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Vol. 9. Núm. 1.
Páginas 74-78 (enero - junio 2014)
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Páginas 74-78 (enero - junio 2014)
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Sobrecarga de ferro e diabetes mellitus
Iron overload and diabetes mellitus
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Sofia Gouveia
Autor para correspondencia
sofiamgouveia@gmail.com

Autor para correspondência.
, Cristina Ribeiro, Francisco Carrilho
Serviço de Endocrinologia, Diabetes e Metabolismo, Hospitais da Universidade de Coimbra – Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, E.P.E, Coimbra, Portugal
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Tabela 1. Causas de sobrecarga de ferro
Resumo

A sobrecarga de ferro pode ser atribuível a causas hereditárias ou secundárias.

A hemocromatose hereditária é a doença genética mais comum entre Caucasianos. Em Portugal, à semelhança da Europa, é mais frequente na região Norte.

A diabetes mellitus secundária à hemocromatose hereditária parece resultar da associação entre a diminuição da secreção de insulina e o agravamento da insulinorresistência. Não existe consenso relativamente ao mecanismo primordial.

Aporte de ferro elevado, saturações de transferrina aumentadas e homozigotia para a mutação C282Y associam‐se a aumento de risco para a diabetes mellitus tipo 1.

É recomendável que as reservas de ferro sejam avaliadas em doentes com diabetes mellitus, na medida em que o diagnóstico precoce de sobrecarga de ferro poderá evitar as complicações subsequentes.

Palavras‐chave:
Sobrecarga de ferro
Hemocromatose hereditária
Diabetes mellitus
Secreção de insulina
Insulinorresistência
Abstract

Iron overload might be ascribable to hereditary or secondary causes.

Hereditary hemochromatosis is the most common genetic disorder among Caucasians. In Portugal, likewise in Europe, it is more frequent in the North.

Diabetes due to hereditary hemochromatosis seems to result from a decrease in insulin secretion and increase in insulin resistance. No consensus was reached on what concerns to the main mechanism.

High iron intake, increased transferrin saturation and C282Y homozygosity are associated with increased risk for type 1 diabetes mellitus.

It is advisable to assess iron stores in patients with diabetes mellitus, as long as an early diagnosis of iron overload may prevent subsequent complications.

Keywords:
Iron overload
Hereditary hemochromatosis
Diabetes mellitus
Insulin secretion
Insulin resistance
Texto completo
Introdução

A hemocromatose hereditária é a causa genética mais comum de sobrecarga de ferro. Ainda que a penetrância seja reduzida, a morbimortalidade nos indivíduos afetados é significativa1–5.

Alguns estudos sustentam que a hemocromatose hereditária e outras formas de sobrecarga de ferro podem constituir um fator de risco para a diabetes mellitus tipo 1 (DMT1)6–8.

Os autores pretendem caracterizar a hemocromatose hereditária e o impacto da doença em Portugal, bem como rever a evidência científica relativa à fisiopatologia da diabetes mellitus secundária à hemocromatose e à associação entre hemocromatose e DMT1.

Etiologia da sobrecarga de ferro. Causas hereditárias e adquiridas

A hemocromatose hereditária ligada ao gene HFE é a causa genética mais comum de sobrecarga de ferro. Considerando indivíduos de ascendência norte‐europeia, verificou‐se que em 85‐90% dos casos hereditários de sobrecarga de ferro está implicada a homozigotia para a mutação C282Y do gene HFE; os heterozigotos compostos C282Y/H63D (3‐5% dos casos) e C282Y/S65C são minoritários. Os restantes 10 a 15% de casos de sobrecarga de ferro primária são consequência de mutações dos genes que codificam a hemojuvelina (HJV), a hepcidina (HAMP), o recetor 2 de transferrina (TFR2) e a ferroportina (SLC40A1), configurando formas de hemocromatose hereditária não atribuíveis ao gene HFE1,2,4,6,9.

