Nas últimas décadas temos observado um aumento da prevalência mundial da diabetes mellitus (DM) e com ela o surgimento de formas da doença que não se enquadram nas categorias de DM tradicionalmente reconhecidas. Dados existentes desde o século XX sugerem a existência de uma forma atípica de diabetes juvenil insulinodependente e resistente à cetose, que surge em zonas socialmente mais desfavorecidas do globo e difere dos vários tipos de diabetes incluídos na classificação atual da Organização Mundial de Saúde (OMS). Estes casos ocorrem principalmente em jovens com história de desnutrição pré‐natal ou infantil. Caracterizam‐se por não desenvolverem cetoacidose na ausência de insulinoterapia, apresentarem níveis doseáveis mas baixos de peptídeo C, marcadores de autoimunidade presentes apenas num subgrupo e ausência de calcificações pancreáticas.
De seguida descrevemos 2 casos clínicos cujas características clínicas sugerem tratar‐se deste tipo de diabetes e tentamos realçar a necessidade de uma definição mais clara dos diferentes fenótipos de diabetes existentes a nível mundial e dos novos mecanismos de disfunção da célula beta (β), com o objetivo de sensibilizar para o diagnóstico cuidadoso da doença, nomeadamente no que diz respeito a tipos de DM menos frequentes.
The global incidence of diabetes mellitus (DM) has been increasing in the last decades and new forms of the disease have appeared, not falling into the traditional categories of DM. Data from the twentieth century suggest that there's an atypical form of diabetes arising in developing countries which requires insulin but is ketosis‐resistant, different from the categories of diabetes included in the current classification of the World Health Organization (WHO). This form of DM occurs mostly in young people with prenatal or childhood malnutrition. Usually, they don’t develop ketoacidosis in the absence of insulin, have low levels of C‐peptide, autoimmunity is only present on some patients and pancreatic calcifications are absent.
In this article we describe two cases with clinical features that resemble malnutrition‐related DM. We emphasize the need for a more precise definition of the different existing phenotypes of diabetes and new mechanisms of beta‐cell dysfunction (β). Our purpose is to raise awareness for the accurate diagnosis of the disease, particularly for less frequent forms of diabetes.
O incremento mundial da diabetes mellitus (DM) nas últimas décadas tem levado ao reconhecimento de formas da doença que não se enquadram nas categorias tradicionalmente consideradas e descritas pela Organização Mundial de Saúde (OMS) ou pela American Diabetes Association (ADA)1. A classificação atual em DM tipo 1, DM tipo 2, outros tipos específicos de diabetes (onde se incluem a DM por defeitos genéticos da função da célula β ou da ação da insulina, doenças do pâncreas exócrino, DM induzida por fármacos ou químicos, entre outros) e diabetes gestacional não demonstra a complexidade e heterogeneidade dos diferentes fenótipos de diabetes existentes a nível mundial e da sua fisiopatologia1. Nas últimas recomendações publicadas a OMS expandiu a definição patofisiológica da DM tipo 2 de forma a incluir todos os casos que vão desde a insulinorresistência com défice relativo de insulina até aos casos em que há um defeito na secreção, com ou sem insulinorresistência2. Esta definição incluiu praticamente todos os casos de diabetes observados a nível mundial, pelo que todas as tentativas de caracterização dos vários subtipos desta doença e o seu esclarecimento etiológico foram indiretamente reduzidos em importância e logo em investigação.
Em doentes de origem asiática, africana, latino‐americana e de outras zonas mais desfavorecidas do globo existem vários fenótipos descritos que não se encontram na classificação tradicional de diabetes e que acabam por ser enquadrados na categoria da DM tipo 21. Dados mais recentes voltaram a sugerir a existência de uma forma atípica de diabetes insulinodependente nas áreas rurais de África (predominantemente África subsaariana), Ásia e América Latina3,4 que difere da DM tipo 1 existente nas áreas ocidentalizadas dessas regiões4. Segundo diferentes autores, trata‐se de uma doença que atinge principalmente adultos jovens normoponderais ou magros e está invariavelmente associada a situações de baixo nível socioeconómico e desnutrição proteico‐calórica.
