O desafio de atingir as metas nutricionais de recém‐nascidos com extremo baixo peso (RNEBP) e, simultaneamente, tentar evitar complicações graves e efeitos adversos, tais como a enterocolite necrosante (ECN), pode ser superado com o uso do leite humano.1,2 Essa dieta atende às necessidades nutricionais e, também, fornece os benefícios de saúde para o receptor.
Leite materno da própria mãeDemonstra‐se que uma dieta composta de leite materno da própria mãe é benéfica para RNEBP pelo seu papel na proteção contra eventos relacionados com infecções, tais como a sepse de início tardio, a ECN e a infecção do trato urinário.3‐7 Verificou‐se que RNEBP alimentados com leite humano ficam protegidos, mesmo após a alta hospitalar. Há menor número de re‐hospitalizações devido a doenças respiratórias por quase três anos, em RNEBP que receberam leite predominantemente humano durante a sua permanência nas unidades de terapia intensiva neonatal.8
Há uma redução de 50% na frequência de ECN e/ou de sepse tardia e uma duração menor da internação em RNEBP que recebem volume diário médio de leite materno da própria mãe superior a 50mL/kg em comparação com leite materno da própria mãe e fórmula láctea infantil ou apenas fórmula infantil.3 Tal observação sugere que a dose de leite materno da própria mãe (maior do que cerca de 50mL/kg/dia) é importante para detectar o seu efeito benéfico na saúde de RNEBP.3
O conceito de um efeito protetor “dose‐dependente” do leite humano foi relatado em outras publicações. RNEBP que receberam mais do que 50% de leite materno da própria mãe nos primeiros 14 dias após o nascimento apresentaram uma redução de 83% no desenvolvimento subsequente de ECN, comparados com aqueles que receberam uma dieta de menos de 50% de leite materno da própria mãe.9 A ingestão diária acima de 50mL/kg durante quatro semanas também se associou a uma taxa menor de sepse neonatal.10 O benefício dose‐dependente não deve ser considerado como máximo com a ingestão de 50% de leite materno da própria mãe. Em uma grande análise retrospectiva de 1.272 crianças, a probabilidade de ECN ou morte após 14 dias foi reduzida por um fator de 0,83 para cada aumento de 10% na proporção de ingestão total de leite humano, o que sugere a importância da dose e da predominância de uma dieta de leite humano.11 A introdução mais precoce de leite materno da própria mãe que perfaça mais de 50% do consumo total de leite se associa à redução subsequente da incidência de ECN, sepse e/ou morte durante os primeiros 60 dias de vida.6 Um efeito protetor ainda mais forte é observado quando a ingestão de leite humano da própria mãe supera 50% do volume total da dieta enteral entre o 6° e o 10° dia após o nascimento.6 Esses estudos sugerem que, na população de RNEBP, os efeitos protetores iniciais importantes de uma dieta de leite humano duram por longo tempo.
Há efeitos do leite humano no trato gastrintestinal de RNEBP que respondem pela maior aceitação desse leite quando comparado com a fórmula. Há menos resíduos gástricos e períodos menores em que a alimentação enteral foi suspensa em recém‐nascidos que receberam leite humano da própria mãe vs. fórmula láctea.3 Alguns marcos, como tempo para atingir dieta enteral plena e duração da internação hospitalar, são significativamente reduzidos com a alimentação com leite humano da própria mãe. Esses marcos são atingidos em quase o dobro de dias quando o percentual de ingestão de leite humano é inferior a 20%, em comparação com uma ingestão acima de 80%.12
Também tem sido demonstrado que a dieta de leite humano em RNEBP protege contra a retinopatia da prematuridade e contra a sua forma mais severa, o descolamento da retina.13,14 Essas observações apoiam a hipótese de que o leite humano tenha função antioxidante, assim como contenha fatores que afetam a angiogênese.