Consoante a mutação implicada, a hemocromatose hereditária pode ser classificada em tipo 1 (gene HFE), 2A (gene HJV), 2B (gene HAMP), 3 (gene TFR2) e 4 (gene SLC40A1). Todas as formas são de transmissão autossómica recessiva, à exceção da hemocromatose hereditária tipo 4 (autossómica dominante)9–11.

Apesar dos órgãos‐alvo da acumulação de ferro serem comuns a qualquer tipo de hemocromatose hereditária, o fenótipo inicial é determinado pela mutação implicada e inerente magnitude da sobrecarga. O coração e as glândulas endócrinas têm maior concentração de mitocôndrias e menor capacidade antioxidante do que o fígado, sendo por isso mais suscetíveis a lesões mediadas pela sobrecarga de ferro a curto/médio prazo3.

Nas formas de hemocromatose juvenil (tipo 2; genes HJV e HAMP) verifica‐se um aumento súbito e significativo dos níveis de ferro plasmático, o que justifica um quadro de insuficiência cardíaca e endócrina (hipogonadismo, diabetes mellitus) antes dos 20‐30 anos de idade. Por oposição, a hemocromatose hereditária tipo 1 (gene HFE) caracteriza‐se por sobrecarga de ferro gradual e prolongada, o que motivará também lesão hepática e início das manifestações clínicas numa fase mais avançada da vida, entre os 40 e os 50 anos de idade (para o sexo masculino). A hemocromatose hereditária tipo 3 (manifestações clínicas iniciais entre os 30 e os 40 anos) e tipo 4 (faixa etária afetada prolonga‐se dos 10 aos 80 anos) condicionam fenótipos intermédios relativamente aos descritos previamente3,11.

As causas de hemocromatose hereditária e de sobrecarga de ferro secundária encontram‐se enumeradas na tabela 12,3,9–11.

Tabela 1.

Causas de sobrecarga de ferro

Hemocromatose hereditária 
Por mutação do gene HFE 
Hemocromatose hereditária tipo 1 
Por outro tipo de mutação 
Hemocromatose hereditária tipo 2A (gene HJV) 
Hemocromatose hereditária tipo 2B (gene HAMP) 
Hemocromatose hereditária tipo 3 (gene TFR2) 
Hemocromatose hereditária tipo 4 (gene SLC40A1) 
 
Sobrecarga de ferro secundária 
Doença hepática crónica 
Hepatite B e C 
Hepatopatia alcoólica 
Esteatose hepática não‐alcoólica 
Porfiria cutânea tardia 
Shunt portocava 
Anemia associada a sobrecarga de ferro 
Talassemia major 
Anemia sideroblástica 
Anemia aplásica 
Anemia hemolítica crónica 
Deficiência de piruvato cinase 
Sobrecarga de ferro parentérica 
Administração parentérica de ferro 
Transfusão de concentrado eritrocitário 
Hemodiálise de longa duração 
Multifatoriais 
Atransferrinemia congénita 
Aceruloplasminemia 
Sobrecarga de ferro neonatal/hemocromatose aloimune neonatal 
Sobrecarga de ferro africana/siderose de Bantu 
Hemocromatose hereditária tipo 1

A hemocromatose hereditária é a doença genética mais comum entre Caucasianos; é particularmente frequente em indivíduos com ascendência nórdica ou celta, com uma prevalência estimada de um caso por cada 220‐250 pessoas. Esta patologia é menos frequente nos restantes grupos étnicos2,3.

Numa população caucasiana adulta, as frequências alélicas das mutações C282Y, H63D e S65C do gene HFE são respetivamente estimadas em 6,2, 14 e 0,5%. A mutação H63D é a mais comum, sendo a sua frequência relativamente similar nas diferentes populações de origem caucasiana. Por oposição, a frequência alélica da mutação C282Y é maior nas populações do norte da Europa, estando descritas frequências da ordem dos 7,8% na Noruega e 12,75% na Irlanda, muito superiores às registadas em Portugal1,9,11,12.