Tendo em conta os padrões de migração global e numa tentativa de alerta para a existência deste tipo de DM mesmo em Portugal, apresentamos 2 casos clínicos de DM em indivíduos de origem asiática, magros, sem patologia pancreática crónica conhecida e com baixo nível socioeconómico que se apresentaram num centro hospitalar universitário (Centro Hospitalar do Porto – CHP) com um quadro clínico arrastado sugestivo de hiperglicemia prolongada sem cetoacidose, mesmo na ausência de terapêutica com insulina.
Com este trabalho pretendemos rever a patogénese da diabetes associada à desnutrição proteica, salientar a importância do seu reconhecimento como subtipo de diabetes – particularmente nos países em vias de desenvolvimento ou desfavorecidos em termos socioeconómicos – e fomentar a discussão acerca da sua inclusão na classificação atual da DM.
Caso 1Homem de 35 anos, de nacionalidade indiana (estado do Punjabe), residente em Portugal desde há 2 meses, desempregado. História de desnutrição proteica ao longo da infância/adolescência e sem antecedentes patológicos conhecidos ou história familiar conhecida de DM.
Recorreu ao Serviço de Urgência do CHP em abril de 2011 com um quadro de astenia marcada, polidipsia e vómitos de evolução insidiosa nos últimos meses. Na admissão hospitalar encontrava‐se desidratado, emagrecido (índice de massa corporal [IMC] 18 kg/m2, com marcada lipoatrofia subcutânea), com tendência hipotensiva (pressão arterial [PA] 88/55mmHg) e bradicárdico (frequência cardíaca 50bpm, em ritmo sinusal). Analiticamente com glicemia plasmática de 1.152mg/dL, sem acidose metabólica e com pesquisa de corpos cetónicos na urina negativa. Apresentava anemia microcítica e hipocrómica e valores diminuídos de lipídeos, ácido úrico e proteínas. Foi feito o diagnóstico de síndrome hiperosmolar hiperglicémica não cetósica no contexto de diabetes inaugural, sem fator precipitante esclarecido e instituída terapêutica adequada com insulina e fluidoterapia endovenosas.
Os marcadores de autoimunidade foram negativos: anticorpos anti‐Glutamic Acid Decarboxylase (GAD) 0,116U/mL (N: 0‐1,45), anti‐Islet cell Antibodies (ICA) <0,95U/mL (n: <0,95) e anti‐insulina <0,03U/mL (n: <0,4). O restante estudo mostrou níveis plasmáticos baixos, mas doseáveis de peptídeo C (0,08ng/mL; n: 1,1‐4,4), HbA1c 18,1% e função tiroideia normal (TSH 2,11μUI/mL; n: 0,27‐4,2). O estudo com radiografia abdominal simples não mostrou calcificações pancreáticas. Perante o perfil hipotensivo e a bradicardia sinusal persistentes foi doseado o cortisol matinal (12,7mcg/dL; n: 6,2‐19,4); a prova de estimulação com tetracosactídeo excluiu insuficiência adrenal primária.
O controlo glicémico foi atingido com 26 unidades (U) diárias de insulina basal humana. O doente foi posteriormente perdido no seguimento.
Caso 2Mulher de 51 anos, natural e residente habitualmente em Timor Leste (Díli), educadora de infância, com história de desnutrição proteica na infância e adolescência.
Durante uma estadia em Portugal, em julho 2011, foi admitida no CHP por perda ponderal (cerca de 20kg em um ano), poliúria, polidipsia e astenia marcada com alguns meses de evolução. A doente tinha sido diagnosticada com DM 8 meses antes, em Díli, e encontrava‐se medicada com glibenclamida 15mg/dia desde o diagnóstico, mas manteve perda ponderal, poliúria e polidipsia apesar da terapêutica. Sem episódios de cetoacidose diabética documentados. Sem história de excesso de peso prévia ao diagnóstico de DM e sem história familiar conhecida de DM.
