Criopreservação de oócitos ou de embriõesAmbas as técnicas são eficazes e requerem que o doente esteja na puberdade ou pós‐puberdade. Contudo, existe um caso reportado de uma jovem de 13 anos, pré‐menarcal, sem o completo desenvolvimento da puberdade, que foi submetida a hiperestimulação do ovário e criopreservação de oócitos, com sucesso16.
Este processo envolve a estimulação controlada do ovário, com injeções diárias de FSH (hormona folículo‐estimulante) recombinante, por 9 a 11 dias, em simultâneo com um antagonista da GnRH e um inibidor da aromatase (letrozole), para lhes manter os níveis sistémicos de estradiol baixos e aumentar a adesão à terapêutica17,18.
Posteriormente, é necessário monitorar os folículos ováricos com ecografias transvaginais e avaliações ocasionais das hormonas séricas. É administrada 37h antes da colheita do oócito uma injeção de gonadotrofina coriónica humana recombinante (hCG‐rec) para induzir a maturação final do oócito. Por fim, a aspiração do folículo ovárico é realizada através de uma punção transvaginal. Após este processo, os oócitos são vitrificados17.
A criopreservação de embriões consiste igualmente em estimulação hormonal e aspiração do oócito. Porém, é necessário o uso posterior de técnicas de fertilização in vitro, com espermatozoides de um parceiro ou dador, para a conceção de um embrião e subsequente criopreservação12.
Esta técnica é ideal para um homem transgénero com um homem como parceiro. No entanto, se tiver uma mulher como parceira também há a possibilidade de recorrerem a um dador de espermatozoides.
A criopreservação de oócitos não requer fertilização na altura do armazenamento, o que providencia flexibilidade para o indivíduo19.
Criopreservação de tecido ováricoEsta técnica é ainda experimental, sendo a melhor opção para jovens transgénero em idade pré‐pubertária ou homens transgénero em que está contraindicada a estimulação ovárica20.
Tem como vantagem poder ser realizada aquando da cirurgia de redesignação sexual, com histerectomia e ooforectomia 21, e, ao contrário dos restantes métodos, a remoção do córtex ovárico preserva milhares de folículos primordiais, podendo ser realizada por laparoscopia ou laparotomia. Estes folículos primordiais contêm oócitos imaturos, o que representa um benefício em relação à criopreservação de oócitos ou embriões, pois não necessitam de estimulação hormonal e são significativamente menos suscetíveis a lesões com a criopreservação22.
Existem dois métodos para criopreservar o tecido ovárico: a congelação lenta ou a vitrificação. Um estudo realizado com cinco homens transgénero demonstrou que não há diferença significativa entre estas duas técnicas21. Posteriormente, o tecido ovárico preservado pode ser transplantado de volta para o dador (autotransplante) ou então os folículos podem ser cultivados in vitro22.
Mulheres transgéneroAtualmente, existem duas técnicas de PF para as mulheres transgénero: a criopreservação de espermatozoides ou a criopreservação de tecido testicular. Quanto às técnicas de recolha de espermatozoides, pode ser mediante a ejaculação ou então através da extração testicular de espermatozoides (TESE).
Criopreservação de espermatozoidesA criopreservação de espermatozoides é a opção mais simples e confiável. Os espermatozoides podem ser recolhidos através de masturbação, que é um método relativamente acessível e pode ser realizado em casa. Dependendo da qualidade dos espermatozoides, pode ser necessária mais do que uma amostra23. Quando o doente é incapaz de produzir uma amostra de sémen através da masturbação, devido, por exemplo, a disfunção ejaculatória, existem outras técnicas de colheita, como a estimulação vibratória, que deve ser a primeira escolha, por ser simples, não invasiva e fácil de aplicar, ou a eletroejaculação, sendo que para esta é necessária anestesia geral24.