A homozigotia H63D e a heterozigotia composta C282Y/H63D ou C282Y/S65C associam‐se a sobrecarga ligeira de ferro. A heterozigotia C282Y ou H63D não condiciona habitualmente sobrecarga de ferro. Contudo, os indivíduos com os referidos genótipos podem desenvolver manifestações clínicas (nomeadamente hepáticas) caso apresentem outras entidades que se constituam como cofatores de risco para a sobrecarga de ferro (hepatopatia alcoólica, esteatose hepática não‐alcoólica, hepatite B ou C, porfiria cutânea tardia, shunt portocava, anemia com sobrecarga de ferro, obesidade)1,2,5.

Como consequência da deposição de ferro em diferentes órgãos, podem surgir manifestações hepáticas (hepatomegalia, insuficiência hepática, cirrose, carcinoma hepatocelular), cardiovasculares (arritmias, miocardiopatia, insuficiência cardíaca), osteoarticulares (condrocalcinose, osteoporose, artrite séptica, poliartrite simétrica com atingimento preferencial da 2.a e 3.a articulações metacarpofalângicas), cutâneas (hiperpigmentação, atrofia cutânea, porfiria cutânea tardia) e endocrinológicas (diabetes mellitus, hipogonadismo hipogonadotrófico, hipo ou hipertiroidismo). Os doentes podem ainda referir queixas inespecíficas de astenia e perda de peso. A homozigotia C282Y aparenta associar‐se a aumento de risco de cancro colorrectal (ambos os sexos) e cancro da mama (no sexo feminino)1–5,9,10.

Cerca de 70% dos homozigotos C282Y apresentam alterações da cinética de ferro e até 10% desenvolvem uma complicação atribuível à hemocromatose. A probabilidade de um doente desenvolver sintomas é superior em indivíduos com antecedentes de etilismo e do sexo masculino (28% dos homens vs. 1% das mulheres homozigotas C282Y desenvolvem manifestações clínicas). As perdas menstruais (ou as hemorragias de privação) e gestações (um grama de ferro é removido por cada gestação de termo) minimizam a acumulação de ferro e atrasam a progressão da doença no sexo feminino1,2,9.

O algoritmo de diagnóstico proposto pela American Association for the Study of Liver Diseases (AASLD) estabelece que a população‐alvo de rastreio para a hemocromatose deve englobar indivíduos com história familiar de hemocromatose, sintomas ou alterações bioquímicas e/ou imagiológicas que sugiram sobrecarga de ferro (p. ex. alterações das provas hepáticas, hepatomegalia, cardiomegalia). Caso apresentem saturação de transferrina igual ou superior a 45% e/ou ferritina elevada devem ser submetidos a estudo do gene HFE (após confirmação da elevação da saturação de transferrina numa avaliação em jejum)2.

Em doentes com hemocromatose que ainda não desenvolveram cirrose e/ou diabetes mellitus secundária à doença, a taxa de sobrevivência é semelhante à da população geral. Portanto, doentes com hemocromatose hereditária e evidência de sobrecarga de ferro devem ser tratados precocemente com recurso a flebotomias (ou, em caso de intolerância ou contraindicação, alvo de tratamento com o quelante de ferro desferroxamina), cuja regularidade deve ser adaptada individualmente em função da resposta à terapêutica1,2,4,9,10.

A mortalidade na hemocromatose hereditária está associada primordialmente à insuficiência cardíaca, diabetes mellitus, cirrose hepática e carcinoma hepatocelular3–5.

Hemocromatose hereditária tipo 1 em Portugal. A existência de um gradiente Norte‐Sul relativo à mutação C282Y

Num estudo publicado em 2001 comparou‐se a frequência das mutações C282Y e H63D nas diferentes regiões geográficas de Portugal (n=640)12.