À admissão apresentava‐se emagrecida (IMC 14,7kg/m2) e com lipoatrofia e atrofia muscular generalizadas; PA 98/50mmHg. Apresentava glicemia plasmática de 560mg/dL e HbA1c 13%, sem cetonemia ou critérios de cetoacidose diabética. Perante o diagnóstico de DM mal controlada, sem resposta à terapêutica com antidiabéticos orais, foi instituída terapêutica com insulina. O estudo analítico mostrou peptídeo C baixo, mas doseável (0,41ng/mL; VR: 1,1‐4,4), valores diminuídos de proteínas e função tiroideia normal (TSH 1,16μUI/mL; n: 0,27‐4,2). Excluída insuficiência adrenal (cortisol matinal 17,6mcg/dL; n: 6,2‐19,4). Apresentava anticorpos anti‐GAD fracamente positivos (2,88U/mL; VR: 0‐1,45U/mL), anticorpos anti‐insulina e anti‐ICA negativos (<0,4U/mL e <0,95U/mL, respetivamente). A radiografia abdominal simples não mostrou calcificações pancreáticas.
O controlo glicémico foi atingido com 16U diárias de insulina basal humana. A doente não manteve seguimento posterior no CHP dado ter regressado a Timor‐Leste.
DiscussãoOs 2 casos descritos correspondem a situações de DM que surgiram em indivíduos adultos, com desnutrição proteico‐calórica, naturais de regiões economicamente carenciadas do globo e com baixo nível socioeconómico. Apresentavam uma forma de DM insulinocarente cujos sintomas se instalaram insidiosamente. A ausência de tratamento com insulina não originou porém cetoacidose. Os marcadores de autoimunidade estavam ausentes ou em baixo título, com níveis de peptídeo C baixos, mas mensuráveis, e as calcificações pancreáticas inexistentes.
Estes casos assemelham‐se a outros que têm vindo a ser descritos na literatura desde a 6.ª década do século XX. Em 1955, após a revisão de vários casos de diabetes diagnosticados de novo na Jamaica durante um ano, foi descrita por Hugh‐Jones uma síndrome que diferia dos 2 principais tipos de DM (DM tipo 1 e tipo 2)5. O autor denominou este tipo de DM como diabetes «tipo J» ou «insulinorresistência do jovem», que surgia predominantemente no adulto jovem (menos de 40 anos) e cronicamente desnutrido, necessitava de elevadas doses de insulina para o controle glicémico e ponderal, mas na sua ausência não desenvolvia cetoacidose (permitindo distingui‐la da DM tipo 1)5. Casos semelhantes foram reportados na Índia6,7 e África8, com graus variáveis de insulinorresistência. Em 1959, Zuidema descreveu uma entidade denominada diabetes «tipo Z» ou diabetes «tropical», caracterizada pela desnutrição crónica desde a infância, presença de calcificações pancreáticas e fibrose e necessidade de elevadas doses de insulina9.
Estudos subsequentes mostraram que a distinção entre os vários tipos de DM é complexa: muitos dos doentes que inicialmente preenchiam os critérios de determinado tipo de diabetes já não os preenchiam após seguimento prolongado10. Apesar disto, foi reconhecido o papel da desnutrição no desenvolvimento de diabetes nas regiões subdesenvolvidas11. A complexidade da classificação dos vários tipos de DM traduz‐se pela grande quantidade de nomes dada à(s) doença(s): diabetes tropical, diabetes resistente à cetose, diabetes «tipo J», diabetes «tipo Z», diabetes ligada à desnutrição, diabetes pancreática, diabetes relacionada com o défice proteico, síndrome pancreática endócrina, diabetes juvenil tropical, entre muitos outros10.
