A frequência do abcesso hepático piogénico é maior nos indivíduos diabéticos do que na população em geral. Estão, com frequência, associados a quadros de colangite recorrente, de litíase das vias biliares ou de diverticulite do cólon. A sua associação a cirurgia gástrica é muito rara. Apresenta-se um caso de abcesso hepático num indivíduo diabético operado a um tumor do estroma gástrico.
Doente diabético tipo 2, de 54 anos, masculino, caucasiano, foi internado por epigastralgia intensa, febre, distensão abdominal e diarreia. Tinha sido operado ao estômago (tumorectomia) por tumor do estroma gástrico há 3 meses. A ecografia abdominal revelou dilatação das vias biliares intra e extra-hepáticas e formações hipoecogénicas não esclarecidas. A endoscopia digestiva alta confirmou estômago operado, sem outras alterações. Feita tomorafia axial computorizada e ressonância magnética colangio-pancreática, observaram-se 2 volumosas formações hepáticas com nível líquido, uma de 7,2×6,2cm perihilar e outra de 4×4cm no lobo esquerdo. Foram feitas punção e drenagem dos abcessos, com a saída imediata de 100cc de líquido purulento, cuja análise bacteriológica foi negativa. A hemocultura revelou a presença de Streptococus intermedius (S. intermedius). Foi medicado ad initio com tazobactam. A continuação do quadro febril impôs a mudança para imepenen e metronidazol e finalmente o ajuste, de acordo com o antibiograma, para cefotaxima associada a clindamicina, tendo melhorado clinicamente. Teve alta hospitalar e foi marcada consulta de seguimento. Na tomografia axial abdominal de controlo, feita cerca de um mês após o internamento, observou-se ainda imagem de loca, com 5×5cm sem qualquer conteúdo líquido. Após 6 meses da ecografia realizada não evidenciou qualquer lesão hepática. Em conclusão, tratou-se de um caso de abcesso hepático piogénico pós-cirúrgico por S. intermedius num paciente diabético tipo 2.
The frequency of pyogenic liver abscess is higher in diabetics than in the general population. They are often associated with recurrent cholangitis, presence of biliary stones or diverticulitis of the colon. Its association with gastric surgery is very rare. We report a case of liver abscess in a diabetic individual operated by a gastric stromal tumor.
A 54 years type 2 diabetic Caucasoid male went to the hospital with complaints of severe epigastralgy, fever, abdominal distension and diarrhea. He had been operated by tumorectomia of a gastric stromal tumor 3 month before. The abdominal echography revealed intra and extra hepatic biliary dilatation, and hipo echoic formations in the liver. The digestive upper endoscopies confirmed the tumorectomy and no lesions were seen in the gastro-duodenal mucosa. A computed axial tomography and colangio pancreatic magnetic resonance were performed and allowed to observe two hepatic abcesses with liquid into them, one with 7.2×6.2cm, peri-hilar and other of 4.0×4.0cm in the left hepatic lobe. It was punccionned and 100ml of purulent fluid became from there. The bacteriologic analysis of the pus was negative. The hemoculture revealed the presence of Streptococus Intermedius. The patient was treated initially with Tazobactan. The fever continued and other antibiotics were introduced, Imipenem and Metronidazol. Finally, according to the antibiotic sensibility test, the treatment was adjusted to Cefotaxime and Clindamicine. The patient improved. In the control computed axial tomography, performed a month later, there was a locy with 5.0×5.0cm, without liquid inside. The echography made six month after did not revealed any hepatic lesion. In conclusion, it was a case of hepatic piogenic post chirurgic abscess, caused by Streptococus Intermedius, in a type 2 diabetic individual.
Os abcessos hepáticos são lesões muito raras, constituindo cerca de 0,03% das causas de internamento em algumas séries. Os abcessos hepáticos piogénicos conformam menos de um sexto dos abcessos hepáticos1. A sua frequência é significativamente elevada nos doentes diabéticos, conformando 48,3% em algumas séries2,3. Um quadro clínico de dor abdominal, principalmente nos quadrantes superiores, febre, vómito, perda de peso, anorexia geralmente com icterícia e análises com leucocitose neutrófila, elevação da PCR, fosfatase alcalina e hipoalbuminémia é o mais comum4,5. A morbilidade e a mortalidade nos doentes com abcesso hepático piogénico são relativamente elevadas6 e relacionam-se com o número de locas do abcesso e a hipoalbuminémia associada. Geralmente, grande parte são considerados criptogénicos por se desconhecer a causa3. Naqueles doentes, o microrganismo comummente mais envolvido é a Klebsiela pneumoniae (K. pneumoniae), seguido da Escherichia coli7,8. Porém, o Streptococus é um dos organismos microbiológicos as vezes envolvidos5. Os fatores mais frequentemente envolvidos na sua génese são a colangite recorrente9, litíase biliar e a diverticulite do cólon10,11. Na atualidade, o tratamento do abcesso hepático piogénico é essencialmente a drenagem percutânea, trans-hepática associada a antibioterapia empírica ou específica10, apresentando uma eficácia de 81,7-97,2%12,13. Todavia, em função de cada caso, a terapêutica cirúrgica é uma opção segura, à qual também se recorre nos casos em que a drenagem percutânea não seja eficaz5. Muito raros são os abcessos hepáticos pós-cirúrgicos descritos na literatura. A cirurgia gástrica como causa particular de abcesso hepático piogénico é ainda menos comum. É objetivo deste trabalho apresentar um caso clínico de abcesso hepático piogénico causado por S. intermedius num doente diabético tipo 2 operado a um tumor do estroma gástrico.
