A análise de células orais esfoliadas permite a avaliação de biomarcadores para dano genómico, potencial proliferativo e morte celular, adquirindo particular relevância em indivíduos com inflamação crónica do epitélio oral. O objetivo deste trabalho foi elaborar um estudo piloto para caracterização dos tipos celulares da mucosa oral em indivíduos com diferentes graus de saúde periodontal. Para o efeito, procedeu-se à análise de mil células orais esfoliadas em dez participantes (não fumadores, entre os 50-65 anos e sem antecedentes pessoais de cancro) divididos de acordo com o seu estado periodontal: 5 controlos (periodonto saudável/ periodontite leve) e 5 casos (periodontite moderada/ grave). Nesta análise observou-se um maior número de células basais, cariolíticas e células com micronúcleos nos indivíduos com periodontite moderada/grave. Estes resultados revestem-se de grande interesse, uma vez que não existem estudos publicados que relacionem a frequência destes tipos celulares com o estado de saúde periodontal dos indivíduos.
The characterization of oral exfoliated cells evaluates genomic damage, proliferative potential and/or cell death and is of great interest, namely in individuals with oral mucosa chronic inflammation. Our aim was to set up a pilot study to characterize the cell types of the buccal mucosa according to periodontal status. For this purpose, we analyzed different cell types obtained per one thousand exfoliated buccal cells in 10 selected participants (non-smokers, aged between 50-65 years, without history of cancer) divided according to their periodontal status: 5 controls (with healthy periodontium/mild periodontitis) and 5 cases (with moderate/severe periodontitis). Our data showed an increased number of micronuclei, basal and karyolytic cells in the group with moderate/severe periodontitis. These results are very interesting since, to our knowledge, there are no studies relating the frequency of different cell types in the buccal mucosa with periodontal health status.
Os biomarcadores são indicadores mensuráveis de um estado biológico específico, normalmente associado a risco, presença, gravidade ou prognóstico de doença. A análise de células orais esfoliadas (COE) permite avaliar biomarcadores para dano genómico, potencial proliferativo e morte celular1,2. Estas células podem apresentar alterações morfológicas a nível nuclear, tais como cromatina condensada, núcleo fragmentado (células cariorréticas), núcleo pequeno (picnótico) ou perder completamente o seu material nuclear (células cariolíticas), o que pode indicar diferentes estágios de apoptose, caracterizada pela fragmentação do ADN e desagregação do invólucro nuclear2. Esta análise permite igualmente avaliar defeitos citogenéticos, pela observação de células binucleadas, o potencial proliferativo, através da frequência de células basais e biomarcadores para o dano no ADN através da presença adicional de uma ou mais estruturas nucleares mais pequenas (os micronúcleos) ou de um núcleo com uma aparente constrição afiada numa das suas terminações (os nuclear buds)2,3. Uma vez que a doença periodontal é uma das condições inflamatórias mais frequentes na população mundial4, importa avaliar se esta condição interfere com os níveis basais dos diferentes tipos celulares da mucosa oral.
O presente estudo teve como objetivo fazer uma caracterização preliminar dos tipos de células descamadas da mucosa oral em indivíduos com diferentes graus de saúde periodontal, entre os 50-65 anos.
Materiais e MétodosParticipantesEste estudo foi aprovado pela Comissão de Ética da FMDUP. Todos os participantes foram recrutados na Clínica da FMDUP e assinaram um consentimento informado para participação voluntária no estudo.
Para a seleção da amostra, foi aplicado um questionário que permitiu recrutar 10 indivíduos de ambos os sexos, com idades compreendidas entre os 50 e os 65 anos, não fumadores, sem antecedentes pessoais de patologia oncológica ou quimio/radioterapia e que, no momento do estudo, não estavam a fazer qualquer medicação que pudesse causar dano no ADN.
Diagnóstico periodontalOs participantes foram submetidos a um exame periodontal, que incluía a avaliação da profundidade de sondagem (PS), das recessões, da perda de aderência (PA) e da hemorragia pós-sondagem (HPS). Usaram-se os critérios de diagnóstico da European Global Oral Health Indicators Development (EGOHID), os quais preconizam que um periodonto saudável corresponde a uma PA de 0mm, uma periodontite leve corresponde a uma PA de 1 ou 2mm, uma periodontite moderada corresponde a uma PA de 3 ou 4mm e uma periodontite grave corresponde a uma PA igual ou superior a 5mm.
De acordo com o diagnóstico periodontal, foram considerados 2 grupos: grupo de casos, constituído por 5 participantes com diagnóstico de periodontite moderada ou grave e grupo de controlos, constituído por 5 participantes com diagnóstico de periodonto saudável ou periodontite leve.