A frequência alélica da mutação C282Y foi de 5,8% no Norte, 4,6% no Centro, 3% em Lisboa e Vale do Tejo, 2,3% no Alentejo e 0,9% no Algarve. Relativamente à frequência alélica da mutação H63D, não se verificou a existência de diferença estatisticamente significativa entre as regiões mencionadas. Foram registadas frequências alélicas de H63D de 19,4% no Norte, 20% no Centro, 15% em Lisboa e Vale do Tejo, 18,2% no Alentejo e 16,8% no Algarve12.

Os homozigotos C282Y constituíram 0,8% da amostra do norte e centro do país; não foram detetados casos nas restantes regiões. Os heterozigotos compostos C282Y/H63D corresponderam a 2,3% da amostra da região Norte, 3,8% da região Centro, 0,8% da região de Lisboa e Vale do Tejo e do Alentejo e 1,7% do Algarve12.

No estudo mencionado constatou‐se a existência de um gradiente Norte‐Sul relativamente à mutação C282Y. Alguns autores sustentam que a mutação H63D é mais antiga do que a C282Y, o que poderia justificar a ausência de disparidades geográficas na frequência alélica da mutação H63D (as diferenças ter‐se‐iam esbatido ao longo de múltiplas gerações de migrações e cruzamentos). Ao longo dos séculos, os povos que foram invadindo a Península Ibérica dominaram diferentes áreas geográficas por períodos de tempo variáveis, em função das suas sucessivas conquistas e derrotas. Assim, a área de influência geográfica dos Celtas e posteriormente dos Suevos abrangeu maioritariamente o que hoje corresponde à região norte de Portugal, cuja frequência alélica da mutação C282Y é semelhante à das populações do norte da Europa12,13.

O tempo de ocupação pelos Mouros foi superior no sul do país, o que poderia justificar a reduzida frequência da mutação C282Y nesta região. Outra hipótese está relacionada com o facto da incidência de malária ser comparativamente superior no sul de Portugal. A mutação C282Y e a sobrecarga de ferro inerente poderiam constituir uma desvantagem em doentes com malária, pelo que em áreas com maior incidência desta doença a seleção natural tenderia a não favorecer indivíduos com a mutação C282Y12,13.

Num estudo que envolveu 218 indivíduos nascidos na Ilha Terceira (Açores), verificou‐se que a frequência alélica das mutações C282Y, H63D e S65C do gene HFE foi de, respetivamente, 2,1, 17,6 e 2,1%. Não foram detetados casos de homozigotia para a mutação C282Y ou heterozigotia C282Y/S65C. Contudo, o genótipo C282Y/H63D estava presente em 0,9% da amostra. O povoamento da ilha foi efetuado por populações com frequências alélicas de C282Y reduzidas comparativamente com o norte da Europa, nomeadamente Portugueses, Flamengos, Espanhóis, Italianos, Berberes e Judeus14.

Num estudo em que a população era originária da Ilha da Madeira (n=154), concluiu‐se que a frequência alélica da mutação C282Y, H63D e S65C do gene HFE foi de, respetivamente, 0,33, 20,5 e 1%. Os heterozigotos C282Y/H63D constituíam 0,65% da população estudada. Não foram identificados homozigotos C282Y nem heterozigotos C282Y/S65C nesta amostra. Considerando Portugal, e em consonância com o gradiente Norte‐Sul relativo à frequência alélica da mutação C282Y, a Madeira é a região com frequência mais reduzida de mutações C282Y e mais elevada de mutações H63D. O pool genético da Ilha da Madeira reflete a povoação por Portugueses e indivíduos de origens europeias distintas (Espanhóis, Italianos, Franceses e Britânicos). A contribuição genética dos escravos de origem subsariana é significativa e poderá justificar a disparidade da frequência alélica de mutações do gene HFE comparativamente com Portugal Continental e restante Europa15.

