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Inicio Revista Paulista de Pediatria Vivências dos adolescentes soropositivos para HIV/Aids: estudo qualitativo
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Vol. 34. Núm. 2.
Páginas 171-177 (junio 2016)
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Vol. 34. Núm. 2.
Páginas 171-177 (junio 2016)
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Vivências dos adolescentes soropositivos para HIV/Aids: estudo qualitativo
Experiences of adolescents seropositive for HIV/AIDS: a qualitative study
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Eliana Galanoa, Egberto Ribeiro Turatob, Philippe Delmasc, José Côtéd, Aida de Fátima Thomé Barbosa Gouveaa, Regina Célia de Menezes Succia, Daisy Maria Machadoa,
Autor para correspondencia
daisymmachado@gmail.com

Autor para correspondência.
a Escola Paulista de Medicina, Universidade Federal de São Paulo (EPM‐Unifesp), São Paulo, SP, Brasil
b Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Campinas, SP, Brasil
c Institut et Haute Ecole de la Santé La Source (HES‐SO), Lausanne, Suíça
d Université du Québec à Montréal (UQAM), Montreal, Canadá
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Tabela 1. Distribuição das características sociodemográficas dos adolescentes
Tabela 2. Categorias e subcategorias criadas a partir da análise das entrevistas
Tabela 3. Cuidados com a saúde e tratamento – obstáculos
Tabela 4. Cuidados com a saúde e tratamento – motivações e intervenções
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Resumo
Objetivo

Explorar os significados atribuídos pelos jovens a “viver a adolescência com o HIV” em um grupo de pacientes que adquiriu a infecção ao nascimento e os elementos implicados na adesão ao tratamento antirretroviral.

Métodos

Pesquisa de natureza qualitativa, com 20 sujeitos (13 a 20 anos), acompanhados em serviços especializados no tratamento da Aids pediátrica em São Paulo, Brasil. Foram feitas entrevistas semidirigidas cujo roteiro foi composto por questões sobre suas histórias pessoais, dificuldades e experiências que enfrentam diante da infecção pelo HIV/Aids.

Resultados

Ser “normal” e “diferente” foram questões centrais no discurso dos participantes. Entretanto, a condição de uma vida normal é garantida mediante a responsabilidade com a saúde, a ressalva de que seja mantido o segredo do diagnóstico e as preocupações com a transmissão do vírus e divulgação do HIV ao parceiro sexual. As respostas sobre o tratamento apontam que a adesão é um processo dinâmico e envolve momentos de maior ou menor interesse em relação aos cuidados com a saúde. Os adolescentes têm planos e projetos e, apesar de o HIV ser considerado um agente estressor, prevaleceram perspectivas positivas diante do futuro.

Conclusões

Viver a adolescência com o HIV envolve dimensões delicadas, que necessitam ser reconhecidas e legitimadas pelos profissionais que acompanham a trajetória desses jovens. Trata‐se de possibilitar um espaço no qual o adolescente possa refletir e encontrar apoio para as questões relacionadas à construção de sua sexualidade e cuidados com seu próprio corpo.

Palavras‐chave:
Infecção pelo HIV/psicologia
Acontecimentos que mudam a vida
Pesquisa qualitativa
Adolescente
Abstract
Objective

Explore the meanings attributed by young individuals about “living as an adolescent with HIV” in a group of patients that acquired the infection at birth and the elements involved with the adherence to antiretroviral treatment.

Methods

Qualitative study, involving 20 subjects (aged 13‐20 years), followed at services specialized in the treatment of pediatric Aids in São Paulo, Brazil. Semi‐structured interviews were carried out of which script consisted of questions about their personal histories, experiences and difficulties they must face while living with HIV/Aids.

Results

Being “normal” and “different” were central issues voiced by the participants. However, a normal life situation is guaranteed by being responsible with one's health, the condition that the diagnosis be kept secret and concerns about HIV transmission and dissemination to a sexual partner. The answers about treatment show that adherence is a dynamic process and involves moments of greater or lesser interest in relation to care for one's health. The adolescents have plans and projects and although HIV is considered a stressor, positive perspectives for the future prevailed.

Conclusions

To live as an adolescent with HIV involves subtle dimensions that need to be recognized and legitimized by professionals who follow the trajectory of these young individuals. It is necessary to allow a space in which the adolescents can reflect and find support regarding issues related to the construction of their sexuality and care of one's own body.

