Descrever um relato clínico pré e pós-intervenção neurofuncional num caso de agenesia de corpo caloso.
Descrição do casoApós o nascimento prematuro foi detectada agenesia do corpo caloso e hipoplasia dos ventrículos laterais e vérmis cerebelar. Aos dois anos iniciou a intervenção proposta neste estudo. Uma avaliação neurofuncional, além da Medida da Função Motora Grossa e o Sistema de Classificação da Função Motora Grossa, foi utilizada para obter o desempenho funcional da criança. Na avaliação inicial havia ausência de reações de equilíbrio e de transferências posturais, e déficits no controle manual e de tronco. A intervenção foi realizada com enfoque na função, priorizando o controle postural e a orientação da familia para continuidade do tratamento em ambiente domiciliar. Após a intervenção houve melhora das reações corporais, controle postural e aquisição de movimentos de mãos e membros. A intervenção também mostrou melhora no desempenho funcional.
ComentáriosO controle postural e as transferências de posições foram beneficiadas por intervenção neurofuncional nesse paciente com agenesia de corpo caloso. O enfoque baseado na função com atividades que envolvem fortalecimento muscular e treinamento das reações de equilíbrio influenciaram a aquisição do comportamento motor mais seletivo.
To describe a clinical report pre- and post-neurofunctional intervention in a case of agenesis of the corpus callosum.
Case descriptionPreterm infant with corpus callosum agenesis and hypoplasia of the cerebellum vermis and lateral ventricles, who, at the age of two years, started the proposed intervention. Functional performance tests were used such as the neurofunctional evaluation, the Gross Motor Function Measure and the Gross Motor Function Classification System. In the initial evaluation, absence of equilibrium reactions, postural transfers, deficits in manual and trunk control were observed. The intervention was conducted with a focus on function, prioritizing postural control and guidance of the family to continue care in the home environment. After the intervention, there was an improvement of body reactions, postural control and movement acquisition of hands and limbs. The intervention also showed improvement in functional performance.
Comments: Postural control and transfers of positions were benefited by the neurofunction intervention in this case of agenesis of the corpus callosum. The approach based on function with activities that involve muscle strengthening and balance training reactions, influenced the acquisition of a more selective motor behavior.
O sistema nervoso central (SNC) é responsável pela interpretação e pela transmissão de informações sensitivas, cognitivas e motoras. Em sua região central, encontra-se o corpo caloso (CC), que transmite essas informações entre os hemisférios cerebrais1 por meio de um trato único e exclusivo para a integração.2
Alterações caracterizadas por gênese parcial (disgenesia) ou ausência total (agenesia) do CC podem gerar uma desconexão inter-hemisférica.3,4 Estima-se que a incidência de agenesias e disgenesias de corpo caloso (ADCC) seja de um a cada mil nascidos vivos,5 com prevalência de 2,3% na America do Norte e ainda desconhecida em países latinos.4
As malformações congênitas do SNC, de forma geral, podem estar relacionadas a outras malformações (cerebrais ou de outros segmentos) em 21% dos casos.6 Na ADCC, por exemplo, podem ocorrer concomitantemente anomalias extra e intracerebrais,7 como hidrocefalia,8 convulsões,9 síndromes,10 malformações do SNC,11 entre outras.
Essas doenças associadas podem potencializar ou adicionar outras características clínicas aos casos de ADCC. Assim, déficits cognitivos, sociais, visuais, auditivos, motores e somatossensoriais12 são típicos em indivíduos acometidos. Algumas crianças com disgenesia de CC podem apresentar um desenvolvimento típico, mas com alguma deficiência no comportamento psicossocial.13 Entretanto, observa-se comumente que crianças com ADCC exibem desenvolvimento motor atrasado, o que pode ser evidenciado em desajustes na realização de habilidades e déficits de coordenação bilateral e de controle manual.11,14
A intervenção motora busca reduzir as alterações decorrentes do distúrbio neurológico, tendo em vista a possibilidade de exploração da plasticidade do SNC mediante intervenção específica.15 Além da procura por técnicas que promovam a reabilitação, há uma preocupação relativa às formas de intervenção a serem realizadas, as quais devem visar à capacidade funcional.16 Considerando que a reabilitação tem papel primordial na promoção da funcionalidade e da estimulação do desenvolvimento motor, este estudo teve como objetivo descrever um caso clínico antes e depois de intervenção neurofuncional numa criança com agenesia de corpo caloso (ACC).