A colheita destes gâmetas pode, ainda, ser realizada através de TESE. Esta técnica requer um procedimento cirúrgico com dissecção dos túbulos seminíferos, que pode ser realizada aquando da orquidectomia, em que se tenta recuperar espermatozoides para posterior criopreservação. É utilizada frequentemente em doentes com azoospermia obstrutiva/secretora ou oligospermia severa25.
Posteriormente, estes gâmetas criopreservados podem ser utilizados, sendo que o método de eleição irá depender do género do seu parceiro. Se o indivíduo tiver uma mulher como parceira, podem usar‐se técnicas como a inseminação intrauterina ou a fertilização in vitro. No caso de ter um homem como parceiro, pode utilizar‐se um oócito de uma dadora e uma mulher para gestação de substituição12.
Criopreservação de tecido testicularA criopreservação de tecido testicular é um método ainda experimental 26, que tem benefícios para as jovens transgénero em idade pré‐pubertária e para adolescentes19. Esta técnica requer um procedimento cirúrgico, podendo ser realizado aquando da cirurgia de redesignação sexual26. De seguida, o tecido testicular pode passar por um processo de maturação in vitro ou ser transplantado, sendo utilizadas técnicas de procriação medicamente assistida (PMA) para a conceção de um embrião. O transplante não será a melhor opção, pois restaura a função endócrina masculina, o que será um efeito indesejado para a mulher transgénero26.
Desafios dos tratamentos de preservação da fertilidadeDesafios na adesão aos tratamentos de preservação da fertilidadeVários estudos foram realizados para se compreender as dificuldades e barreiras a que a população transgénero é sujeita antes e após iniciar os tratamentos de PF. Na grande maioria destes ensaios clínicos é realçada uma escassa adesão e interesse por parte destes indivíduos para iniciar este processo, principalmente nos jovens transgénero, em que as taxas de adesão são inferiores a 5%15,27.
É ainda de destacar que existe uma maior adesão por parte das mulheres transgénero do que dos homens15,27. Este fenómeno foi explicado por alguns destes doentes como sendo devido aos procedimentos invasivos15. Em homens transgénero, a PF requer a toma de injeções hormonais diárias para estimulação folicular, que deve ser monitorada por ecografia transvaginal, sendo, posteriormente, necessária a recolha dos oócitos por aspiração do líquido folicular também por ultrassonografia transvaginal28. Em contraste, neste estudo nenhuma das mulheres transgénero referiu, como barreira, o desconforto físico relacionado com a produção de uma amostra de sémen15.
Num estudo realizado com 78 doentes, com a média de 15,2 anos, as razões pelas quais os restantes indivíduos recusaram o tratamento foram: 45,2% porque planeavam adotar, 21,9% porque nunca quiseram ter filhos, 8,2% porque iria ser muito dispendioso, 1,4% reportou que a masturbação para conseguir uma amostra de sémen ia ser muito desconfortável e 1,4% porque iria atrasar a terapia hormonal de transição de género27.
Apesar de alguns jovens terem recusado devido ao facto de estes tratamentos de PF atrasarem o início da hormonoterapia, é importante salientar que estas técnicas podem durar apenas 24‐48 horas, no caso das mulheres transgénero, e 1‐2 semanas, no caso dos homens transgénero27. Todavia, os homens transgénero que estão sob hormonoterapia com testosterona têm de descontinuar esta medicação até ao recomeço da menstruação para, posteriormente, poderem iniciar a terapia hormonal de estimulação do ovário, que normalmente leva 3‐6 meses17.
Um ensaio clínico semelhante foi realizado com 35 mulheres transgénero, com média de 14,8 anos, em que averiguaram a taxa de adesão para criopreservação de espermatozoides. Apenas 38% dos participantes tentaram PF e 33% não o puderam fazer devido à sua idade pré‐pubertária. As razões para a recusa do tratamento foram: porque não queriam ter filhos (17%), porque se sentiam desconfortáveis com a masturbação (17%), porque planeavam adotar (13%) ou porque não se sentiam confortáveis com a ideia de serem pais biológicos de uma criança (4%)29.
