A prevalência da obesidade está a aumentar na maioria dos países industrializados, e um dos principais determinantes desta epidemia relaciona-se com a ingestão alimentar excessiva, promovida pelo aumento da acessibilidade aos alimentos de elevada palatibilidade e elevada densidade energética. Como a capacidade em manter uma ingestão nutricional adequada é crítica para a sobrevivência, os mamíferos desenvolveram circuitos neurais extremamente complexos que modulam vários aspetos do comportamento alimentar. O hipotálamo e o tronco cerebral regulam poderosos mecanismos homeostáticos que tentam manter o peso corporal estável. No entanto, no ambiente obesogénico atual, a ingestão alimentar é amplamente determinada por fatores não homeostáticos, de natureza hedónica, processados principalmente em regiões corticolímbicas. Esta revisão descreve os principais mecanismos responsáveis pelo processamento da recompensa alimentar, a interação entre mecanismos homeostáticos e de recompensa, bem como as suas implicações na hiperfagia e na obesidade.
Obesity is on the rise in many industrialized countries, and a large part of this epidemic phenomenon is attributed to overeating induced by ubiquitous highly palatable and high energy density food cues. The ability to maintain adequate nutrient intake is critical for survival. Due to this, complex interrelated neuronal circuits have been developed in the mammalian brain to regulate many aspects of the feeding behavior. There are certain strong homeostatic mechanisms that are regulated by the hypothalamus and the brainstem, which sustain body weight. However, in the current “obesogenic” environment, food intake is largely determined by non-homeostatic or hedonic factors, primarily processed in corticolimbic and higher cortical brain regions. This paper presents a review that describes the mechanisms responsible for the processing of food reward, the interaction between homeostatic and reward mechanisms, as well as its implications in hyperphagia and obesity.
A obesidade é desde o final do século XX, um dos maiores problemas de saúde pública, cujas consequências ultrapassam em muito as questões estéticas1, na medida em que constituem fator de risco para váriaspatologias2 e está associada a custos substanciais para os sistemas de saúde3. O padrão alimentar atual, por sua vez, é caracterizado por uma grande abundância e variedade de alimentos ricos em açúcar e em gordura, com sabor apelativo e elevada densidade energética4. A combinação do sedentarismo com a acessibilidade permanente a alimentos de baixo custo e de elevada palatibilidade tem vindo a tornar o ambiente cada vez mais obesogénico, quase de uma forma global5,6.
Para além de fatores ambientais e sociais5–7, o comportamento alimentar humano é também modulado por mecanismos biológicos internos8–10. Dentro destes, a maioria dos modelos que explicam a regulação da ingestão alimentar propõem 2 tipos de mecanismos distintos, mas relacionados: mecanismos homeostáticos e mecanismos não homeostáticos ou hedónicos10–15. O sistema homeostático inclui reguladores hormonais de fome, saciedade e dos níveis de adiposidade, tais como a leptina, grelina e a insulina, que atuam em circuitos cerebrais hipotalâmicos e do tronco cerebral, estimulando ou inibindo o apetite, de forma a manter um balanço energético adequado. Para além do sistema homeostático, o sistema de recompensa cerebral também desempenha um papel importante na ingestão alimentar11,13,16. De uma forma geral, os alimentos pouco saborosos não são consumidos em excesso, enquanto os alimentos de elevada palatibilidade são frequentemente consumidos mesmo após as necessidades energéticas terem sido atingidas16. Estes alimentos modulam a expressão de sinais metabólicos de fome e de saciedade, no sentido de prolongar a ingestão (devido aos seus teores em açúcar e em gordura)17–23. Por outro lado, ativam o sistema de recompensa cerebral, aumentando assim a motivação para a procura/obtenção de alimentos24,25. A ingestão crónica de alimentos de elevada palatibilidade pode ainda induzir alterações neuroquímicas em zonas cerebrais envolvidas na ingestão e na recompensa26–28.