Em 1980, numa tentativa de uniformização, Ahuja et al.12 sugeriram os seguintes critérios para a diabetes relacionada com a desnutrição, «tipo J» ou «resistente à cetose»: glicemia plasmática esporádica superior a 200mg/dL, início da doença antes dos 30 anos de idade, IMC inferior a 18kg/m2, ausência de cetose com a suspensão da insulinoterapia, baixo nível socioeconómico ou história de desnutrição infantil, ausência de história familiar da doença e de calcificações pancreáticas, e necessidades superiores a 60U diárias de insulina (ou superior a 1,5Ukg/dia). Para a diabetes pancreática tropical ou diabetes «tipo Z» as características clínicas são, segundo Mohan, história de desnutrição, dor abdominal recorrente desde a infância, presença de calcificações pancreáticas na radiografia abdominal ou achados típicos na ecografia abdominal e défice glandular exócrino relevante, na ausência de alcoolismo, litíase biliar e hiperparatiroidismo13.
Com base nestes estudos, em 1985, o grupo de estudos da OMS subdividiu o grupo da diabetes relacionada com a desnutrição em 2 categorias: diabetes pancreática com défice de proteínas (protein deficient pancreatic diabetes – PDPD) e diabetes pancreática fibrocalculosa (fibro‐calculous pancreatic diabetes – FCPD)14. A primeira, correspondente à previamente denominada diabetes «tipo J» ou «resistente à cetose», foi entretanto retirada da classificação de diabetes da OMS em 1999, enquanto a segunda, correspondente à diabetes pancreática tropical, se manteve na classificação. De facto, ao contrário da PDPD, a patogénese da FCPD encontra‐se melhor estabelecida15. Apesar de ter sido retirada da classificação, inúmeros relatos de casos sugestivos de PDPD ou diabetes juvenil resistente à cetose/diabetes associada à desnutrição proteica foram entretanto publicados nas últimas décadas1,4–6 e apesar de existirem casos de DM tipo 1 e tipo 2 na África subsaariana, dados epidemiológicos sugerem uma elevada prevalência daquele tipo de diabetes16,17. No norte da Índia este parece mesmo ser o segundo tipo mais frequente de diabetes3.
A etiologia da diabetes associada à desnutrição proteica não se encontra totalmente esclarecida e o papel desempenhado pela desnutrição não é claro. Parece pouco provável que a desnutrição por si só possa levar ao grau de hiperglicemia observado nestes doentes18, mas estudos realizados em animais demonstraram que a desnutrição proteico‐calórica na infância pode lesar as células pancreáticas e favorecer o desenvolvimento de diabetes19,20, existindo também evidência humana desta relação11. No decurso do Kwashiorkor, uma doença resultante do défice grave de aporte proteico, existe uma tendência para a redução da secreção de insulina devido à diminuição do número de células β pancreáticas e da sua capacidade de replicação21,22; esta situação parece estar preferencialmente associada ao défice de proteínas, mas o mecanismo subjacente não é claro23,24. Se existem estudos que apontam para a reversibilidade deste mecanismo com a reposição proteica25,26, existem outros que mostram persistência da diminuição da tolerância à glicose e mesmo desenvolvimento de diabetes27. Estudos mais recentes28,29 realizados em ratos demonstraram que uma dieta materna subótima em fases precoces do desenvolvimento fetal pode promover alterações na regulação epigenética do gene que codifica o fator de transcrição HNF‐4α, conhecido como essencial para a diferenciação da célula β pancreática e a manutenção da homeostase da glicose, e que estas parecem favorecer a supressão epigenética do locus do gene do referido fator de transcrição.
No entanto, nem sempre se pode excluir a causalidade reversa entre a desnutrição e este tipo de diabetes, ou seja, que as manifestações clínicas da desnutrição sejam consequência da diabetes cronicamente mal controlada e do mau aporte nutricional30; apesar disto, alguns estudos mostram que a desnutrição se apresentou como uma condição prévia ao desenvolvimento de diabetes, não tendo sido encontrada relação entre o grau de desnutrição e a duração conhecida da diabetes4. Ainda assim, o baixo IMC dos doentes com este tipo de diabetes pode de facto refletir a associação da desnutrição persistente ao mau controlo metabólico da doença4.