Recolha e preparação das células para observação de micronúcleos em microscopia óticaA caracterização dos tipos celulares foi executada, de acordo com o protocolo de Thomas et al.2. As células foram recolhidas em fixador Saccomano e coradas com reagente de Schiff (Sigma-Aldrich, St. Louis, EE. UU.) (coloração nuclear) e Light Green (0,2% w/v Gurr's) (contraste citoplasmático). As células foram posteriormente colocadas numa lâmina de vidro com meio de montagem (Eukitt® O. Kindler GmbH, Sigma-Aldrich, St. Louis, EE. UU.) e observadas em microscopia ótica (Konus Campus-Model BM-100FL, Verona, Italia) com uma ampliação de 400x. Procedeu-se à contagem de um mínimo de 1 000 células por participante em ensaio cego.
Análise EstatísticaOs dados obtidos no estudo foram codificados e transferidos para uma base de dados nos programas Microsoft Office® Excel 2010 e SPSS® V.18. A análise descritiva dos dados e a estatística analítica (p≤0,05) foram desenvolvidas com recurso a estes programas. Para avaliação da precisão do método de medida do diagnóstico periodontal utilizou-se o teste de Wilcoxon com um nível de significância de 5%.
ResultadosNão foram encontradas diferenças estatisticamente significativas (p>0,4) para o diagnóstico periodontal no âmbito intraobservador.
Procedeu-se à análise das células orais esfoliadas (figura 1) e posterior caracterização dos tipos celulares obtidos nos grupos de casos e controlos (tabela 1).
Caracterização dos tipos celulares obtidos (por mil células)
Ba | Di | MN | NB | Bi | Co | Ca | Pi | Car | |
Grupo de controlos (participantes com periodonto saudável ou periodontite leve, n=5) | |||||||||
Mínimo | 1,00 | 656,00 | 1,00 | 0,00 | 2,00 | 1,00 | 3,00 | 1,00 | 130,00 |
Percentil 25% | 1,00 | 691,00 | 1,00 | 0,00 | 4,00 | 1,00 | 6,00 | 3,00 | 176,00 |
Mediana | 1,00 | 729,00 | 1,00 | 1,00 | 5,00 | 3,00 | 25,00 | 3,00 | 221,00 |
Percentil 75% | 3,00 | 769,00 | 1,00 | 1,00 | 6,00 | 6,00 | 36,00 | 3,00 | 268,00 |
Máximo | 4,00 | 806,00 | 2,00 | 2,00 | 13,00 | 42,00 | 49,00 | 22,00 | 300,00 |
Média | 2,00 | 730,20 | 1,20 | 0,80 | 6,00 | 10,60 | 23,80 | 6,40 | 219,00 |
Desvio Padrão | 1,41 | 59,78 | 0,45 | 0,84 | 4,18 | 17,67 | 19,59 | 8,76 | 68,44 |
Erro Padrão | 0,63 | 26,73 | 0,20 | 0,37 | 1,87 | 7,90 | 8,76 | 3,92 | 30,61 |
IC 95% da média (valor inferior) | 0,76 | 677,80 | 0,81 | 0,07 | 2,33 | -4,89 | 6,63 | -1,28 | 159,01 |
IC 95% da média (valor superior) | 3,24 | 782,60 | 1,59 | 1,53 | 9,67 | 26,09 | 40,97 | 14,08 | 278,99 |
Grupo de casos (participantes com periodontite moderada ou grave, n=5) | |||||||||
Mínimo | 2,00 | 617,00 | 1,00 | 0,00 | 2,00 | 3,00 | 11,00 | 2,00 | 38,00 |
Percentil 25% | 3,00 | 729,00 | 2,00 | 0,00 | 4,00 | 4,00 | 16,00 | 7,00 | 42,00 |
Mediana | 4,00 | 835,00 | 3,00 | 1,00 | 8,00 | 5,00 | 21,00 | 8,00 | 63,00 |
Percentil 75% | 11,00 | 863,00 | 4,00 | 1,00 | 25,00 | 6,00 | 46,00 | 19,00 | 229,00 |
Máximo | 13,00 | 900,00 | 6,00 | 1,00 | 31,00 | 14,00 | 51,00 | 25,00 | 324,00 |
Média | 6,60 | 788,80 | 3,20 | 0,60 | 14,00 | 6,40 | 29,00 | 12,20 | 139,20 |
Desvio Padrão | 5,03 | 115,21 | 1,92 | 0,55 | 13,13 | 4,39 | 18,23 | 9,47 | 130,11 |
Erro Padrão | 2,25 | 51,53 | 0,86 | 0,24 | 5,87 | 1,96 | 8,15 | 4,24 | 58,19 |
IC da média 95% (valor inferior) | 2,19 | 687,81 | 1,51 | 0,12 | 2,49 | 2,55 | 13,02 | 3,90 | 25,16 |
IC da média 95% (valor superior) | 11,01 | 889,79 | 4,89 | 1,08 | 25,51 | 10,25 | 44,98 | 20,50 | 253,24 |
Ba: Basal; Bi: Binucleada; Ca: Cariorrética; Car: Cariolítica; Co: Condensada; Di: Diferenciada; MN: Micronúcleo; NB: Nuclear Bud; Pi: Picnótica.