Fisiopatologia da diabetes mellitus secundária a hemocromatose

Níveis elevados de ferritina, ainda que contidos dentro do amplo intervalo de referência, podem induzir um efeito deletério sobre a secreção de insulina e insulinorresistência16.

O excesso de ferro induz a produção de radicais livres de oxigénio. O stress oxidativo pode promover a falência da célula β‐pancreática (diminuição da expressão do gene da insulina, com subsequente decréscimo da secreção) e o agravamento da insulinorresistência (hidroxilação dos resíduos de fenilalanina condicionando redução da afinidade da insulina pelo recetor; ausência de inibição da neoglicogénese na presença de insulina). A acumulação de ferro a nível hepático contribui para a insulinorresistência e hiperinsulinismo periférico6,7,16,17.

Relativamente ao mecanismo fisiopatológico primordial subjacente à diabetes mellitus secundária à hemocromatose hereditária, os dados apresentados por diferentes estudos são contraditórios.

Alguns autores consideram que a diminuição da secreção de insulina antecede o agravamento da insulinorresistência na progressão para o desenvolvimento de diabetes mellitus secundária à hemocromatose hereditária. Esta hipótese é sustentada pelo facto dos doentes com hemocromatose hereditária e hiperglicemia intermédia apresentarem um decréscimo da secreção de insulina (reversível pós‐flebotomia), mas com um aumento compensatório da insulinossensibilidade (fenómeno provavelmente mediado pelo aumento de adiponectina). O diagnóstico de diabetes mellitus em doentes com hemocromatose hereditária é maioritariamente estabelecido em indivíduos obesos, em que um estado de insulinorresistência se associa à diminuição da secreção de insulina previamente existente16.

Por oposição, um estudo de Hatunic et al. defende que a diabetes mellitus secundária à hemocromatose hereditária é maioritariamente consequência do agravamento da insulinorresistência. Neste estudo foram incluídos 53 doentes com hemocromatose hereditária recém‐diagnosticada, sem cirrose ou diabetes mellitus conhecida. Todos os doentes foram submetidos, entre outros procedimentos, a uma prova de tolerância à glicose oral (PTGO) com colheitas para o doseamento de glicose, insulina e peptídeo C em jejum e a cada 30 minutos durante a duração da prova. Deste modo, cada indivíduo foi avaliado relativamente à secreção de insulina (com base na concentração de peptídeo C em contexto de PTGO) e à insulinossensibilidade (recorrendo aos índices quantitative insulin sensitivity check índex [QUICKI], em jejum e oral glucose insulin sensitivity [OGIS], em contexto de PTGO). De acordo com os resultados da PTGO, a população estudada foi subdivida em 2 grupos: um com normal tolerância à glicose (n=38) e outro com hiperglicemia intermédia ou diabetes mellitus aparentemente secundária à hemocromatose (n=15). Concluiu‐se que doentes com hiperglicemia intermédia ou diabetes mellitus apresentavam maior insulinorresistência, assim como níveis mais elevados de peptídeo C e insulina em jejum17.

