Nos últimos anos a saliva tornou-se num vestígio biológico muito importante para os investigadores das várias áreas das ciências forenses. Este fluido corporal ganhou popularidade na investigação médico-legal e na criminalística devido à sua fácil recolha, ao seu fácil e seguro manuseio e à sua estreita relação com o plasma. A análise da saliva para testes serológicos e para conteúdos celulares provou que esta é de grande utilidade na deteção de drogas de abuso e de álcool, na identificação hormonal, em casos de envenenamento e de marcas de mordeduras. Atualmente é imperativo que os laboratórios forenses automatizem os procedimentos específicos de rotina para a saliva como os que possuem para o sangue e para a urina, para que a saliva possa ser considerada um vestígio de equivalente importância na investigação criminal. Esta atualização sistemática destina-se a enfatizar os muitos usos da saliva na prática das ciências forenses.
In recent years saliva has attracted much interest amongst researchers especially in the field of Forensic sciences. This body fluid is gaining popularity due to its ease of collection, safety in handling, and its close relationship with plasma. Analysis of saliva for serological testing and cellular content has proved to be of wide use in crime detection, drug and alcohol abuse, hormone identification, cases of poisoning and bites. In the present moment there is a need for Forensic laboratories to automate the settings specific for saliva as routinely done for blood or urine in order to consider saliva as the primary investigating tool in absence of other body fluids. This update is aimed at highlighting the many uses of saliva in the practice of Forensic Sciences.
A criminalística, ciência que tem por objetivo o reconhecimento de objetos extrínsecos relativos ao crime e à identidade do criminoso, é tradicionalmente descrita como a ciência da individualização. A individualização significa a possibilidade de se definir uma única fonte como origem de um vestígio de uma cena de crime, dentro de um leque de várias fontes possíveis. A ciência forense distingue a individualização da identificação, uma vez que esta última apenas permite estreitar a fonte potencial de origem a um grupo ou classe de objetos1.
Na última década tem aumentado o interesse forense pela saliva e o seu uso como vestígio forense de diagnóstico em alternativa ao sangue e à urina2. A saliva total é a mistura da saliva segregada pelas glândulas salivares, do fluido gengival crevicular e das células epiteliais orais exfoliadas e dos micro-organismos. As vantagens adicionais de ser um método de recolha não invasivo e fácil, que pode ser recolhido por investigadores criminais com muito pouco treino, e de ser um método que evita a intrusão por parte dos profissionais da investigação criminal na supervisão obrigatória da recolha de vestígios, em funções privadas, como por exemplo, na recolha da urina, fazem da saliva o fluido mais importante na análise forense3. Em muitos casos de investigação forense de cenas de crime, onde a cavidade oral esteve envolvida, a saliva é detetada em conjunto com as marcas de mordedura e as impressões labiais. A análise serológica e celular da saliva assim recolhida é de extrema importância na identificação do possível suspeito4. Nos últimos anos a saliva ganhou máxima relevância na deteção de drogas de abuso e de álcool nos condutores5. Por outro lado, a saliva é também um vestígio de análise nos casos de envenenamentos com metais pesados, uma vez que informa sobre o desequilíbrio iónico e a excreção de determinados venenos por esta via.
Verifica-se que existem várias funções para a saliva na área das ciências forenses e o objetivo deste artigo é fornecer uma sistematização atual e completa das suas principais utilizações forenses e criminalística.
O papel da saliva na identificação médico-legal humanaA saliva é normalmente depositada com as marcas de mordedura em muitos casos de homicídios, assaltos, abusos sexuais e outros casos criminais6. Quando a marca de mordedura não permite uma análise física médico-legal para uma possível identificação positiva, é a saliva, depositada no ato de morder, o principal alvo forense na análise biológica do vestígio marca de mordedura. A dificuldade da recolha da saliva depositada na pele, nas roupas, no papel e noutros objetos inanimados prende-se principalmente com o facto de ser completamente invisível, assim como pelos substratos onde se encontra depositada não poderem ser submetidos diretamente aos procedimentos de extração7.
Métodos de deteção de manchas secas de salivaExistem fundamentalmente 3 principais métodos forenses:
- 1.