O ambiente alimentar atual, repleto de estímulos de alimentos de elevada palatibilidade, ao influenciar as escolhas alimentares em termos de frequência de ingestão, quantidade e qualidade dos alimentos ingeridos29–31 pode contribuir para uma ingestão energética excessiva a longo termo, sendo por isso considerado um fator risco ambiental para a obesidade32–34. De facto, o prazer obtido através da ingestão de alimentos palatáveis é uma motivação poderosa que em certos indivíduos se pode sobrepor aos sinais homeostáticos35,36. O estado motivacional criado pela exposição e consumo repetido a alimentos de elevada palatibilidade foi denominado como «fome hedónica» por Lowe e Butryn37, que sugerem que o prazer obtido através do consumo de alimentos palatáveis, mais do que as necessidades energéticas per se, determina a ingestão alimentar em humanos. É esta capacidade de se sobrepor aos sinais homeostáticos e assim promover o aumento de peso37,38 que torna a motivação hedónica tão relevante para a ingestão14,15,39. Comparativamente aos mecanismos homeostáticos que regulam o comportamento alimentar, os mecanismos hedónicos estão bastante menos esclarecidos. Da mesma forma, a influência de fatores biológicos internos ou de alterações induzidas pela dieta nos mecanismos de recompensa cerebral e a medida em que estes fatores contribuem para a obesidade permanecem por esclarecer.
Esta revisão não sistemática tem como principal objetivo apresentar os principais mecanismos responsáveis pelo processamento da recompensa alimentar e as suas implicações na hiperfagia e na obesidade. Serão abordados processos mal adaptativos no processamento da recompensa que podem ser causados pelo excesso ponderal e/ou pela ingestão crónica de alimentos de elevada palatibilidade. Será também focada a interação entre mecanismos homeostáticos e de recompensa, bem como a sua relação com a obesidade.
PalatibilidadeO paladar é mais do que uma experiência sensorial. É um sinal de valor nutricional ou de perigo que evoluiu como um mecanismo de sobrevivência em mamíferos. A forma de experienciar os alimentos não se limita ao seu sabor. O aroma, a visão, a audição e até mesmo o toque pode afetar substancialmente as preferências alimentares. No entanto, existem preferências de sabor inatas. O líquido amniótico contém glicose, frutose, aminoácidos e ácidos gordos, mas os recém-nascidos apresentam uma preferência marcada pelo sabor doce relativamente a outros sabores40. Através de uma perspetiva evolutiva, não é difícil perceber porque é que várias espécies, como a humana, têm uma preferência pelo sabor doce. Tendo em conta que no ambiente natural da maioria das espécies as fontes alimentares ricas em açúcar não se encontram facilmente disponíveis, preferi-las pode ter conferido alguma vantagem de sobrevivência no passado4. Os alimentos ricos em gordura e em açúcar são geralmente considerados mais palatáveis do que alimentos com baixos teores destes nutrientes, tanto por indivíduos obesos como por indivíduos normoponderais41,42. A gordura não é considerada um dos 5 sabores estabelecidos (doce, amargo, salgado, azedo e umami), no entanto, existem evidências crescentes de que esta possa constituir um sabor diferenciado. Na língua existem recetores de sabor para 2 dos 3 macronutrientes: o sabor doce corresponde a hidratos de carbono e umami a proteínas, pelo que parece lógico que exista alguma forma de resposta de paladar também para a gordura. Para além do sabor, a composição em gordura dos alimentos parece afetar também o seu aspeto, textura e possivelmente o seu aroma43. Keast et al.44 desenvolveram testes para avaliar a capacidade de deteção dos ácidos gordos num alimento rico em gordura quando todos os restantes estímulos, exceto o paladar, são removidos. Verificou-se que os indivíduos com menor sensibilidade aos ácidos gordos tendem a ingerir quantidades de gordura significativamente superiores na dieta e a ter um índice de massa corporal (IMC) mais elevado do que os indivíduos com elevada sensibilidade para os mesmos44. Após ser estabelecida esta relação, surgiu a dúvida sobre a sua causalidade. Uma capacidade diminuída para detetar o sabor da gordura promove um consumo excessivo deste nutriente, ou será uma dieta hiperlipídica que diminui a sensibilidade ao sabor gordo43? Provavelmente a resposta encontra-se num meio-termo, sendo influenciada tanto por fatores genéticos como ambientais43. Apesar de o sabor doce, por si só ser suficiente para ativar o sistema de recompensa cerebral, a sua combinação com a gordura é particularmente eficaz a induzir um comportamento motivado para a ingestão24,25. Por esta razão, os vários estudos que tentaram esclarecer a relação entre a palatibilidade e a obesidade deram uma ênfase especial à combinação destes 2 nutrientes. Há escassas evidências de que a perceção e a preferência pelo sabor doce são fatores causais da obesidade45,46. No entanto, verificou-se que existe uma relação entre o IMC e a perceção do sabor doce, quando os alimentos em questão apresentavam também um elevado teor de gordura45. Assim, a obesidade tem sido associada a um padrão alimentar caracterizado por um elevado teor tanto em gordura como em açúcar45,47 e a resposta hedónica à gordura, mais intensa em indivíduos obesos, é potenciada pelo sabor doce45. Admite-se, assim, que a palatibilidade seja um preditor importante da ingestão alimentar, na medida em que está intimamente relacionada com a escolha dos alimentos, podendo desta forma contribuir para um consumo energético excessivo e, consequentemente, para o aumento ponderal48–51.
