Desde a associação entre ingestão de glúten e doença celíaca (DC) por Dicke1 durante a II Guerra Mundial, o nosso conhecimento sobre a fisiopatologia da enteropatia sensível ao glúten tem aumentado de forma vertiginosa, especialmente com os recursos da investigação molecular. Contudo, se é claro que a ingestão de glúten causa enteropatia e doença extraintestinal em indivíduos geneticamente suscetíveis, mantemos uma enorme ignorância sobre os fatores adicionais nos mecanismos de desencadeamento e de prevenção da doença.
Na década de 1960, havia enorme tendência de introduzir cereais precocemente na alimentação infantil para prevenir a deficiência de ferro e a anemia. Em consequência, rapidamente se verificou um aumento acentuado de novos casos doença celíaca e parecia haver também relação da doença com o tipo de aleitamento, o que influenciaria a idade de apresentação dessa doença.2
Nos anos 1980‐90, ocorreu notável aumento de incidência de DC na Suécia, causando a famosa “epidemia sueca de doença celíaca”, que motivou numerosas publicações e análises. A explicação mais imediata parecia relacionar‐se à idade da introdução do glúten na alimentação e ao padrão de aleitamento. Após a implantação de medidas de retardo na introdução de glúten na alimentação infantil, verificou‐se acentuada redução do número de novos casos.3–5
A análise dessa evolução sugeriu que a introdução do glúten durante o aleitamento materno pudesse conferir proteção à ocorrência da doença. Um importante estudo multicêntrico (PreventCD) comparou a introdução de glúten ou placebo aos quatro meses durante o aleitamento materno em um grupo de cerca de 900 lactentes com risco genético de DC. O resultado do estudo com seguimento de cinco anos revelou que não houve efeito protetor do aleitamento materno durante a introdução de glúten.6 Outro estudo que envolveu 553 crianças avaliadas até dois anos mostrou que a introdução precoce ou tardia do glúten não influenciou o risco de ocorrência da DC, embora influenciasse a idade da sua ocorrência.7 Uma revisão sistemática obteve a mesma conclusão, sugeriu que a clássica recomendação de retardar a introdução do glúten até seis meses carece hoje de fundamentação científica.8
É preciso concluir que não sabemos ainda quais são os fatores que seguramente podem reduzir o risco de DC em indivíduos geneticamente predispostos. Outras hipóteses de estudo, como a exposição intrauterina, infecções ou outros fatores ambientais, necessitam de ser avaliadas na busca da resposta exata.9
Outro aspecto muito importante no conceito atual de DC é a autoimunidade. É hoje bem reconhecido que a DC se associa a outras doenças autoimunes e que a prevalência de DC em doentes com diabetes tipo 1 (DM1) é mais elevada do que na população geral. A pesquisa de marcadores sorológicos de DC deve ser feita em todos os doentes com DM1. A questão torna‐se ainda mais interessante na análise de qual doença precede a outra e a possibilidade de influenciar a progressão autoimune.10 Um interessante estudo foi apresentado em 2015 por Korponay‐Szabo: um grupo de 2.690 crianças em idade escolar foi submetido a rastreio de DC em 2005. Em 2014, procedeu‐se a um rastreio de DM1 na mesma região, envolvendo 21.724 crianças. Verificou‐se então que nenhuma das 45 crianças diagnosticadas previamente com DC e tratadas tinha desenvolvido DM1, enquanto a prevalência foi de 0,93/1.000 entre as crianças cujos pais haviam declinado o rastreio de DC em 2005. Esse estudo, que requer confirmação, sugere que será possível modificar a evolução da autoimunidade pelo rastreio e identificação precoce de DC. Segundo os autores, a idade de seis anos parece ser eficaz para esse processo. (Resumo PA‐0054, disponível em http://journals.lww.com/jpgn/Documents/ESPGHAN%202015%20‐%20Abstracts%20JPGN%20FINAL.pdf)
A divulgação da potencial relação entre ingestão de glúten e doenças tem sido profundamente difundida na comunicação social. Para além da “sensibilidade não celíaca ao glúten”’, um razoável número de personalidades famosas anunciou a decisão de adotar uma alimentação isenta de glúten para emagrecer ou para se sentir bem. As redes sociais rapidamente amplificaram essa moda como forma de ser elegante ou saudável (http://glutenull.com/gluten‐free‐celebrities/). Perante essa importante influência de opiniões, muitas pessoas decidem hoje iniciar uma dieta sem glúten, mesmo na ausência de diagnóstico seguro de DC. Nada há a contestar no que se refere à adoção de dieta sem glúten por “moda”, mas há o risco real de tratar apenas de forma temporária (até que a moda passe) a DC, caso ela esteja presente, e voltar a aumentar o risco de complicações ao retomar a dieta sem restrição. Por esse motivo, e devido ao risco inerente, parece fortemente recomendável que os profissionais de saúde aconselhem os seus pacientes a iniciar alimentação isenta de glúten apenas depois de testar com razoável segurança (usar, por exemplo, os anticorpos antitransglutaminase ou antiendomísio) e excluir ou confirmar o diagnóstico.
Apesar do fantástico avanço da investigação e do conhecimento, a DC continua a ser uma doença fascinante, com componente genético indiscutível, mas também com fatores ambientais que não conhecemos completamente. No futuro próximo, perfilam‐se novos avanços no diagnóstico e na terapêutica que nos ensinarão a ajudar melhor os nossos pacientes.
FinanciamentoO estudo não recebeu financiamento.
Conflitos de interesseOs autores declaram não haver conflitos de interesse.