Métodos químicos: muitos produtos químicos e enzimáticos já foram alvo de experimentação para detetar uma mancha seca de saliva. A deteção de saliva em envelopes e selos tem sido realizada com o teste químico de trifenil tetrazólio, o qual reage reduzindo os açúcares e formando um precipitado insolúvel vermelho. A maioria das enzimas usadas nesta reação são as fosfatases alcalinas e as amílases. Também têm sido usados para a deteção da saliva os sais de nitrato e o tiocianato8. Todos estes métodos químicos têm limitações e a respetiva sensibilidade é variável dependendo do tempo da mancha seca de saliva e da quantidade de saliva depositada.
- 2.
Luz ultravioleta e laser, tubo em arco de quartzo e laser de argónio9,10.
- 3.
Espetroscopia de fluorescência: o aminoácido aromático, triptofano, da enzima alfa amílase é caracterizado por um espetro de emissão único, o que possibilita uma boa sensibilidade na deteção de manchas secas de saliva na pele8.
Vestígios de resíduos de saliva podem ser recolhidos para o teste de identificação. Os métodos clássicos para a recolha da saliva na pele são a utilização de uma zaragatoa húmida ou de um papel de filtro húmido colocado de forma suave, sem exercer nenhuma pressão, na zona anatómica da pele com a mancha seca de saliva6. O método que usa uma zaragatoa húmida seguida de uma zaragatoa seca, conhecida como a técnica do double swab, foi estudado pela primeira vez por Sweet et al. em 199711, fornece melhores resultados ao nível da recuperação da saliva da superfície da pele. O ácido desoxirribonucleico (ADN) da saliva e da pele com depósitos de saliva é extraído através do método do fenol-clorofórmio.
Perfil de ADN («figerprinting»)O perfil de ADN, exceto para os gémeos monozigóticos, é único para a individualização. Fatores como o calor, a humidade, a luz solar, os contaminantes de superfície, entre outros, podem aumentar a degradação do ADN. Os polimorfismos da molécula de ADN são herdados e não mudam ao longo da vida de um indivíduo. As amostras de ADN são amplificadas pela técnica de PCR para a tipagem de regiões short tandem repeat (STR)12. A separação dos pequenos fragmentos STR polimórficos faz com que seja possível a sua utilização em amostras biológicas com um alto grau de degradação. A análise conjunta de regiões STR proporciona resultados altamente satisfatórios. Para além do ADN genómico, as células derivadas da saliva contêm ADN mitocondrial que poderá ajudar na identificação médico-legal13,14. A maior vantagem do ADN mitocondrial é a existência de um elevado número de cópias em cada célula, proporcionado pelo elevado número de mitocôndrias presentes na maioria das células13. O ADN cromossómico provém do pai e da mãe, enquanto o ADN mitocondrial está estritamente relacionado com a mãe. Assim, por exemplo, quando estamos perante um caso forense com a necessidade de realizar uma identificação de uma ossada, se os familiares mais próximos não existirem, poderemos utilizar os familiares da linhagem materna mais distantes como uma fonte de referência para suportar a identificação. Quando o ADN nuclear falha ou não é possível analisar o ADN genómico por este estar muito degradado, existe a possibilidade de utilizar o ADN mitocondrial12.
Análise forense de drogas de abuso na salivaA amostra biológica de rotina mais frequentemente utilizada na determinação de drogas de abuso é a urina. A amostra é aceitável e obtida de forma não invasiva. Contudo, apesar de a urina ser aceite atualmente, existem várias discussões em relação a valores éticos em torno da forma de recolha desta amostra biológica, quanto à invasão da privacidade, principalmente quando a recolha tem de ser observada para prevenir a adulteração ou substituição da amostra, preservando a cadeia de custódia5. Assim, foram implementadas novas técnicas analíticas que proporcionam a deteção de um grande número de drogas com uma pequena quantidade de saliva. A maior vantagem da amostra biológica oral em relação à urina é o seu procedimento de recolha ser fácil, rápido e não intrusivo5.
Os grupos de drogas que podem ser identificadas na saliva são as anfetaminas, os barbitúricos, as benzodiazepinas, a fenilciclidina, a cocaína e os opioides. A saliva permite também a deteção do consumo muito recente de marijuana através de métodos de radioimunoensaio (RIA). O maior componente psicoativo da marijuana pode ser detetado na saliva até 4 horas depois de ter sido fumada15.