Observações da prática clínica, que ganharam suporte científico em estudos realizados tanto em modelos animais como em humanos, sugerem que após cirurgia de bypass gástrico Roux-en-Y (BGRY) a motivação para a ingestão de alimentos de elevada palatibilidade ricos em açúcar e em gordura52–56 diminui, em comparação com o período pré-operatório e comparativamente a outras intervenções cirúrgicas bariátricas (tais como a bandoplastia gástrica ou a gastroplastia). Relativamente ao sabor doce, foi demonstrado em modelos animais que após o BGRY há uma diminuição do limiar da deteção da sacarose, e assim, um aumento da sensibilidade a concentrações de açúcar mais baixas55. Numa amostra de indivíduos obesos (avaliados 2 semanas antes e 8 semanas após a cirurgia), o BGRY resultou numa redução seletiva do valor de recompensa do sabor doce e gordo, mais acentuada nos indivíduos com uma maior redução do IMC após a cirurgia56. No entanto, o valor de recompensa dos alimentos não é representado apenas pela sua palatibilidade. Durante a fase de ingestão, uma grande variedade de fatores, como estados emocionais, também contribuem para a experiência de recompensa. Para além disto, durante o período pós-prandial, os nutrientes interagem com sensores do trato gastrointestinal, de outros órgãos periféricos e do próprio cérebro. Foi recentemente demonstrado que quando todos os mecanismos de processamento do sabor são eliminados por manipulação genética, os ratos continuam a aprender a preferir uma solução de sacarose à água, o que sugere a geração de recompensa alimentar através da utilização de glicose57.
Sistema de recompensa mesolímbicoO sistema de recompensa mesolímbico funciona como um centro de recompensa onde vários mensageiros químicos, incluindo a serotonina, encefalina, ácido γ-aminobutírico (GABA), dopamina (DA), a acetilcolina (ACH), entre outros, atuam em conjunto para proporcionar uma libertação de DA no nucleus accumbens (NAc). Este circuito está implicado no prazer desencadeado por recompensas naturais, como os alimentos, e constitui a base neural para os fenómenos relacionados com a adição10,58. Apesar de várias zonas cerebrais fazerem parte desde circuito, o NAc, a área tegmental ventral (ATV) e os neurónios dopaminérgicos parecem ser as suas zonas chave59–63. Outras áreas envolvidas em processos de recompensa incluem o estriato ventral (EV), a substância nigra (SN), o córtex orbitofrontal (COF), o córtex cingulado anterior (CCA) e o pallidum ventral (PV). Adicionalmente, a amígdala, o hipocampo e outras estruturas específicas do tronco cerebral constituem componentes importantes do circuito de recompensa cerebral64.