Keywords:
HIV infection/psychology
Life‐changing events
Qualitative research
Adolescent
Texto completo
Introdução

Na terceira década da epidemia do vírus da imunodeficiência humana (HIV), profissionais de saúde, pesquisadores e cuidadores deparam‐se com a primeira geração de adolescentes e jovens que adquiriu a infecção por meio da transmissão vertical. Ao longo dos anos, buscouse garantir o acesso ao tratamento que possibilitasse aumento da expectativa de vida dessas crianças e contemplasse suas necessidades psicossociais. As surpreendentes demandas de uma doença recém‐descrita não permitiram aos profissionais que atendiam essas crianças suspeitar que elas pudessem chegar à adolescência, com todos os desafios que a isso se associam. Esse grupo populacional apresenta particularidades distintas dos pacientes adultos ou jovens que contraíram a doença no período da adolescência.1 Muitos deles já perderam seus pais em decorrência da síndrome da imunodeficiência humana (Aids), o que resulta em lutos precoces, rupturas de laços afetivos e rearranjos familiares.2

À adolescência, fase de vida permeada por mudanças, descobertas, busca de identidade e autonomia, se acrescenta uma doença carregada de atributos estigmatizantes e a complexa herança dos segredos que envolvem as famílias afetadas pelo HIV. Trabalhos qualitativos identificaram que as principais dificuldades referidas pelos jovens soropositivos englobaram a revelação diagnóstica a terceiros, os relacionamentos interpessoais, a adesão ao tratamento e o fardo psicológico de viver com uma doença crônica associada à morte, ao preconceito e à exclusão social.3,4 Pesquisas sugerem que os desafios relacionados aos adolescentes infectados pelo HIV são constantes e, portanto, necessitam ser identificados e aprofundados.5,6

Para os profissionais que buscam cuidar dos seus pacientes em todas as suas dimensões é fundamental identificar as particularidades, os desejos e as dificuldades, na perspectiva dos próprios adolescentes. O objetivo deste estudo foi explorar, por meio da metodologia qualitativa, os significados atribuídos pelos jovens ao fenômeno de “viver a adolescência com o HIV” em um grupo de pacientes que adquiriu a infecção por transmissão vertical e os elementos implicados na adesão ao tratamento antirretroviral.

Método

Pesquisa de natureza qualitativa, feita por meio de entrevistas com questões abertas, constituídas a partir de dimensões presentes nas vivências dos jovens diante da infecção pelo HIV/Aids: (1) História de vida; (2) Adolescência e soropositividade e (3) Cuidados com a saúde e tratamento.

A população desta investigação compreendeu 20 adolescentes, selecionados a partir de um grupo de 268 participantes do estudo longitudinal Adoliance, um projeto de cooperação internacional para o estudo dos fatores psicossociais relacionados às experiências de vida de jovens soropositivos para o HIV, iniciado em abril de 2009. Nessa fase do trabalho, feita em novembro e dezembro de 2011, foram incluídos sujeitos entre 13 a 20 anos e matriculados em quatro serviços que oferecem atendimento em Aids pediátrica, localizados na cidade de São Paulo, Brasil. A escolha dos candidatos foi intencional, buscou‐se diversificar o grupo com inclusão de meninos e meninas, pelo menos um de cada um dos centros participantes, com diferentes idades e histórico de adesão ou não ao tratamento antirretroviral. Para a captação dos sujeitos, os profissionais dos diferentes serviços identificaram os adolescentes que não apresentavam dificuldades para verbalizar suas necessidades e experiências de ser adolescente soropositivo.

Os encontros com os jovens foram previamente agendados e feitos em local reservado. A interrupção da inclusão de novos sujeitos ocorreu por meio da saturação teórica, ou seja, no momento em que se observou uma redundância no discurso nas últimas entrevistas, de forma que o acréscimo de novas informações não alteraria a compreensão do material obtido.7,8

As entrevistas foram gravadas com o assentimento/consentimento dos participantes e responsáveis e transcritas dos verbatins. Como opção para facilitar a organização dos dados, usou‐se o software Nvivo 9 (Qualitative Solutions and Research Pty Ltd, Austrália, 1994).