Descrição do casoEste estudo foi realizado na Clínica Escola de Fisioterapia do Centro de Ciências da Saúde e do Esporte (CEFID) da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), sendo aprovado pelo Comitê de Etica em Seres Humanos sob o parecer 263/2009 e consentido pelo responsável da criança.
Durante o acompanhamento pré-natal, o achado ultrassonográfico evidenciou que a criança apresentava hidrocefalia. No sexto mês de gestação, diagnosticou-se pré-eclampsia, que resultou em parto cirúrgico de emergência. A criança do sexo masculino nasceu de 35 semanas e 4 dias de idade gestacional, com Apgar de 1° e 5° minutos de sete e oito, respectivamente, peso de 2020g, comprimento de 48cm, perímetro cefálico de 34cm e pequeno para a idade gestacional. Durante o período de 17 dias de internação na UTI neonatal, detectaram-se agenesia do corpo caloso (ACC) e hipoplasia dos ventrículos laterais e vérmis cerebelar (fig. 1).
Após a alta da unidade neonatal, o lactente foi submetido à intervenção precoce aos três meses de idade corrigida na Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais de Florianópolis. Durante os dois primeiros anos de vida, passou por procedimentos de remoção cirúrgica de hérnia inguinal, polidáctilo, testículo esquerdo (atrofia) e adenoide. Aos dois anos de idade, iniciaram-se as primeiras crises convulsivas, tratadas atualmente com fármacos. O estudo genético, embora não conclusivo, pode ser compatível com síndrome acrocalosal, de acordo com o relato médico.
Aos dois anos e seis meses de idade cronológica, foi admitido para tratamento na clínica escola do CEFID/UDESC. Para a avaliação da criança na insituição foi utilizada uma ficha neurofuncional infantil, composta por: 1) identificação (dados pessoais); 2) anamnese (história clínica pregressa e atual, antecedentes familiares, doenças associadas e hábitos de vida); 3) comportamento motor (reflexos e reações, padrão motor que envolvia a descrição de simetrias, transferências, movimentação e ajustes posturais em todas as posições); e 4) exame físico (tônus, deformidades, desvios posturais e sensibilidade). A Medida da Função Motora Grossa (GMFM-88)17 e o Sistema de Classificação da Função Motora Grossa – Ampliado & Revisto (GMFCS–E&R),18 publicado em versão brasileira,19 foram aplicados para avaliar o desempenho funcional pré e pós-intervenção.
Na avaliação inicial, a criança apresentava tônus normal em membros superiores (MMSS) e flutuante em membros inferiores (MMII). Apesar de não ter deformidade articular, o paciente mostrava tendência ao pé equino valgo. Além disso, as reações de Landau, de para-quedas, de retificação labiríntica, cervical e corporal, de proteção de MMSS para trás, de equilíbrio em quatro apoios, em pé e na posição sentada apresentavam-se ausentes.
Em relação aos padrões motores: a) o membro superior permaneceu embaixo do corpo na transferência de supino para prono; b) houve ausência de apoio de MMSS na posição prona, com extensão cervical incompleta, alcance de objetos pobre e padrão extensor de MMII; c) não realizou transferência de supino para sentado; d) não se manteve sentado com controle de tronco e mãos livres por longo tempo ou em movimentos para trás; e) não realizou transferências a partir da posição sentada; f) apresentou descarga de peso em posição ortostática e simulou passos com apoio em cintura pélvica; g) realizou autolocomoção para curtas distâncias utilizando o rolar e, em prono, tentou rastejar sem o movimento alternado de MMII; h) ausência de controle bimanual com objetos grandes, unimanual deficitário e descoordenação para alcance de objetos. No GMFM inicial, os pontos obtidos foram basicamente em posturas mais baixas (prono, supino e sentado); porém, mesmo nessas posições, não obteve pontuação máxima, já que não atingiu transferências posturais, equilíbrio e controle seletivo de membros. De acordo com o GMFCS-E&R, a criança foi classificada no nível IV (automobilidade com limitações) na faixa etária correspondente entre dois e quatro anos.