Segundo Berridgee et al.65 «recompensa alimentar» consiste num processo composto por 3 principais componentes: «liking» (componente hedónica), «wanting» (motivação de incentivo) e «learning» (aprendizagem que permite fazer associações e predições), fenómenos que podem ser aplicados tanto a recompensas naturais (p. ex. alimentos) como a reforços artificiais (p. ex. substâncias químicas de adição)51. O «liking» é uma reação hedónica que se manifesta no comportamento e em sinais neurais que são gerados sobretudo em sistemas cerebrais subcorticais. Reflete-se, por exemplo, na antecipação do prazer obtido através da ingestão de alimentos de elevada palatibilidade66. O «wanting» é a componente motivacional, geralmente despoletada por estímulos de recompensa (p. ex. visuais ou olfativos) e que induz a procura de alimentos, traduzindo-se em aumento do apetite, craving, e em outros comportamentos associados a uma motivação aumentada para obter alimentos66–68. Os sistemas mesolímbicos cerebrais, especialmente aqueles que envolvem a dopamina, são particularmente importantes para o «wanting». Apesar de o «liking» e o «wanting» estarem intimamente associados, o comportamento motivado pela recompensa pode ocorrer na ausência de prazer, como se verifica em indivíduos com adição a drogas químicas. Verificou-se que indivíduos com excesso de peso têm um aumento do «wanting» e da ingestão energética na ausência de fome, relativamente a indivíduos normoponderais, em situações de stress psicológico69. A ingestão induzida pelo stress está relacionada com um aumento do«wanting» pós-prandial e também com uma diminuição do «liking» após as refeições. As pontuações de «liking» pós-prandiais são consistentemente mais baixas em obesos do que em indivíduos normoponderais em situações de stress70. O facto de a ingestão pós-prandial em obesos estar relacionada com uma diminuição do «liking» e um aumento do «wanting» sugere uma dificuldade na obtenção de recompensa nestes indivíduos. Esta dificuldade leva a uma procura excessiva pela recompensa, o que pode resultar num aumento ponderal71.
O papel da dopamina na recompensa alimentarO papel exato da DA na recompensa alimentar tem sido alvo de grande debate. A hipótese mais consensual é que a DA promove a motivação para a obtenção de recompensa, isto é, o «wanting»65,68,72. Desta forma, a DA pode não desempenhar um papel central na resposta hedónica, mas sim na motivação para a obtenção da mesma. No entanto, a recompensa envolve uma panóplia de emoções que inclui a antecipação, a expectativa, o prazer e a memória, que são difíceis de isolar a nível experimental73. A ingestão de alimentos de elevada palatibilidade está associada à libertação de DA no núcleo estriado dorsal e o nível de DA libertada relaciona-se com o nível de prazer obtido através da ingestão74. Na obesidade parece existir uma menor capacidade de sinalização da DA. Os indivíduos obesos apresentam uma disponibilidade do recetor D2de DA (D2R DA) inferior à de indivíduos normoponderais75,76, bem como uma menor ativação da DA estriada, em resposta à ingestão de alimentos de elevada palatibilidade77. Relativamente à baixa disponibilidade do D2R DA em obesos, é importante salientar que os humanos que possuem o alelo TaqIA próximo do gene do D2R DA (que leva a uma menor disponibilidade do recetor) têm uma maior predisposição para a adição e maior probabilidade de ganharem peso no futuro77. Simultaneamente, os indivíduos obesos apresentam maior ativação dopaminérgica em resposta a imagens de alimentos, comparativamente a controlos normoponderais78–80. Estes dados sugerem que na obesidade há uma dificuldade na obtenção da recompensa através da