Os pesquisadores fizeram uso de um referencial teórico baseado nos conceitos básicos da psicologia da saúde, que compreende seus determinantes contextuais e respostas adaptativas às situações desfavoráveis na experiência de vida dos participantes. Assim, em diversas leituras flutuantes, emergiram categorias para discussão, a partir de núcleos de sentido do conjunto das entrevistas feitas. Para garantir o rigor do processo de análise, o conteúdo do material foi codificado por três pesquisadores de forma independente e, posteriormente, validado por um profissional experiente em codificações de entrevistas qualitativas.

O estudo foi aprovado pelas instâncias reguladoras de cada um dos centros colaboradores e pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), n° 15.693. Todos os participantes que tinham atingido a maioridade e responsáveis por menores de 18 anos assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, após terem sido informados sobre os benefícios e possíveis riscos da pesquisa. No caso dos menores, além do responsável legal, os entrevistados também liam e assinavam o Termo de Assentimento Livre e Esclarecido.

Resultados

A amostra foi composta por 11 meninas e nove meninos com média de 17 anos. A tabela 1 descreve as características sociodemográficas dos adolescentes que participaram dessa fase do trabalho.

Tabela 1.

Distribuição das características sociodemográficas dos adolescentes

Características  População (n=20) 
Sexo
Feminino  11 
Masculino  09 
Faixa etária (anos)
13 a 15  08 
16 a 18  08 
19 a 20  04 
Escolaridade (anos de estudo)
5 a 8  07 
9 ou mais  13 
Etnia/cor (autorreferida)
Branca  08 
Negra  01 
Parda  11 
Religião
Sim  18 
Não  02 
Com quem mora
Pai e/ou mãe  12 
Outros parentes  06 
Pessoas fora da família  01 
Instituição  01 
Pai  04 
Mãe  08 
Orfandade
Pai e mãe  03 

A análise do material das entrevistas possibilitou a elaboração de duas grandes categorias com seis subcategorias, conforme a tabela 2. A categoria “Adolescência e soropositividade” diz respeito às principais vivências do ser adolescente soropositivo para o HIV/Aids e emergiram as subcategorias que envolvem o “ser normal” e “ser diferente”, a “convivência com o silêncio do diagnóstico” e as implicações da doença nos “relacionamentos afetivos e sexuais”. A segunda categoria refere‐se aos cuidados com a saúde e tratamento, engloba subcategorias associadas aos principais obstáculos, motivações e intervenções desejadas.

Tabela 2.

Categorias e subcategorias criadas a partir da análise das entrevistas

Categorias  Subcategorias 
A adolescência e soropositividadeSer normal x ser diferente 
Convivência com o silêncio do diagnóstico: do destinatário ao portador do segredo 
Relacionamentos afetivos e sexuais 
Os cuidados com a saúde e tratamentoObstáculos para o tratamento: a dimensão objetiva e subjetiva 
Motivações e gestão do tratamento 
Intervenções desejadas 
Adolescência e soropositividade

“Ser normal” e “ser diferente” foram questões centrais que permearam o discurso dos participantes deste estudo. A referência à normalidade foi evidenciada pelas narrativas que igualam seu cotidiano ao de outros adolescentes que não convivem com doenças crônicas: eles trabalham, estudam, passeiam e interagem com parentes e amigos.

Normal, não muda nada! É a mesma coisa. Eu jogo bola, eu ando, eu faço tudo! Tá bom demais… (Masc., 14 anos)

Entretanto, a condição de “ter uma vida normal” é garantida mediante a responsabilidade dos cuidados com a saúde e a ressalva de que seja mantido o segredo do diagnóstico.

Eles não sabem do meu problema, jamais! Todos acham que eu sou uma pessoa perfeita… Levando o tratamento a sério, você vive uma vida normal. (Masc., 18 anos)

Algumas vezes, a menção à diferença é claramente assumida pelos entrevistados e baseia‐se, especialmente, nas restrições impostas pela convivência com uma doença crônica, como uso das medicações e frequência nas consultas médicas.

Você é diferente dos outros, vai tomar remédio, fazer tratamento e vir ao médico para o resto da vida… Você se sente diferente porque tem um segredo! (Fem., 14 anos)

Para a maioria dos participantes deste estudo, a “convivência e manutenção do segredo” em torno do HIV é algo que foi incorporado sem questionamentos. Diz respeito à esfera da vida privada e falar sobre o vírus pode causar desconforto, constrangimento e risco de rejeição devido aos estigmas associados ao HIV. Nesse sentido, inúmeras falas dos entrevistados reproduzem essas mensagens que foram apreendidas ao longo da vida.