Os resultados preliminares do intervalo de confiança de 95% permitem verificar uma diferença entre o grupo de casos e de controlos no que diz respeito às células basais, com micronúcleos e cariolíticas. Já em relação aos nuclear buds, os resultados encontrados foram muito semelhantes em ambos os grupos avaliados. Para os restantes tipos celulares, os dados preliminares não são conclusivos. Sendo assim, a média de células basais por mil células orais esfoliadas foi maior no grupo de casos (6,60) em comparação com o grupo de controlos (2,00).
Relativamente aos tipos celulares indicativos de dano no ADN, os resultados encontrados permitiram observar uma média de micronúcleos superior no grupo de casos (3,20/mil COE), relativamente ao de controlos (1,20/mil COE).
Os tipos celulares indicativos de morte celular, as células cariolíticas, apresentam uma média superior nos controlos (219,00/mil COE), quando comparados com os casos (139,20/mil COE).
DiscussãoA periodontite está, frequentemente, associada a uma produção aumentada de espécies reativas de oxigénio e a um estado de inflamação crónica5–7 que pode promover todas as fases da tumorogénese, incluindo dano no ADN, proliferação descontrolada e inibição da apoptose8.
A análise das COE permite o estudo da taxa de proliferação, bem como da estabilidade genómica e da propensão para a morte celular, eventos dos quais depende a regeneração e o envelhecimento celulares. No entanto, existem ainda lacunas, nomeadamente quanto à relação entre os tipos celulares observados nas amostras e estados de doença1,2,9,10.
A caracterização das COE neste estudo (Tabela 1) permitiu observar que os resultados obtidos no grupo de controlo (participantes com periodonto saudável ou periodontite leve) vão ao encontro dos publicados por Thomas et al., com exceção da contagem de células basais que é menor2. Uma vez que os micronúcleos representam danos genómicos que podem estar associados a fatores relacionados com a exposição a agentes genotóxicos, ao estilo de vida e a fatores genéticos1, seria interessante fazer um estudo em grande escala das células da mucosa oral de pacientes saudáveis pertencentes à população portuguesa.
Relativamente aos pacientes com doença periodontal, os resultados observados parecem indicar a presença de um maior número de células com micronúcleos, representativo de genotoxicidade. Por outro lado, observou-se um maior número de células basais, que pode indicar um maior potencial proliferativo na mucosa oral e uma diminuição de células cariolíticas, representativas de um estádio tardio de morte celular programada. Estes resultados, a serem confirmados, revestem-se de grande interesse, uma vez que não existem estudos publicados que relacionem a frequência dos diferentes tipos celulares e o estado de saúde periodontal dos indivíduos.
A caracterização dos tipos celulares da mucosa oral, ainda que preliminar, parece indicar um aumento do potencial proliferativo e de genotoxicidade, aliado a uma menor taxa de apoptose no epitélio oral dos indivíduos com periodontite moderada ou grave. É, no entanto, essencial completar esta caracterização e estudar quais os mecanismos que estão na base destes acontecimentos celulares.
Responsabilidades éticasProteção de pessoas e animais. Os autores declaram que os procedimentos seguidos estavam de acordo com os regulamentos estabelecidos pelos responsáveis da Comissão de Investigação Clínica e Ética e de acordo com os da Associação Médica Mundial e da Declaração de Helsinki.
Confidencialidade dos dados. Os autores declaram ter seguido os protocolos de seu centro de trabalho acerca da publicação dos dados dos participantes e que todos os participantes incluídos no estudo receberam informações suficientes e deram o seu consentimento informado para participar nesse estudo.
Direito à privacidade e consentimento informado. Os autores devem ter obtido o consentimento informado dos pacientes e/ou sujeitos mencionados no artigo. O autor para correspondência deve estar na posse deste documento.
Conflito de interessesOs autores declaram não haver conflito de interesses.
AgradecimentosOs autores agradecem ao Laboratório de Anatomia Dentária e ao Laboratório de Farmacologia e Biocompatibilidade