Patogênese da ECNEstudos clínicos demonstram que o leite humano protege o RNEBP contra a ECN. Para entender essa relação é importante descrever uma visão geral da patogênese da ECN. A etiologia da ECN é desconhecida, mas provavelmente é causada por múltiplos fatores, em um hospedeiro que se presume ser geneticamente suscetível. Fatores implicados na sua patogênese incluem prematuridade (função intestinal imatura), alimentação com leite (substrato), colonização microbiana, defesa da mucosa deficiente e, em algum grau, instabilidade circulatória. Esses fatores atuam em conjunto e geram a lesão da mucosa, o que parece ser o evento inicial.15,16
A colonização bacteriana desempenha um papel fundamental na patogênese da ECN. A colonização do trato gastrintestinal normal ocorre rapidamente após o parto. A colonização normal é alterada pelo ambiente da unidade de terapia intensiva neonatal. A motilidade intestinal imatura predispõe ao crescimento excessivo de bactérias, que é irrestrito devido à coexistência da imaturidade da defesa da mucosa no hospedeiro. O aumento da permeabilidade gastrointestinal potencializa a translocação bacteriana. A sinalização intestinal torna‐se defeituosa. Assim, tais fatores apoiam e promovem a invasão de microrganismos patogênicos na circulação sanguínea e ativam a resposta imunológica, com intensa resposta inflamatória intestinal.
Ao contribuir para a patogênese da ECN, a dieta com leite serve como substrato para a proliferação bacteriana no intestino. Os ácidos orgânicos, os ácidos graxos de cadeia curta, o dióxido de carbono e o hidrogênio gasoso são produzidos por fermentação bacteriana dos nutrientes que compõem o leite. Esses produtos da fermentação podem ser tóxicos para o epitélio intestinal e aumentar a distensão intestinal. Em estudos com animais com modelo de alça intestinal, a adição da caseína cria um ambiente favorável para a infiltração de elementos celulares e compostos vasoativos e leva à lesão da mucosa.17
O leite humano é protetorOs prematuros são suscetíveis ao desenvolvimento da ECN porque os sistemas imunológicos e gastrintestinais imaturos resultam em alterações da defesa do hospedeiro. Os fatores que contribuem para a resistência inata incluem pH luminal, enzimas, mucinas, barreiras epiteliais e motilidade do intestino, bem como fatores antimicrobianos não específicos, tais como lactoferrina e lisozima. Fatores presentes no leite humano desempenham um papel protetor e reduzem a inflamação e a subsequente invasão de espécies bacterianas patogênicas no trato gastrintestinal. Esses fatores incluem a enzima acetil‐hidrolase do fator ativador de plaquetas (PAF‐AH) que interrompe a sequência de ativação imune promovida pelo PAF. As defesas locais do hospedeiro são melhoradas pela adição de IgA secretora, lactoferrina, lisozima e citocinas (IL‐10) do leite humano. Componentes do leite humano, tais como o fator de crescimento epidérmico, os nucleotídeos e a glutamina, estimulam a maturidade intestinal.18 Antioxidantes do leite humano, como a vitamina E, o caroteno e a glutationa, também reduzem o estresse oxidativo.
Oligossacarídeos do leite humano (HMO) são açúcares de cadeia longa que constituem o terceiro componente mais prevalente no leite humano. Oligossacarídeos do leite humano são agentes prebióticos que, presumivelmente, atuam por meio do aumento da proliferação de espécies de bifidobactérias benéficas e previnem a adesão de bactérias patogênicas ao epitélio intestinal. Em modelos animais, estudados em condições que produzem ECN, observa‐se que os oligossacarídeos do leite humano previnem a lesão intestinal, em comparação com os oligossacarídeos sintéticos. Com efeito, as dietas com leite humano ou fórmula suplementadas com oligossacarídeos do leite humano previnem a lesão intestinal, enquanto dietas com fórmula com ou sem oligossacarídeos sintéticos não conseguem impedir a lesão intestinal no modelo experimental.19 A ciência dos oligossacarídeos do leite humano como agentes protetores luminais é intrigante.
Os probióticos reduzem a ECN em neonatos porque melhoram a função da barreira intestinal, modulam o sistema imunológico e suprimem o crescimento ou a ligação epitelial e a invasão de bactérias patogênicas. É provável que os probióticos forneçam uma colonização bacteriana comensal similar ou aditiva àquela promovida pelo leite humano.
ConclusãoEsses dados apoiam as recomendações da Academia Americana de Pediatria, que incentiva o uso de leite materno para todos os recém‐nascidos de extremo baixo peso.2 Tal recomendação é feita para impedir o uso de fórmula com proteína bovina intacta na população de prematuros. Tendo em vista que os novos fortificantes do leite humano que não contêm proteína bovina intacta estão agora disponíveis, existe a possibilidade de eliminar a ECN com uma dieta exclusiva de leite humano da própria mãe.
FinanciamentoO estudo não recebeu financiamento.
Conflitos de interesseO autor declara não haver conflitos de interesse.