Existem ainda outros desafios que afetam tanto os homens como as mulheres transgénero, tais como a falta de acesso à informação, os custos sobre as técnicas de PF, o estigma social e a discriminação. Torna‐se assim de fulcral importância que os profissionais de saúde providenciem informação, livre de estigma, aos seus doentes acerca dos efeitos das terapias de transição de género sobre a fertilidade e as várias técnicas disponíveis de preservação da mesma30.
Recentemente, foi realizado um estudo no qual se perguntou a profissionais de saúde que trabalham com jovens e adultos transgénero acerca dos principais desafios que estes experienciam durante o aconselhamento sobre a fertilidade e as várias opções de preservação da mesma. Desta forma, foi mencionada como uma das maiores barreiras a falta de conhecimento acerca das técnicas e dos seus resultados a longo‐prazo, realçando a necessidade da formação dos profissionais sobre esta temática31. Em contraste, um outro ensaio clínico demonstrou que os profissionais de saúde, apesar de exibirem um elevado nível de conhecimento (> 80%) e de cerca de 95% afirmarem que seguem as recomendações da Endocrine Society, este conhecimento não reflete a capacidade de aconselhar estes jovens, afirmando que a falta de clareza em relação ao impacto da hormonoterapia na fertilidade prejudica o aconselhamento destes indivíduos32.
Desafios após o início dos tratamentos de preservação da fertilidadeNum outro estudo realizado para analisar as reações e estratégias de coping após o início dos procedimentos de PF, em homens transgénero, foi verificado que a examinação genital, as alterações físicas e psicológicas associadas à descontinuação da testosterona e o início das hormonas de estimulação dos ovários despoletaram disforia de género na maior parte dos doentes. Algumas destas alterações físicas e psicológicas relatadas foram a mudança de humor, a feminização do corpo, a alteração do cheiro, a agudização da voz e o retorno da menstruação. Esta última alteração foi descrita como a pior parte do processo, porque lhes relembrava o género ao qual não sentem pertencer17.
A examinação pélvica e a exposição do corpo foi algo que os deixou desconfortáveis e vulneráveis, pois vários participantes tinham problemas prévios com a nudez e os seus órgãos genitais. O facto de após o profissional de saúde os ver como um homem antes da examinação, se despir e expor como uma mulher criou‐lhes angústia, assim como o uso de palavras específicas do género feminino, como óvulos, vagina, ovários e útero. Quanto à ultrassonografia transvaginal, esta despoletava emoções negativas que descreviam como “tornei‐me numa mulher fisicamente”17.
As estratégias de coping utilizadas pelos participantes foram diversas. Alguns focavam‐se no propósito destas técnicas de PF, que é a possibilidade de poderem ter filhos biológicos no futuro. Outros recorreram a amigos e família para suporte emocional, apesar de alguns não o fazerem porque não queriam ser vistos numa situação feminina tão vulnerável17.
Os resultados deste estudo mostraram que a PF, com criopreservação de oócitos, tem um impacto negativo nos homens transgénero, pois despoleta disforia de género, devido ao facto de os procedimentos estarem fortemente relacionados com o fenótipo feminino17.
Desafios na utilização dos gâmetas criopreservadosNo caso da mulher transgénero, após a criopreservação de espermatozoides, a sua orientação sexual vai influenciar a maior ou menor complexidade no uso dos gâmetas preservados. Se a mulher transgénero tem uma mulher como parceira, estas podem reproduzir‐se através de inseminação intrauterina, fertilização in vitro ou pela técnica de injeção intracitoplasmática de espermatozoides. Quando a mulher transgénero tem um homem como parceiro, as suas opções reprodutivas são mais complexas, pois necessitam de uma dadora de oócitos e uma gestante de substituição33.
Em Portugal, segundo a lei n°25/2016, a gestação de substituição apenas é permitida no caso de ausência de útero, de lesão ou de doença deste órgão que impeça de forma absoluta e definitiva a gravidez. Tem de ser de natureza gratuita, só pode ser autorizada através de uma técnica de PMA com recurso aos gâmetas de, pelo menos, um dos respetivos beneficiários, não podendo a gestante de substituição, em caso algum, ser a dadora de qualquer oócito34.