Com base nessa avaliação, foram traçados os objetivos da intervenção neurofuncional: melhorar o apoio de MMSS em prono, a coordenação e o manuseio de objetos bi e unimanual; promover a extensão de MMII na posição sentada; adquirir novas posturas (quatro apoios, ajoelhado, semiajoelhado e em posição ortostática) e promover a passagem ativa entre elas. Visou-se ainda desenvolver equilíbrio, reações de proteção e descarga de peso em todas as posições, assim como fortalecimento dos membros e dos abdominais. Durante a intervenção, buscou-se prevenir as alterações na amplitude do movimento e das deformidades.
A intervenção neurofuncional baseou-se na utilização de recursos cinesioterapêuticos, sensoriais e proprioceptivos, em sessões de 40 minutos, duas vezes por semana. A cinesioterapia consistia em fortalecimento muscular, alongamento e mobilização dos MMSS e MMII, treino de manutenção e troca de posturas, descarga de peso, bem como estímulos às reações de equilíbrio, retificação e proteção. Durante o atendimento houve participação efetiva da mãe, transmitindo feedback para a terapeuta ao descrever atividades desenvolvidas pelo filho, dando continuidade ao tratamento em casa, realizando exercícios ensinados e oferecendo ao filho maior liberdade de movimento. Para a intervenção foram utilizados um tablado de madeira, colchonetes, bancos, brinquedos, cunha, rolos e bolas suíças.
A reavaliação utilizou os mesmos intrumentos iniciais e occoreu após 15 intervenções, aos 2 anos e 10 meses da criança. Observou-se que a tendência à deformidade em pé equino valgo ainda persistia, mas o alongamento, o posicionamento e as instruções para o cuidador possibilitaram que a deformidade não se instalasse. As reações de equilíbrio foram favorecidas pela intervenção, de forma que houve aquisição destas em quatro apoios, em pé e na posição sentada. Foram adquiridas as reações de proteção, de retificação labiríntica, cervical e corporal.
Em relação ao comportamento motor, houve aquisição de movimentos e melhora do tempo de permanência postural. Dessa forma, obteve-se: a) em prono: apoio total de MMSS sobre as mãos e realizando alcance; b) sentado: melhora do equilíbrio para trás, permitindo sentar em banco e de lado, realizando manuseio de objetos; c) em quatro apoios: permaneceu com os cotovelos estendidos e arrastou-se com os MMII; d) ajoelhado: sustentou ativamente com suporte em cintura pélvica ou com apoio em banco baixo; e) semiajoelhado: manteve-se ativamente por breve tempo; f) em posição ortostática: início da marcha com apoio do terapeuta em mãos ou cintura pélvica. Após treinamento houve aquisição das transferências posturais de supino para sentado, de sentado para ajoelhado (ativo assistido), de ajoelhado para semiajoelhado (ativo assistido) e de ajoelhado para em pé com apoio em banco alto (fig. 2).
Resultados pós-intervenção: (A) sentado em banco baixo, manteve-se com controle de tronco realizando manipulação de objetos uni ou bimanualmente; (B) consegue passar de sentado para ajoelhado utilizando suporte em banco baixo; (C) mantém-se na postura de quatro apoios e realiza dissociação de membros; (D) em posição ortostática realiza a passada com suporte do terapeuta
A criança passou a manusear objetos pequenos e grandes com melhor coordenação e preensão, o que favoreceu suas atividades diárias e no brincar, segundo informações maternas. Essa melhora no controle dos movimentos foi evidenciada pelo GMFM, já que posturas que exigiam domínio ou suporte de peso em mãos e MMSS foram conquistadas.