Um outro estudo foi igualmente desenhado com o objetivo de avaliar a secreção de insulina (com base no cálculo do aumento da concentração da insulina plasmática verificado no período entre o 2.° e o 5.° minuto após a administração de um bólus de glicose durante a prova de tolerância à glicose endovenosa) e a insulinorresistência (cálculo efetuado com recurso a programa informático que integra os doseamentos seriados de glicose e insulina plasmáticos obtidos no decorrer da prova supramencionada) em doentes com hemocromatose hereditária. Foram incluídos 10 controlos e 17 indivíduos com hemocromatose: 2 com diabetes mellitus, 4 com diabetes mellitus e cirrose, 4 com cirrose e 7 assintomáticos. Os indivíduos assintomáticos apresentavam insulinossensibilidade preservada e redução da secreção de insulina, com alguma recuperação após terapêutica com recurso a flebotomia. Todos os doentes diabéticos tinham antecedentes familiares desta doença, pelo que a predisposição genética poderá um fator determinante para o desenvolvimento de diabetes mellitus em contexto de hemocromatose. Verificou‐se que os doentes diabéticos apresentavam redução da secreção de insulina comparativamente com os restantes indivíduos. Nos doentes com diabetes mellitus e/ou cirrose a insulinossensibilidade encontrava‐se diminuída. Não se obteve correlação estatisticamente significativa entre os níveis de ferritina sérica ou concentração de ferro hepático e a secreção de insulina ou insulinossensibilidade. Com base nestes dados e atendendo à ausência de melhoria da secreção de insulina e insulinorresistência após flebotomia em doentes que já apresentam diabetes mellitus e/ou cirrose, os autores avançam com a hipótese de que as alterações do metabolismo glucídico estejam mais relacionadas com a insuficiência hepática e predisposição genética do que com a sobrecarga de ferro per si. No entanto, a amostra é demasiado reduzida para que estas conclusões possam ser extrapoladas18.

Associação entre diabetes mellitus tipo 1 e hemocromatose

Num estudo que envolveu população de origem dinamarquesa (716 diabéticos tipo 1 com o diagnóstico estabelecido após os 30 anos e 9.174 controlos), a prevalência de homozigotia para a mutação C282Y foi superior em doentes com DMT1 de apresentação tardia (1,26%) comparativamente com a população geral (0,25%) com um perfil genético idêntico (odds ratio: 4,6; p=0,0001). A frequência de outros genótipos (heterozigotia composta C282Y/H63D, homozigotia H63D, heterozigotia C282Y, heterozigotia H63D, ausência de mutações) não diferiu entre os 2 grupos6.

Numa meta‐análise (população dinamarquesa) que considerou a associação entre a saturação de transferrina (≥50 vs. <50%) e a diabetes, a razão dos produtos cruzados foi de 2,6 para a DMT1 [p‐0,01] e de 1,7 para a diabetes mellitus tipo 2 (DMT2) [p‐0,001]. A saturação de transferrina pode portanto ser considerada como um marcador de risco para o desenvolvimento de diabetes mellitus8.

A amamentação aparenta ser um fator de proteção contra o aparecimento da DMT1. Contudo, o mecanismo de proteção subjacente ainda não foi clarificado. O aleitamento materno exclusivo atrasa a introdução de outros alimentos (leite de vaca, cereais) e o contacto com antigénios que poderiam desencadear fenómenos de autoimunidade que eventualmente culminariam com o desenvolvimento de DMT1. Adicionalmente, o leite materno disponibiliza menor quantidade de ferro e contém lactoferrina, que minimiza a formação de radicais livres de oxigénio e a peroxidação lipídica mediadas pelo ferro. A quantidade de ferro disponível é de 0,5mg/L no leite materno (absorção da ordem dos 50%), 4,6mg/L nas fórmulas artificiais de baixo teor de ferro e 12mg/L nas fórmulas artificiais de elevado teor de ferro (absorção média de 19%)7.

Um estudo norte‐americano demonstrou que um aporte de ferro elevado nos primeiros 4 meses de vida estava associado ao risco de DMT1 diagnosticada antes dos 6 anos de idade. A ingestão mediana de ferro nos primeiros 4 meses de vida foi de 1.159mg nos doentes (128 crianças com idade igual ou inferior a 10 anos e diagnóstico de DMT1 estabelecido quando tinham entre 1 a 6 anos de idade) e 466mg nos controlos (67 crianças com idade entre 6 e os 10 anos e um irmão com DMT1 diagnosticada antes dos 6 anos de idade; p<0,001). A duração mediana da amamentação foi superior nos controlos (12 semanas) comparativamente com os doentes (4 semanas; p<0,05). Considerando um aumento da ingestão de ferro da ordem de um desvio‐padrão (540mg), a razão dos produtos cruzados foi de 2,01 para o desenvolvimento de DMT17.