ingestão (diminuição do «liking») e uma maior sensibilidade aos estímulos de alimentos (aumento do «wanting»). Existem também evidências de que a ingestão de alimentos de elevada palatibilidade leva a uma atenuação na sinalização da DA. Em ratos, a ingestão frequente de alimentos ricos em açúcar e em gordura leva a uma diminuição dos D2R DA pós-sinápticos, bem como a uma diminuição da sua sensibilidade e da sensibilidade à recompensa81,82. Estes resultados foram confirmados em humanos, num estudo de ressonância magnética funcional de imagem (RMFi): as mulheres que tinham aumentado de peso nos últimos 6 meses mostraram uma redução na resposta dopaminérgica, em resposta à ingestão de alimentos de elevada palatibilidade, relativamente a mulheres com um peso estável82. Em concordância com estes resultados, Wang et al.75 propuseram a teoria da «hipofunção dopaminérgica», que sugere que a hiperfagia resulta de uma adaptação do cérebro dos indivíduos obesos para compensar a diminuição da função dopaminérgica. Se uma atividade e disponibilidade dopaminérgica diminuída promove a ingestão alimentar, então o aumento da DA cerebral deveria produzir o efeito contrário, ou seja, inibir a ingestão. Este efeito anorexigénico da DA foi demonstrado numa pequena amostra de indivíduos obesos do sexo masculino83. Aos participantes deste estudo foi administrado ou um placebo ou uma dose moderada (0,5mg/kg) ou uma dose elevada (1,0mg/kg) de metilfenidato (MFD), um inibidor da recaptação da DA (que aumenta a disponibilidade de DA cerebral). Posteriormente foram dadas instruções aos participantes para ingerirem a quantidade de pizza que desejassem. Verificou-se que a ingestão energética diminuiu com o MFD: cerca de 23% com doses moderadas e 34% no caso das doses elevadas. Num estudo randomizado e duplamente cego, em que foram administradas doses moderadas de MFD (0,5mg/kg) a uma amostra de 14 indivíduos84, verificou-se também uma diminuição da ingestão energética e uma diminuição seletiva na ingestão de gordura relativamente ao placebo. No entanto, o efeito anorexigénico do MFD pode ser também atribuído ao aumento extracelular de DA em outras regiões cerebrais, para além das do circuito de recompensa mesolímbico83. Como a cirurgia bariátrica é a intervenção mais eficaz para o tratamento da obesidade e induz uma rápida redução da fome (através de mecanismos não totalmente esclarecidos) foi hipotetizado que a transmissão dopaminérgica seria favorecida após a cirurgia bariátrica e que estas alterações influenciariam o comportamento alimentar, contribuindo de forma positiva para os outcomes pós-cirúrgicos85. Até à presente data foram publicados 2 estudos que avaliaram a disponibilidade do D2R DA estriado, antes e após a cirurgia bariátrica. Ambos utilizaram uma amostra de 5 indivíduos e recorreram à tomografia por emissão de positrões86. No primeiro estudo, que incluiu apenas indivíduos submetidos a BGRY, verificou-se que a disponibilidade do D2R DA aumentou 6 semanas após a cirurgia. Este aumento foi proporcional à quantidade de peso perdido86. Num estudo posterior, em que foram incluídas 5 mulheres obesas, das quais 4 realizaram BGRY e uma sleeve gástrico, a disponibilidade do D2R DA diminuiu85. Para além de algumas diferenças metodológicas, os participantes da primeira cohort apresentavam scores de depressão pré-operatórios consideravelmente mais elevados do que os da segunda. Estes scores diminuíram bastante após a cirurgia, o que pode ter funcionado como um confundidor. Desta forma, continua por esclarecer se a baixa disponibilidade de D2R DA é a causa ou a consequência da ingestão excessiva de alimentos palatáveis e do consequente aumento de peso.