A maior parte das drogas estão presentes na saliva por um processo simples de difusão passiva, que é caracterizado pela transferência das moléculas da droga através de um gradiente de concentração sem gasto de energia. Geralmente as concentrações das drogas na saliva refletem a fração livre da droga no sangue.
Alguns autores descobriram quantidades mensuráveis de droga na saliva extraídas pelo método de extração líquido-líquido através do metanol e analisadas e identificadas através da técnica de imunoensaios enzimáticos múltiplos (EMIT) e da cromatografia gasosa/espetrofotometria de massa5,15. Esta metodologia específica e sensitiva com aplicação forense é de utilidade complementar aos testes serológicos nos casos de marcas de mordedura para a possível identificação do agressor. Por outro lado, outros investigadores detetaram drogas como o fenobarbital, a anfetamina e a morfina através de técnicas de RIA na saliva5,15.
Na última década, uma empresa alemã, a Securetec, introduziu um novo teste de deteção de drogas com aplicação forense, o Drugwipe. Consiste num instrumento de imunodiagnóstico não específico de deteção de drogas em várias superfícies15. A utilização do teste Drugwipe para a saliva e para o suor encontra-se ainda numa fase experimental em vários países. Este teste tem o formato e o tamanho de uma caneta com uma tira baseada numa reação imunoquímica que é utilizada para a deteção de partículas de drogas de abuso em vários tipos de matrizes. Existem testes individuais para o grupo dos opiáceos, dos canabinoides, da cocaína e das anfetaminas (metanfetaminas e ecstasy)16.
A saliva é comumente utilizada como amostra biológica para a medição de hormonas esteroides, como o cortisol, a cortisona e a testosterona, pois é aceite que os níveis salivares destes esteroides refletem a fração circulante livre não ligada.
O papel da saliva no diagnóstico diferencial dos parâmetros de identificação reconstrutiva de espécie e de sexo em casos de marcas de mordeduraEm 1984, foi introduzida por Fletcher et al.6 a reação imunoenzimática (ELISA) através de um anticorpo monoclonal baseado na presença da IgA salivar para a identificação de espécies em manchas com cerca de 16 meses. Esta técnica é de primordial importância em casos de marcas de mordedura quando existem dúvidas se estas são humanas ou não humanas, para a continuação da investigação criminal na identificação do vestígio biológico e físico6.
A possibilidade de obter células epiteliais bucais exfoliadas na saliva numa marca de mordedura aumenta a possibilidade de determinar o sexo do agressor. A recolha pode ser realizada até algumas semanas após a sua deposição, dependendo dos materiais que contêm as impressões das marcas de mordedura e dos fatores ambientais. Baseado no sucesso da sua utilização com o sangue, são usados os mesmos parâmetros: 1) a presença e a deteção da cromatina sexual (corpos de Barr nas mulheres e os corpos F nos homens) e 2) a determinação do nível da hormona sexual baseado nas quantidades detetáveis e nas percentagens da testosterona e do 17 β-estradiol pelo método de RIA.
ConclusõesA importância médico-legal e criminalística da saliva como vestígio biológico para a investigação criminal tem aumentado nestes últimos anos nos laboratórios forenses. A estes laboratórios é requerida a existência de procedimentos automáticos para a saliva como os que existem de forma rotineira para o sangue e para a urina. A facilidade do método não invasivo de recolha e de segurança no manuseio da saliva fez com que esta amostra biológica tenha ganho muita popularidade na área das ciências forenses para as drogas de abuso. A determinação do sexo e a individualização positiva de um agressor numa cena de crime com a ajuda do exame das células epiteliais esfoliadas na saliva tem sido de grande vantagem na resolução de investigações forenses. No futuro, outros campos de utilização prática da saliva, dentro das ciências forenses, irão emergir de forma mais padronizada e rotineira nos laboratórios forenses.
Conflito de interessesOs autores declaram não haver conflito de interesses.
Fundação Nacional para a Ciência e Tecnologia, Portugal: PEst-OE/MAT/UI0006/2014.