Os resultados do estudo Hemochromatosis and Iron Overload Screening (HEIRS) evidenciaram que a concentração da ferritina sérica era mais elevada em mulheres diabéticas (todos os grupos étnicos) e em homens nativo‐americanos diabéticos, comparativamente com o grupo de indivíduos do mesmo género e grupo étnico sem diabetes mellitus conhecida. Observa‐se, contudo, uma exceção: a concentração de ferritina sérica foi mais reduzida em homens asiáticos diabéticos do que não diabéticos. Não se verificou diferença estatisticamente significativa entre os homens diabéticos/não diabéticos dos restantes grupos étnicos (Caucasianos, Negros, Hispânicos e provenientes das ilhas do Pacífico). Verificou‐se a existência de uma correlação direta entre os níveis de ferritina e a presença de diabetes para indivíduos caucasianos, negros e hispânicos (ambos os sexos), bem como para mulheres asiáticas. Apesar de englobar um número significativo de participantes (n=97.470), o estudo apresenta algumas limitações importantes. A divisão entre diabéticos/não diabéticos baseou‐se na informação fornecida pelo participante do estudo e não foi confirmada através da consulta do processo clínico ou realização de estudo laboratorial complementar. Adicionalmente, os doentes não foram agrupados consoante o tipo de diabetes mellitus19.

A European Association for the Study of the Liver sugere que a realização do estudo do gene HFE seja equacionada em doentes com DMT1 (grau de recomendação 2C), mas não com DMT2 (grau de recomendação 1B)1.

Conclusão

A diabetes mellitus é uma manifestação clínica possível em contexto de hemocromatose hereditária. Por outro lado, qualquer forma de sobrecarga de ferro poderá contribuir para o aparecimento de DMT1.

Face a esta associação, justifica‐se a avaliação das reservas de ferro em doentes com diabetes mellitus. Doentes com saturação de transferrina igual ou superior a 45% e/ou ferritina elevada devem ser submetidos a estudo do gene HFE.

O diagnóstico precoce de hemocromatose hereditária em doentes com diabetes mellitus poderá melhorar o seu prognóstico, desde que o tratamento adequado seja instituído. Ao deter a progressão de complicações cardiovasculares e hepáticas (principais causas de mortalidade em doentes com hemocromatose hereditária), evitamos que a qualidade de vida destes doentes (que eventualmente será comprometida pelas complicações micro e/ou macrovasculares) se deteriore.

A prevalência estimada de homozigotia para a mutação C282Y é de 0,8% no norte e centro de Portugal (um caso por cada 125 indivíduos), o que supera a prevalência global estimada de um caso por cada 220‐250 Caucasianos. Adicionalmente, a heterozigotia composta C282Y/H63D atingiu uma prevalência máxima de 3,8% no centro do país, sendo que estes doentes podem apresentar sobrecarga de ferro e desenvolver manifestações caso coexista patologia do foro hepático ou hematológico (que são relativamente frequentes na nossa população). Neste contexto, a sobrecarga de ferro não é uma entidade incomum e deve ser avaliada em doentes com diabetes mellitus e/ou outras manifestações clínicas sugestivas de hemocromatose.

Responsabilidades éticasProteção de pessoas e animais

Os autores declaram que para esta investigação não se realizaram experiências em seres humanos e/ou animais.

Confidencialidade dos dados

Os autores declaram ter seguido os protocolos de seu centro de trabalho acerca da publicação dos dados de pacientes e que todos os pacientes incluídos no estudo receberam informações suficientes e deram o seu consentimento informado por escrito para participar nesse estudo.

Direito à privacidade e consentimento escrito

Os autores declaram que não aparecem dados de pacientes neste artigo.

Conflito de interesses

Os autores declaram não haver conflito de interesses.

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Copyright © 2013. Sociedade Portuguesa de Endocrinologia, Diabetes e Metabolismo
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