Caso clínicoIndivíduo de 54 anos de idade, masculino, caucasiano, foi internado por epigastralgia intensa, anorexia, febre, distensão abdominal e diarreia. O doente era diabético tipo 2 obeso, com bom controlo glicémico, operado ao estômago (tumorectomia) por um tumor do estroma gástrico 3 meses antes. Referia que o quadro se tinha iniciado há 2 dias. A palpação abdominal era muito dolorosa, sobretudo nos quadrantes superiores, sem sinais de irritação peritoneal. As análises revelaram Hb 14,3, leucócitos 17.200/ul neutrófilos 87%, glicémia 7,5mmol/l, creatinina 123mmol/l, bilirrubina total 16,4mmol/l, transaminase glutâmica oxalacética (GOT) 109U/L, transaminase glutâmica pirúvica (GTP) 121U/L, gama glutamil transpeptidase (GGT) 205U/L e fosfatase alcalina (FA) 321U/L e desidrogenase láctica (LDH) 452U/L. A ecografia abdominal revelou dilatação das vias biliares intra e extra-hepáticas e imagens hipoecogénicas não esclarecidas (fig. 1). A endoscopia digestiva alta confirmou a cirurgia gástrica, sem lesões. A tomografia axial computorizada (fig. 2) e a ressonância magnética colangio pancreática (fig. 3) mostraram duas volumosas formações abcedadas com nível líquido, uma de 7,2×6,2cm, perihilar e outra de 4×4cm no lobo esquerdo do fígado. Foi feita punção ecoguiada dos abcessos, que permitiu a sua drenagem, com saída imediata de 100ml de líquido purulento (fig. 4). A análise bacteriológica do líquido foi negativa. A realização de várias hemoculturas revelou a presença de S. intermedius. O doente estava medicado, inicialmente, com tazobactan. Devido a continuação do estado febril, a terapêutica antibiótica foi substituída por imepenem+metrionidazol. Após o resultado da cultura e de acordo com o antibiograma, a antibioterapia foi ajustada para clindamicina e cefotaxina. O doente melhorou clinicamente, as análises normalizaram e teve alta hospitalar. Cerca de um mês depois foi feita tomografia axial computorizada abdominal de controlo, que revelou imagem de loca com 5,5cm sem qualquer conteúdo (fig. 5). Após 6 meses a ecografia abdominal revelou um fígado sem as locas atrás referidas.
O caso reportado, de associação diabetes, indivíduo na casa dos 50, do género masculino, como fatores frequentemente relacionado com a maior frequência do abcesso hepático piogénico, apresentando alterações ligeiras da bilirrubina e das amino transferases assemelha-se a descrições da literatura14. Porém, é rara a associação de abcesso hepático com a cirurgia gástrica por tumor do estroma. Está descrito na literatura um caso de associação de tumor do estroma gastrointestinal com o surgimento de um abcesso piogénico15. Todavia, estão reportados casos de abcessos hepáticos pós-cirurgia a hemorroidas e a diverticulose cólica. Os dados da literatura sugerem que o abcesso hepático piogénico pós-cirúrgico é mais comum quando a intervenção é no aparelho digestivo. Neste caso, a localização dos 2 abcessos no lobo esquerdo do fígado, em maior relação com o estômago, corrobora com o diagnóstico clínico proposto. O microrganismo mais envolvido no abcesso hepático piogénico em diabéticos, de acordo com a literatura, é a K. pneumoniae, sendo menos frequentes os casos em que o agente envolvido é um Streptococus. O quadro clínico apresentado pelo doente contribuiu para se fazer um diagnóstico precoce e intervir em tempo útil. Apesar de alguma controvérsia em relação à atitude a seguir nos casos de múltiplos abcessos (punção e/ou drenagem cirúrgica)10,13, consideramos que a punção com drenagem percutânea trans-hepática, guiada por ecografia, associada a terapêutica antibiótica, é a medida de eleição4,12. Este facto provou ser eficaz, tendo o paciente evoluído de forma favorável após o ajuste do antibiótico de acordo com a sensibilidade bacteriana revelada pelo estudo microbiológico, sem qualquer complicação posterior. Em conclusão, apresenta-se um caso de abcesso hepático piogénico pós-cirurgia gástrica causado por S. intermedius num doente diabético tipo 2, resolvido com êxito com drenagem percutânea associada a antibioterapia eletiva.
Conflito de interessesOs autores declaram não haver conflito de interesses.