Eu nunca tive coragem de contar, não tem necessidade, eu aprendi assim! (Fem. 18 anos)

Nas narrativas dos entrevistados, observou‐se que o conhecimento sobre o HIV permanece reservado à família nuclear ou a parentes de confiança e a amigos muito próximos. Ainda assim, assuntos referentes à doença não são compartilhados mesmo entre aqueles que sabem sobre a infecção.

[Quem sabe do HIV?] Minha mãe e meu pai, mais ninguém! Para eles e para mim é como se eu não tivesse! (Masc., 18 anos)

Em se tratando dos “relacionamentos românticos”, os jovens descrevem fortes preocupações com a transmissão da infecção ao parceiro sexual, até entre aqueles que ainda não tiveram experiências amorosas ou sexuais. Entretanto, houve um consenso de que o exercício da sexualidade deve ser feito com responsabilidade e cuidados redobrados, reflexões que não são compartilhadas com as pessoas de seu convívio.

Quando você pensa que vai ter relações sexuais, você fica com medo de transmitir o HIV. [Você pensa muito nisso?] Todo mundo que tem HIV pensa! (Fem., 15 anos)

Na perspectiva dos participantes, a confidencialidade em torno da doença deixa de ser compatível no contexto das relações amorosas e, independentemente de idade ou gênero, eles consideram que declaração da sorologia deverá ser feita em algum momento do relacionamento. Entretanto, saber qual o melhor momento e decidir em quem confiar para contar são questionamentos acompanhados por angústias e inquietações. As principais dificuldades relatadas dizem respeito ao temor do abandono advindo do preconceito e à convicção de que o segredo, quando confiado ao outro, poderá não ser mantido por esse com o passar do tempo.

Para contar para o namorado você tem que estar um tempo com ele, ter certeza que ele ama você… se as pessoas soubessem provavelmente nem ficariam comigo. (Fem., 20 anos)

Cuidados com a saúde e tratamento

O maior incômodo (“obstáculo”) ao tratamento diz respeito à rigidez quanto ao horário das medicações, que impõem restrições de atividades, como viagens ou festas com os amigos. Com frequência, o ciclo do sono dos adolescentes é interrompido, eles precisam acordar cedo ou dormir tarde para tomar os remédios.

Nas férias ou quando não tem aula eu tenho que acordar as 3h30 pra tomar o remédio e depois acabo perdendo o sono… (Masc., 17 anos)

Efeitos indesejáveis, como náuseas, dores de estômago, mal‐estar e gosto ruim e quantidade de comprimidos ingeridos, foram relatados como barreiras para uma boa adesão.

Estados depressivos, irritabilidade, nervosismo, estresse, conflitos familiares e sentimentos de revolta por não aceitação da doença também foram associados com os momentos de perdas de doses ou interrupção do tratamento medicamentoso.

Eu sinto revolta, muita raiva com a vida e com todo mundo. Quer saber, se for pra eu morrer, eu morro logo… A minha vida é como se fosse separada em duas coisas… [Separada como?] De ter consciência do que é ter HIV. (Fem., 17 anos)

A tabela 3 ilustra o resumo dos principais obstáculos da adesão. O medo de adoecer que se liga ao desejo de ter uma vida saudável para poder trabalhar, estudar e concretizar planos foi a principal “motivação” mencionada pelos participantes para a manutenção do tratamento.

Tabela 3.

Cuidados com a saúde e tratamento – obstáculos

Obstáculos
Dimensão objetiva 
Obstáculos
Dimensão subjetiva 
Interferência nas atividades cotidiana: interrupção do sono  Estados depressivos, irritabilidade, nervosismo e estresse 
Efeitos indesejáveis: náuseas, dores de estômago e mal‐estar  Sentimentos de revolta e não aceitação da doença 
Características dos medicamentos: palatabilidade e quantidade de comprimidos ingeridos  Conflitos familiares 
Crença de que os antirretrovirais ocasionam prejuízos à saúde  Tomar as medicações atua como
lembrete do HIV, condição
que desejam esquecer 

Em alguns casos, a necessidade de obter aprovação por parte de médicos, parentes ou namorados (as) são outros fatores que colaboraram na direção de uma boa adesão aos medicamentos. Da mesma forma, o reconhecimento de sua importância para diminuição dos riscos de transmissão, especialmente aos parceiros sexuais, mostrou forte influência na continuidade do tratamento.