Os resultados obtidos na aplicação final das escalas foram positivos, conforme exposto na tabela 1. Devido aos valores nulos ou baixos adquiridos nas dimensões C, D e E, optou-se por apresentar o escore meta das dimensões A e B na avaliação incial. Após a intervenção, para esse escore foi acrescentada a dimensão C. No GMFCS–E&R, a criança passou do nível IV para o III. Nesse nível, já realizava o engatinhar sobre mãos e joelhos, puxava-se para levantar e andava com auxílio de terceiros. Apesar de realizar atividades referentes ao nível II, como engatinhar alternadamente, esta ainda não pôde ser considerada porque a criança necessitava de assistência em transferencia da postura sentada, além de não utilizar auxiliares de marcha para a locomoção.
Função pré e pós-intervenção
O objetivo da reabilitação em pacientes com ACC é melhorar o funcionamento global do indivíduo por meio de uma equipe multiprofissional e orientação aos cuidadores.15 O paciente deste estudo apresentou hérnia inguinal, atrofia de testículo esquerdo e adenoide, que não fazem parte da ADCC. Já a polidactilia, as crises convulsivas e a hidrocefalia, também encontradas, podem estar associadas à malformação do CC. Essas alterações, associadas ou não, realçam a necessidade de intervenção multiprofissional. A criança relatada no presente estudo mostra atraso no desenvolvimento motor, que é comum nessa população.14 Mas crianças com ACC também podem apresentar um desenvolvimento típico e dentro da faixa normal de inteligência.13 A intervenção precoce possibilita a prevenção mais eficaz dos fatores que podem causar ou ampliar as alterações no desenvolvimento. Assim, é importante iniciar o tratamento o mais cedo possível, a fim de prevenir complicações secundárias, físicas ou psíquicas para, dessa forma, explorar a plasticidade do SNC o quanto possível.15
Neste caso, a criança não apresentou deformidades ortopédicas ou limitações na amplitude dos movimentos. Contudo, a fraqueza muscular e a alteração de tônus determinaram a necessidade da intervenção preventiva, o que, em longo prazo, poderia resultar em quadros de deformidade. As deformidades e as limitações funcionais prejudicam o desempenho de habilidade motoras e devem ser prevenidas.
Estudos11,20 têm demonstrado que indivíduos com ACC têm importante déficit na preensão, na destreza e na coordenação manual. É fundamental que a intervenção precoce contemple tais aspectos, visando à estimulação da funcionalidade. Neste relato de caso, a criança obteve grande melhora na aquisição motora manual e bimanual em manipulação de objetos por meio do treino da habilidade.
A estabilidade articular, o alongamento e a força muscular devem estar associados ao controle central, envolvendo atividades funcionais de movimentação, aquisição e manutenção de diferentes posturas.21 A abordagem terapêutica baseada na prevenção de limitações funcionais, no fortalecimento muscular e no treinamento das reações de retificação, proteção e equilíbrio, influenciou o desenvolvimento da capacidade funcional ao longo do período analisado.
A intervenção motora com enfoque na funcionalidade mostrou ser efetiva, pois tanto o GMFCS-E&R quanto o GMFM indicaram a melhora da função motora grossa num curto período de intervenção. Contudo, destaca-se, neste caso, a grande participação da mãe da criança para o sucesso da intervenção. É fundamental enfatizar a importância da participação da família na promoção do desenvolvimento infantil em âmbito domiciliar.
Os pais de crianças com ACC podem auxiliar na melhoria das características deficitárias que interferem no cotidiano da criança.22 Evidências sugerem que, em crianças com desordens congênitas ou adquiridas, a terapia centrada na família, voltada para identificar precocemente as compensações funcionais, adaptar o ambiente e as tarefas por meio do feedback e orientações aos responsáveis, ajuda a melhorar a qualidade do seu desempenho.23
A agenesia de corpo caloso tem sido pouco abordada em estudos científicos, e um dos motivos para isso pode ser o número reduzido de casos no mundo. Além disso, dos casos existentes, nenhum estudo havia proposto a intervenção neurofuncional no que diz respeito ao controle postural na ACC. Dessa forma, este relato pode servir como base para futuros trabalhos envolvendo a intervenção motora em crianças com ACC, a fim de aprofundar o tema e fortalecer esses resultados.
Conflitos de interesseOs autores declaram não haver conflitos de interesse.
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), pela bolsa de estudos recebida.
Estudo conduzido na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), Florianópolis, SC, Brasil.