O papel dos opioides na recompensa alimentarTem sido demonstrado que os péptidos opioides e os seus recetores desempenham um papel na regulação da ingestão alimentar e que o sistema μ-opioide está particularmente envolvido na mediação da recompensa alimentar87–90. O sistema opioide é constituído por 3 recetores (μ, k e δ) que são ativados por péptidos opioides endógenos, em resposta a estímulos naturais de recompensa e de drogas de adição90. Os péptidos opioides e os seus recetores estão presentes na maioria das regiões do circuito neural que medeiam os processos sensoriais, metabólicos e integrativos do comportamento alimentar91, nomeadamente no NAc, ATV, pálido ventral e no hipotálamo90. Infusões de opioides no NAc resultam num aumento da ingestão de soluções com elevada concentração de sacarose, de soluções de etanol e da preferência por alimentos hiperlipídicos92,93. Por este motivo, considera-se que os opioides aumentam a perceção hedónica de uma recompensa, ou seja, o «liking»72. Foi sugerido que a ativação do sistema opioide codifica a resposta afetiva positiva induzida por alimentos de elevada palatibilidade94. Verificou-se que no NAc existe um hotspot hedónico, no qual a estimulação dos recetores μ aumenta o «liking» da recompensa alimentar, medido pela amplificação de reações oro-faciais à sacarose em ratos95,96. Em humanos, antagonistas reversíveis de opioides reduziram seletivamente a ingestão de alimentos classificados como mais palatáveis (através de uma escala hedónica)97. Quando era apresentada uma grande variedade de snacks, a ingestão dos alimentos classificados como palatáveis (mas que não possuíam um elevado teor de gordura e de açúcar) era praticamente inalterada. Por outro lado, a ingestão de alimentos palatáveis e ricos nestes 2 nutrientes era marcadamente reduzida97. Os antagonistas de opioides, particularmente a naloxona e a naltrexona, têm demonstrado reduzir a ingestão alimentar em indivíduos obesos e normoponderais, em ensaios clínicos de curta duração97–102. No entanto, estes fármacos apresentam efeitos secundários (como por exemplo, náuseas e alterações da função hepática) que impossibilitam a sua utilização generalizada para o tratamento na obesidade103. Foi sugerido que um novo agonista inverso dos recetores μ-opioide, o GSK1521498, possa constituir uma melhor opção em termos de riscos/benefícios. Este fármaco apresenta segurança e tolerância favoráveis e a sua administração reduziu as pontuações hedónicas de determinados alimentos com elevado teor de açúcar e de gordura. Reduziu também ingestão de snacks e diminuiu a ativação da amígdala induzida por estímulos de alimentos de elevada palatibilidade (avaliada por fMRI)104,105. Adicionalmente, estudos genéticos recentes indicam que variações no gene que codifica o recetor humano μ-opioide (OPRM1) estão associadas com a variabilidade na preferência por alimentos ricos em gordura106.
Influências metabólicas no circuito de recompensa cerebralInicialmente pensava-se que os sinais clássicos de feedback nutricional como a leptina, as hormonas gastrointestinais e os próprios nutrientes em circulação atuavam apenas em algumas áreas específicas do hipotálamo e do tronco cerebral. Estudos recentes sugerem que alguns destes sinais metabólicos podem exercer uma influência bastante mais ampla sobre as funções cerebrais35.
LeptinaA leptina, uma hormona produzida e libertada pelo tecido adiposo branco, funciona como um mensageiro que sinaliza a saciedade nohipotálamo107,108, diminuindo assim a ingestão alimentar109. À parte da sua expressão em regiões hipotalâmicas que regulam o balanço energético, os recetores da leptina são expressos no sistema mesolímbico, nomeadamente na ATV110. A primeira evidência da modulação das vias cerebrais de recompensa pela leptina surgiu com estudos de estimulação intracraniana em ratos111, em que se verificou a presença de um recetor da leptina metabolicamente ativo, nos neurónios dopaminérgicos da ATV92. Adicionalmente foi demonstrado que a administração de leptina na ATV suprime a atividade elétrica dos neurónios dopaminérgicos nesta área, a libertação de DA do NAc (basal e induzida pela alimentação), bem como a diminuição da ingestão alimentar112. Como a restrição energética resulta numa rápida e acentuada redução dos níveis circulantes de leptina113, foi sugerido que níveis baixos desta hormona podem estar associados a uma maior sensibilidade à recompensa, enquanto níveis elevados podem diminuir esta sensibilidade. De facto, um estudo de RMFi114, com 2 indivíduos com síndrome da deficiência da leptina (SDL), uma condição rara que causa hiperfagia e obesidade severa, demonstrou que 7 dias de administração periférica de leptina levaram a uma diminuição da ingestão calórica total e à alteração da resposta de recompensa a estímulos visuais de alimentos. Apesar de o sistema dopaminérgico mesolímbico ser o alvo mais provável da leptina ao nível da recompensa, foi encontrada uma ligação entre a leptina e os endocanabinoides, como moduladores recíprocos dos circuitos hipotalâmicos envolvidos na componente motivacional da ingestão alimentar. Como o sistema endocanabinoide modula a via dopaminérgica mesolímbica, foi sugerido que a leptina pode modular os níveis de endocanabinoides de forma a regular os neurónios dopaminérgicos na ATV ou no NAc115.