A DM associada à desnutrição proteica difere de alguns subtipos menos frequentes de DM tipo 1 com marcadores de autoimunidade negativos. A DM tipo 1 caracteriza‐se pelo défice de insulina devido à destruição das células‐β pancreáticas e é atualmente classificada em 2 subtipos: tipo 1A (autoimune ou clássica), mais prevalente, e tipo 1B (não autoimune ou idiopática)31. A DM tipo 1B, cuja patogénese não se encontra totalmente compreendida, corresponde de 4‐7% dos casos e inclui formas não clássicas, como a diabetes fulminante e a diabetes com tendência à cetose (Ketosis‐prone diabetes mellitus)32. A DM tipo 1B fulminante foi reportada pela primeira vez no Japão em 200033 e inclui como características clínicas a presença de sintomas gripais previamente ao diagnóstico, hiperglicemia grave com cetoacidose precoce, nível de HbA1c normal/baixo, concentrações plasmáticas muito baixas de peptídeo C e dependência completa e permanente da insulinoterapia34. Foi também descrita em indivíduos da África subsaariana e Ásia17,35 e, apesar de ser uma entidade heterogénea e não totalmente caracterizada, ocorre principalmente em jovens obesos do sexo masculino com história familiar de diabetes e ausência de marcadores de autoimunidade e consiste num início abrupto dos sintomas (geralmente associado a cetoacidose); a doença evolui lentamente para a insulinodependência com alternância entre períodos de normoglicemia e períodos de hiperglicemia com cetoacidose34. De facto, os casos descritos neste artigo parecem assemelhar‐se a outros casos de diabetes associada à desnutrição proteica descritos na literatura, mostrando‐se bastante diferentes destes 2 subtipos de DM tipo 1. A sua base genética parece também ser distinta da DM tipo 1, mas não está ainda claramente estabelecida36. Os marcadores de autoimunidade contra a célula β pancreática são detetados com menos frequência do que nos indivíduos com DM tipo 137,38. Ainda assim, alguns dos indivíduos com diabetes associada à desnutrição podem apresentar positividade autoimune39, em particular a positividade isolada dos autoanticorpos anti‐GAD65 (descarboxilase do ácido glutâmico de 65KDa)3,16,40. No primeiro caso clínico descrito foi excluída a presença de autoimunidade dirigida à célula β; já no segundo caso foram detetados títulos positivos baixos apenas para os anticorpos anti‐GAD65.
Nestes doentes, os níveis basais de peptídeo C parecem ser intermédios entre os encontrados na DM tipo 1 e tipo 23,16. Isto pode ser explicado pela menor destruição da célula β na diabetes associada à desnutrição proteica em relação à DM tipo 1, mas que, apesar de tudo, é relevante, já que o controlo glicémico é atingido apenas com insulina e não com antidiabéticos orais16. Os níveis baixos mas doseáveis de peptídeo C garantem uma secreção residual de insulina suficiente para suprimir a lipólise e impedir o desenvolvimento de cetoacidose, mas revelam‐se insuficientes para prevenir a hiperglicemia41. Nos 2 casos clínicos descritos os níveis de peptídeo C apresentam‐se de facto diminuídos, mas doseáveis.