Quanto aos homens transgénero, estes têm a possibilidade de poder carregar a própria gravidez mesmo após terem realizado uma ooforectomia, contudo sem histerectomia. No entanto, terão de suspender o tratamento de transição de género com a testosterona10,35. Nestes indivíduos, a presença ou ausência de ovários não influencia a probabilidade de se conseguir uma gravidez, pois existe a possibilidade de serem administradas hormonas exógenas35.
Porém, um dos maiores desafios no uso dos gâmetas preservados ocorre quando o homem transgénero decide carregar a própria gravidez. Esta situação pode despoletar disforia de género, devido à associação da gravidez com o género feminino, como também depressão pós‐parto10. Em alternativa, como no caso da mulher transgénero, a gravidez pode ser carregada por uma gestante de substituição ou pela sua parceira35.
Questões éticasAo discutir as opções para preservação da fertilidade em jovens transgénero podem surgir preocupações éticas. Em primeiro lugar, quando abordamos temas sobre a população pediátrica, levantam‐se dilemas acerca da capacidade das crianças ou dos adolescentes de participar de forma significativa, na tomada de decisão em relação aos seus tratamentos médicos. Contudo, apesar de a escolha de iniciar técnicas de PF ser feita idealmente por um indivíduo na idade adulta, adiar esta tomada de decisão pode resultar na perda de uma janela temporal na qual estas técnicas terão, provavelmente, mais sucesso36.
Em segundo lugar, o facto de serem os pais a tomar decisões pelos seus filhos relativamente à fertilidade, representa uma das maiores preocupações éticas. Na maioria dos casos, estes jovens não estão aptos, quer a nível emocional quer a nível intelectual, para compreenderem as implicações futuras da preservação da sua fertilidade6. Sem dúvida que este tema se torna uma preocupação a nível ético, principalmente quando existem opiniões divergentes. Por exemplo, quando o parecer dos pais difere do dos filhos ou quando difere entre os próprios pais, que partilham direitos legais na tomada de decisão36.
Em terceiro lugar, existe uma grande apreensão pelo facto de as técnicas para a PF não garantirem a estes indivíduos terem filhos geneticamente relacionados no seu futuro36. Para os jovens transgénero, peripubertais, a criopreservação de tecido ovárico ou testicular, com vista à maturação in vitro deste tecido pré‐pubertário, é a técnica de eleição. Todavia, ainda é uma técnica experimental, podendo expor estes indivíduos a risco cirúrgico, sem que lhes garanta uma futura fertilidade6,36.
Por último, o proprietário do material biológico deve ser estabelecido e documentado antes da criopreservação. No caso dos adultos, estes especificam o destino do material em caso da sua morte, podendo este ser destruído, doado para investigação ou para terceiros. Quanto aos embriões produto de gâmetas com o seu parceiro, em caso de óbito ficam a pertencer a este último. Por fim, na população pediátrica, em caso de falecimento, o tecido é destruído ou doado para investigação36.
Opinião públicaRecentemente, foi realizado um estudo para averiguar a opinião dos membros da Sociedade de Tecnologia de Reprodução Assistida (SART), nos EUA, acerca da expansão da cobertura do seguro médico para populações vulneráveis que procuram técnicas de PMA, como, por exemplo, doentes com cancro, casais em que ambos têm um gene recessivo e indivíduos transgénero. Verificaram que a maioria (> 95%) apoiava o alargamento do seguro para os primeiros dois grupos, enquanto que apenas 62,3% eram a favor desta mudança para os indivíduos transgénero. Porém, esta percentagem corresponde a mais de metade dos participantes37.
Um outro ensaio clínico foi realizado com 1.111 residentes nos EUA, entre 18‐75 anos, para avaliar a opinião pública sobre os tratamentos de fertilidade e a criopreservação de gâmetas em indivíduos transgénero38.