GrelinaA grelina é um peptídeo produzido principalmente no fundo gástrico e, até à data, é a única hormona orexigénica conhecida116: estimula a ingestão alimentar e aumenta a adipogénese, promovendo assim um balanço energético positivo113,117–120. A sua administração, tanto periférica como central, promove o aumento acentuado da ingestão alimentar119,120. A grelina está envolvida na regulação da homeostasia energética, atuando a nível do núcleo arqueado (Arc), na base do hipotálamo121–123. No entanto, o recetor da grelina GHS-R1A também é expresso em áreas envolvidas na recompensa como a ATV e a área tegmental laterodorsal (ATLd)51. Recentemente surgiram as primeiras evidências de que a grelina atua num circuito de recompensa denominado «ligação de recompensa colinérgica-dopaminérgica» que inclui uma projeção colinérgica aferente da ATLd para as células dopaminérgicas da ATV51. A administração central, tanto intra-ATV ou intra-ATLd de grelina, aumentou a libertação de DA. De acordo com estes resultados, verificou-se que o GHS-R1A é colocalizado em células dopaminérgicas na ATV e em células colinérgicas na ATLd51. Na ATV, a administração de grelina aumentou a ingestão de alimentos de elevada palatibilidade51, enquanto a administração periférica de um antagonista do GHS-R1A a diminuiu51,124. Estes resultados descobertos em animais parecem ser relevantes em humanos. A administração sistémica de grelina a indivíduos saudáveis aumentou a resposta neural a imagens visuais de alimentos em regiões cerebrais que estão implicadas na recompensa, como o COF e o estriato125.
Peptídeo tirosina tirosinaO peptídeo tirosina tirosina (PYY) é uma hormona intestinal com ação anorexigénica126. As suas concentrações diminuem progressivamente no estado de jejum e aumentam após uma refeição, em proporção às calorias ingeridas, sinalizando a ingestão nutricional nos circuitos de regulação do apetite e, consequentemente, diminuindo a ingestão alimentar127.
Infusões de PYY3–36, a forma enzimática do PYY mais ativa, em doses semelhantes às libertadas no período pós-prandial, diminuem a ingestão alimentar a longo termo em humanos normoponderais128. Os indivíduos obesos, apesar de não apresentarem resistência aos efeitos anorexigénicos do PYY, tal como acontece com a leptina, apresentam níveis plasmáticos de PYY3–36 diminuídos129. Apesar desta hormona estar amplamente associada à regulação homeostática da ingestão, um estudo em humanos, no qual foram combinadas infusões de PYY3–36 com RMFi, sugeriu um papel do PYY ao nível da recompensa alimentar. As infusões de PYY3–36 (em concentrações semelhantes às observadas no período pós-prandial) ativaram tanto regiões cerebrais relevantes para o controlo homeostático (hipotálamo) como áreas associadas à recompensa alimentar (ATV, COF). Verificou-se também uma correlação entre a magnitude de ativação do COF e a redução da ingestão alimentar, sugerindo uma contribuição desta área para o efeito do PYY3–36 na ingestão127.