Classicamente, este tipo de diabetes foi descrita como carente de doses elevadas de insulina para atingir um controle metabólico aceitável, o que inicialmente foi interpretado como consequência de insulinorresistência, mas que hoje é entendido como secundário a um défice marcado da secreção pancreática42,43. Apesar da necessidade de insulina para o controle da doença, este tipo de doentes pode, na sua ausência, manter uma clínica insidiosa durante meses ou anos sem nunca desenvolver cetoacidose, não só pela produção residual de insulina, mas também pelas características inerentes à própria desnutrição, com escassas reservas corporais de gordura, consequente diminuição da disponibilidade de ácidos gordos livres para a produção de corpos cetónicos e diminuição da resposta cetogénica às catecolaminas44. Alguns autores defendem mesmo que a melhoria do estado nutricional destes doentes aumenta a probabilidade de ocorrer cetoacidose numa fase mais avançada da doença. Por outro lado, existirão outros casos que ao fim de alguns anos da doença podem ser controlados sem insulina, o que favorece a possibilidade de a diabetes associada à desnutrição proteica constituir um grupo etiologicamente mais heterogéneo de doenças43. Nos casos apresentados, apesar de uma clínica sugestiva de insulinocarência com meses de evolução, não haviam sido documentados episódios de cetoacidose. As doses de insulina necessárias nestes doentes foram relativamente baixas (cerca de 0,5Ukg/dia) quando comparadas às descritas na literatura para a diabetes associada à desnutrição proteica, o que poderia levantar a suspeita de estarmos perante outro tipo de diabetes, nomeadamente alguns subtipos de maturity onset diabetes of the young (MODY). No entanto, a ausência de familiares de primeiro grau afetados (apesar de ser um facto referido e não comprovado) torna este facto menos provável. Para além disto, os níveis baixos de peptídeo C no primeiro caso, a má resposta terapêutica às sulfonilureias no segundo e a presença de uma exagerada hiperglicemia em jejum em ambos também os tornam dificilmente enquadráveis dentro deste subtipo de DM45. Porém, parece de fato existir um ponto comum entre a etiopatogenia da diabetes associada à desnutrição proteica e a da MODY tipo 1, responsável por cerca de 10% dos casos de MODY45. Em ambas a expressão do fator de transcrição HNF‐4α apresenta‐se alterada. Na MODY tipo 1 são as mutações transmitidas de forma autossómica dominante do gene HNF‐4α (ou do seu promotor P2 na célula β) que justificam a existência de uma perturbação da homeostasia glicémica46,47, enquanto que na diabetes associada à desnutrição proteica a responsabilidade será provavelmente das alterações epigenéticas introduzidas na sua expressão ao nível pancreático29. Este encontro patofisiológico poderá explicar algumas das características partilhadas pelos 2 subtipos de DM e deverá ser alvo de investigação futura.
ConclusõesApesar de descrito em inúmeras publicações, este tipo de diabetes é pouco reconhecido e não existem dados epidemiológicos concretos, o que é provavelmente explicado pela ausência de critérios de diagnóstico bem definidos. De forma simples, podemos considerar que esta patologia ou grupo de patologias reúnem as seguintes características: contexto socioeconómico desfavorecido, história de desnutrição infantil, manifestação da doença na juventude, evidência clínica de desnutrição, necessidade de insulina para o controle glicémico, resistência à cetoacidose (mesmo na ausência de insulinoterapia) e ausência de calcificações pancreáticas visíveis imagiologicamente ou disfunção pancreática exócrina44. A desnutrição crónica parece ter um papel modulador na expressão fenotípica da doença, mas a autoimunidade pode também desempenhar um papel importante num subgrupo destes doentes44.
Para além dos tipos de DM classicamente reconhecidos, existem outros fenótipos da doença não totalmente esclarecidos nem reconhecidos, particularmente nos países subdesenvolvidos. Torna‐se necessária uma investigação mais rigorosa e sistemática das suas características, etiologia, distribuição geográfica e abordagem terapêutica mais adequada, abrindo assim simultaneamente novos caminhos para a investigação dos mecanismos de disfunção da célula β.
Baseados em casos semelhantes aos apresentados, vários autores propõem a reabertura da discussão acerca da diabetes relacionada com a desnutrição. Se de facto se comprovar a relação entre os défices nutricionais graves e este tipo de diabetes, deverão ser desenvolvidas estratégias apropriadas para lidar com a doença, já que esta parece ser uma causa importante de mortalidade e morbilidade em muitos países em vias de desenvolvimento.
Conflito de interessesOs autores declaram não haver conflito de interesses.