É bom você ter um médico que trata você desde pequenininha, que você confia. Isso faz com que eu me motive e nunca pense em parar… (Fem.,15 anos)

Finalmente, entre as “intervenções desejadas”, os adolescentes qualificam como positivos as orientações, os esclarecimentos e as informações que são fornecidas rotineiramente pelos profissionais dos serviços.

O contato estreito e a relação de confiança construída com a equipe que os acompanha desde a mais tenra infância foram citados como aspectos centrais para uma boa resposta à adesão. A relevância das atividades grupais ou espaços para conhecer outras pessoas que vivem com o HIV também foram destacados pelos entrevistados, pois encorajam a discussão e o enfrentamento de vivências que envolvem o adolescente soropositivo.

Eu acho legal a gente fazer palestras, grupos. Eu queria conhecer bastante gente que tivesse HIV! (Fem., 16 anos)

Além disso, eles querem ter conhecimentos atualizados sobre os avanços científicos e sugerem que sejam abordados temas que abarquem preocupações futuras, como casamento e formas para evitar a transmissão às pessoas de sua convivência.

Prevenção, medicamento, família… São os assuntos mais importantes. Conversar, saber um pouco mais sobre os cientistas que estão atrás da cura… (Masc., 17 anos)

Enquanto, para alguns jovens, motivar, insistir e se lembrar das medicações são manifestações de preocupação e afeto, para outros, a insistência por parte de profissionais de adesão perfeita ocasiona desconforto e sentimentos de que estão sendo desrespeitados seus direitos de interrupção momentânea ou não do tratamento. Há ocasiões em que eles preferem mentir para evitar as reações de irritabilidade ou decepção por parte dos médicos e parentes (tabela 4).

Pressionar menos, porque é muita pressão… A médica, a psicóloga pressionando, falando tem que tomar, senão vai morrer. Também tentar entender muito… Por que, por quê? Porque eu não quero entrar em contato com a realidade, porque eu tenho medo! (Masc., 17 anos)

Tabela 4.

Cuidados com a saúde e tratamento – motivações e intervenções

Motivações  Intervenções sugeridas 
Medo de adoecer  Informações atualizadas 
Ter acompanhado experiências pregressas negativas  Atividades grupais e apoio psicológico individual 
Reconhecer seu papel na diminuição dos riscos de transmissão  Consultas que reforcem e incentivem o tratamento, sem excessivas cobranças
Necessidade de obter aprovação 
Discussão

Esta investigação contribuiu para conhecer as experiências psicossociais da primeira geração de jovens que adquiriu o HIV por transmissão vertical, por meio de relatos sobre suas histórias de vida e obstáculos enfrentados, num contexto de uma doença crônica, com vistas a instrumentalizar o profissional de saúde para melhor cuidar do seu paciente.

Nas diversas dimensões do cotidiano, como participação em atividades sociais, escola e trabalho, emergem no discurso dos adolescentes referências de uma vida normal, ou seja, comum ou igual aos demais jovens que não são infectados pelo vírus. O esforço dos adolescentes soropositivos pela busca da normalidade foi descrito por diferentes pesquisadores que se ocuparam de estudar as necessidades dos jovens que vivem com o HIV.9,10

Como pode ser visto, a percepção da normalidade e o sentimento de igualdade são justificados pela ausência de sintomas ou características físicas de um corpo doente, fatores que, por sua vez, podem influenciar negativamente a adesão ao tratamento.10 Entretanto, observam‐se sentimentos de ambivalência quando esses jovens são confrontados com a necessidade de cuidados que envolvem um tratamento interminável e rotineiras consultas médicas. Outra ressalva em relação à normalidade diz respeito à convivência com o segredo do diagnóstico e a possibilidade de transmissão do vírus, achados que também são consistentes com outros estudos.5,9

Um tema relevante e que merece destaque especial diz respeito à dinâmica do segredo que envolve os pacientes infectados pelo HIV/Aids. A comunicação do diagnóstico a terceiros não é um processo simples, pois revelar a condição sorológica pode deixar o indivíduo vulnerável ao estigma social, aos preconceitos e à discriminação, aspectos amplamente identificados na população de adultos que vivem com o HIV/Aids.4 Os resultados deste estudo sugerem que o silêncio sobre o HIV ainda permanece restrito às famílias que vivem e convivem com a infecção e, na perspectiva dos entrevistados, as razões que justificam esse comportamento foram associadas ao medo do preconceito, da rejeição e do isolamento social.11‐14 Apesar disso, figura no discurso dos adolescentes que a revelação diagnóstica do HIV deverá ser compartilhada, em algum momento, com os atuais ou futuros parceiros sexuais, uma tomada de decisão cercada por medos e ambivalências. Mesmo diante da ausência de parâmetros claros e definidos para a comunicação da infecção, é preciso confiar para contar, ter garantias de que o outro guardará segredo e, em algumas situações, empregar o uso de sondagem para conhecer as concepções que os pares têm sobre a doença.15