Peptídeo-1 semelhante ao glucagonO peptídeo-1 semelhante ao glucagon (GLP-1) é uma hormona segregada no trato gastrointestinal conhecida tanto pelos seus efeitos anorexigénicos como pelo seu efeito incretina (que favorece a ação da insulina)130,131. O análogo do GLP-1, a exendina 4 (EX4), um agonista seletivo do recetor do GLP-1 (GLP-1R)132, está a emergir no tratamento da diabetes e também a ser considerado como um potencial alvo terapêutico para o tratamento da obesidade devido aos seus efeitos positivos na redução da ingestão alimentar e do peso corporal. Este interesse do GLP-1 na obesidade foi potenciado pelos dados que demonstram que há um aumento do GLP-1 após a cirurgia de bypass gástrico, tanto em humanos133 como em animais134. Como até à data, a investigação tem-se focado no impacto do GLP-1 nos circuitos cerebrais homeostáticos, pouco se sabe sobre os mecanismos centrais envolvidos nos efeitos anorexigénicos deste peptídeo. No entanto, existem algumas evidências que sugerem um papel do GLP-1 em processos de recompensa. O GLP-1R é expresso tanto na ATV como no NAc135. Verificou-se também que existe uma projeção robusta dos neurónios GLP-1 do núcleo do trato solitário (NTS) para o Nac, tendo sido sugerido que esta projeção pode fazer a ligação entre o processamento de sinais de saciedade com o processamento da recompensa alimentar136. Recentemente foi demonstrado em modelos animais que o EX4 intervém no controlo hedónico do comportamento alimentar135. A administração periférica do EX4 suprimiu a recompensa alimentar e o comportamento alimentar motivado em ratos135. Mais especificamente, o EX4 suprimiu a preferência por um local associado a um alimento de elevado valor hedónico, neste caso o chocolate, e diminuiu também a intensidade com que os animais se esforçavam para obter uma recompensa alimentar (sacarose). Estes efeitos são provavelmente exercidos a nível central pois verificou-se que a administração direta do EX4 ao nível cerebral induzia uma supressão dose-dependente do comportamento motivado pela sacarose e que a microinjeção do EX4, especificamente na ATV e o NAc, era suficiente para reduzir o comportamento alimentar motivado135. Estes dados constituem mais uma evidência da interação entre o metabolismo energético e os sistemas de recompensa.
ConclusõesA relativa ineficácia das intervenções nutricionais e farmacológicas utilizadas atualmente para a prevenção e tratamento da obesidade, demonstra a importância e a urgência em compreender os sistemas complexos que permitem a sobreposição do controlo hedónico da ingestão à homeostasia energética. Tendo em conta as íntimas interações neurais entre os mecanismos de regulação homeostática e não homeostática do apetite, descritas nesta revisão, parece provável que estes mecanismos sejam corregulados. Os sinais metabólicos conseguem modular os sistemas corticolímbicos e estes últimos podem interferir nos mecanismos metabólicos que controlam o balanço energético. Desta forma, ambos parecem ter um propósito comum, ou seja, manter um ambiente interno ótimo em harmonia com o ambiente externo. Outro aspeto relevante tem a ver com os processos mal adaptativos causados pelo excesso ponderal e pela ingestão de alimentos de elevada palatibilidade no processamento da recompensa. Disfunções no sistema de recompensa podem levar a que determinados alimentos desencadeiem um «liking» excessivo. Uma ativação excessiva dos substratos responsáveis pelo «liking» irá acentuar o impacto hedónico dos alimentos, tornando determinados indivíduos mais suscetíveis à hiperingestão. Outra possibilidade é que alterações no sistema de recompensa cerebral não sejam a causa inicial de alterações na ingestão alimentar, mas que estas ocorram como resposta à exposição/ingestão crónica a alimentos de elevada palatibilidade e ao excesso ponderal. Ambos os casos constituem uma oportunidade de desenvolver intervenções que visem corrigir o comportamento alimentar, pelo menos em parte, através da modulação dos mecanismos de recompensa. Investigação adicional que vise esclarecer a interação entre os mecanismos hedónicos e homeostáticos na regulação do apetite parece ser fundamental. Aprofundar conhecimentos sobre a regulação hedónica da ingestão alimentar, com recurso às tecnologias de neuroimagem modernas, trará certamente grandes avanços na compreensão da regulação da ingestão e da patofisiologia da obesidade. Igualmente importante é compreender a mediação neural das alterações da ingestão alimentar que se verificam após a cirurgia de BGRY e usar estes conhecimentos para desenvolver novas intervenções, cirúrgicas ou não cirúrgicas, para o tratamento da obesidade. Apesar da relevância das evidências apresentadas, é importante ter sempre presente os vários fatores genéticos, fisiológicos, psicológicos e ambientais que influenciam e contribuem para a grande complexidade do comportamento alimentar humano.
Conflito de interessesOs autores declaram não haver conflito de interesses.