Foram estudadas várias populações e verificaram que os ateus ou agnósticos têm maior probabilidade de apoiar este tema do que os cristãos‐protestantes. Averiguaram, ainda, que os mais jovens, minorias sexuais, divorciados, viúvos, democratas e pessoas sem filhos mostraram uma maior probabilidade de apoiar a população transgénero na preservação da sua fertilidade. Posteriormente, analisaram a diferença entre pessoas que são contra pais homossexuais ou conhecem homossexuais que não têm filhos e as pessoas que conhecem homossexuais com filhos e verificaram que estes últimos eram mais favoráveis à PF em indivíduos transgénero38.
Os participantes mostraram maior probabilidade de apoiar a preservação de gâmetas no adulto transgénero do que no transgénero menor de idade. Mencionaram que os jovens ainda são muito imaturos para tomar este tipo de decisões. Ao longo deste estudo, verificou‐se que os participantes não se mostraram tão adeptos a que os profissionais de saúde ajudassem os homens transgénero que mantiveram o útero a carregar a própria gravidez38.
Por fim, também foi possível concluir que a maior parte dos participantes neste estudo apoia a PMA e que 76,2% concordaram que os profissionais de saúde deveriam ser capazes de ajudar a população transgénero a ter filhos biológicos38.
ConclusãoAs diversas terapêuticas de transição de género afetam de forma desigual a fertilidade dos indivíduos transgénero. A primeira linha de tratamento, com os agonistas da GnRH, não é nociva para a fertilidade, dado que as consequências na supressão da puberdade são reversíveis. Em contraste, as hormonas de transição de género afetam a reprodutibilidade. Contudo, os seus efeitos não estão bem esclarecidos e foi comprovada reversibilidade em alguns casos. Todavia, muitos jovens transgénero iniciam estas duas terapêuticas simultaneamente, pelo que as células germinativas nunca chegam a completar a sua maturação, tornando‐se necessário discutir as opções de PF antes do início dos agonistas da GnRH. Relativamente à cirurgia de redesignação sexual, esta resulta inevitavelmente em infertilidade.
Desta forma, a preservação dos gâmetas deve ser pensada em adolescentes transgénero que desejam iniciar a terapêutica com hormonas de supressão da puberdade para prevenir o aparecimento irreversível dos caracteres sexuais secundários indesejados.
Vários aspetos irão interferir na escolha entre as diferentes técnicas de PF, tais como a fase pubertária, a terapêutica hormonal, os procedimentos invasivos, a disforia de género, a orientação sexual, a gestação de substituição e os dadores de espermatozoides ou de oócitos.
Em conclusão, existem vários métodos de PF para os indivíduos transgénero que os ajudam a realizar o seu desejo de ter filhos geneticamente relacionados. É de realçar a extrema importância do acompanhamento de uma equipa multidisciplinar, que assegure o esclarecimento do doente e da sua família relativamente aos riscos, a médio e longo prazo, das terapêuticas de transição de género e todas as potenciais opções de PF.
Responsabilidades éticasProteção de pessoas e animaisOs autores declaram que para esta investigação não se realizaram experiências em seres humanos e/ou animais.
Confidencialidade dos dadosOs autores declaram que não aparecem dados de pacientes neste artigo.
Direito à privacidade e consentimento escritoOs autores declaram que não aparecem dados de pacientes neste artigo.
Conflitos de interesseOs autores declaram que não existe conflito de interesses e que não foi recebido nenhum financiamento para este projeto.
Ao Dr. Nuno Louro e ao Prof. Dr. La Fuente de Carvalho, pela compreensão, pelos conselhos e pela total disponibilidade ao longo deste percurso. Aos meus pais e ao meu irmão, pelo apoio incondicional. Ao André, por toda a paciência e por sempre acreditar em mim. Aos meus amigos, com um especial agradecimento ao Gustavo, por todo o apoio disponibilizado e pelo incentivo durante este projeto.