Quando se trata das questões sobre sexualidade e envolvimentos amorosos, além do desafio enfrentado com a divulgação da condição sorológica ao parceiro sexual, emergem com grande força preocupações legítimas com a transmissão do vírus ao parceiro, também citadas por outros autores.4,16,17 Ainda no contexto das relações românticas, desejos e ansiedades decorrentes da condição sorológica misturam‐se e, por vezes, prevalecem comportamentos de esquiva diante de aproximações afetivas, como observado em diversas publicações.4,18

Em relação aos cuidados com a saúde e o tratamento, os resultados deste estudo sugerem que a adesão ao regime medicamentoso é um processo dinâmico, envolve dimensões subjetivas e objetivas e momentos de maior ou menor interesse em relação ao acompanhamento clínico. Apesar do cansaço diante das medicações e, por vezes, do desejo de interrupção do tratamento, a maioria dos jovens deste estudo mostrou‐se consciente de que seguir as recomendações prescritas é a condição necessária para a manutenção de uma boa qualidade de vida. Os achados desta investigação mostraram‐se consistentes com outros estudos que descrevem que a adesão é favorecida pela crença na eficácia das medicações19 e quando os cuidados com a saúde tornam‐se prioridade em suas vidas. A aceitação da condição sorológica e o reconhecimento da morte, que surgem com o alcance da maturidade, também foram fatores decisivos para a manutenção correta do tratamento. O vínculo entre paciente e profissional e o apoio familiar fomentam a motivação para o enfrentamento do processo saúde e doença.20 Por outro lado, alguns adolescentes não gostam de se sentir pressionados e consideram que as atitudes de cobrança dos cuidadores violam seus direitos e autonomia para decidir sobre o tratamento. Quanto às barreiras e aos obstáculos para o cumprimento da adesão, os participantes citaram os efeitos adversos do remédio e sua interferência nas atividades cotidiana. Na dimensão subjetiva, momentos de tristeza, estresse ou mesmo o simples desejo de viver uma vida sem a lembrança do vírus justificam as interrupções, mesmo que momentâneas, do tratamento.

Quando se tratou das intervenções desejadas, os jovens declararam que se sentem satisfeitos com a assistência recebida no ambiente pediátrico, cercado de atenção e demonstração de afeto por parte dos profissionais. De qualquer maneira, eles desejam informações mais detalhadas sobre as formas de prevenção da transmissão do vírus, com discussão de temas que reportem aos avanços tecnológicos, assim como aos dilemas vivenciados pelo ser jovem no contexto da soropositividade. Em alguns casos, as atividades grupais são recomendadas, pois favorecem a identificação com seus pares e, consequentemente, a manutenção do sentimento de normalidade.

Este estudo apresenta limitações porque seus resultados não são generalizáveis e retratam parcialmente a complexidade de vivências do processo do adolescer no contexto da soropositividade para o HIV. Pesquisas longitudinais são recomendadas para explorar as condições sociais e os riscos emocionais implicados nessa trajetória. Além disso, a metodologia qualitativa ainda se mostra pouco familiar à comunidade científica e aos pediatras que se ocupam da assistência dessas crianças e adolescentes.

Conclui‐se, a partir dos relatos, que viver a adolescência com o HIV” envolve dimensões delicadas, tais como silêncios e segredos, busca da normalidade, constatação das diferenças, dilemas da transmissão do vírus e, ainda, gestão do tratamento medicamentoso. Reconhecer tais aspectos poderá servir como orientação ao trabalho da equipe multiprofissional, especialmente ao dos pediatras, cujo cuidado transcende o controle da doença física e da replicação viral.

Financiamento

Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), Projeto n° 2010/08302‐8.

Agence Nationale de Recherche sur le Sida et les Hépatites Virales (ANRS), protocolo n° 12.238.

Conflitos de interesse

Os autores declaram não haver conflitos de interesse.

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