A hipomineralização incisivo-molar (HIM) é uma patologia de origem sistémica caracterizada pela diminuição da mineralização de um até 4 primeiros molares permanentes e que surge frequentemente associada aos incisivos permanentes, os quais podem estar, igualmente, afetados. A sua etiologia permanece ainda não totalmente definida, sendo que as crianças afetadas exibem frequentemente problemas de comportamento, medo e ansiedade, provavelmente relacionados com as repetidas necessidades de tratamento e, também, com a dificuldade em anestesiar estes dentes. Devido ao potencial impacto negativo na saúde oral dos indivíduos afetados e tendo como base uma investigação bibliográfica da literatura científica de artigos, em língua inglesa, publicados entre 1970 e 2011, os autores propuseram-se a uma revisão da informação existente, nomeadamente no que diz respeito às características da patologia, fatores etiológicos, diagnóstico e tratamento da hipomineralização incisivo-molar.
Molar Incisor Hypomineralization (MIH) is a hypomineralization of systemic origin affecting one to four permanent first molars and frequently associated with affected permanent incisors. Its etiology is still unclear and affected children often exhibit behavior problems, fear and anxiety, probably related to the repeated treatment needs, and also the difficulty in anesthetizing these teeth. Due to its potential negative impact on oral health of affected individuals and based on a literature search of scientific articles in English published between 1970 and 2011, the authors proposed to review the available information particularly: characteristics of the pathology, etiological factors, diagnosis and treatment of molar-incisor hypomineralization.
A hipomineralização incisivo-molar (HIM) foi descrita pela primeira vez por Weerheijm et al.1, em 2001, como sendo uma hipomineralização de origem sistémica envolvendo de um até 4 primeiros molares permanentes surgindo, frequentemente, associada a incisivos permanentes, igualmente afetados.
A primeira vez que foi identificada clinicamente foi, no entanto, por volta de 19702. Desde esse momento, várias foram as nomenclaturas utilizadas para a descrever, tais como: «opacidade idiopática do esmalte nos primeiros molares permanentes», «opacidade do esmalte não relacionada com flúor nos primeiros molares permanentes», «hipoplasia interna do esmalte», «cheese molars» ou «aplasia do esmalte». Esta enorme variedade de termos tem dificultado a comparação entre estudos3,4.
Os defeitos observados no esmalte são o resultado de uma variedade de fatores ambientais que atuam ao nível sistémico. Nestes, incluem-se todos os fatores presentes nos períodos pré-natal, perinatal e durante a infância que possam interferir com o normal desenvolvimento do esmalte5–7. Não pode também ser excluída a predisposição genética3.
Clinicamente, o esmalte dos dentes afetados apresenta zonas de descoloração branca/opaca, amarela ou castanha, consoante o grau de severidade1,8, bem demarcadas do esmalte são, e geralmente assimétricas4. Após erupcionarem, os molares tendem a fraturar ou a apresentar elevada sensibilidade, tanto ao frio como ao quente, sendo frequentemente difíceis de anestesiar. Esta patologia apresenta, assim, uma enorme relevância clínica tendo, ao longo da última década, captado a atenção dos Médicos Dentistas4,8.
O objetivo deste artigo é o de proceder a uma revisão da informação existente na literatura internacional relacionada com esta patologia, focando as suas implicações clínicas.
MétodosPara a elaboração deste trabalho, recorremos às bases de dados MEDLINE/PUBMED, B-On e aos arquivos da biblioteca da Faculdade de Medicina Dentária da Universidade do Porto, usando os termos «dental enamel hypoplasia», «molar», «incisor», «etiology», «prevalence», «epidemiology», «pathology»; «diagnosis».
Foram impostos limites de pesquisa, nomeadamente, artigos em língua inglesa e publicados entre os anos de 1970 e 2011. No total, foram obtidos 94 artigos, dos quais foram selecionados 26, tendo em conta a relevância do título e do resumo e considerando como critérios de inclusão artigos que incluíssem: as características da patologia, os fatores etiológicos, estudos epidemiológicos, assim como o diagnóstico e o tratamento da hipomineralização incisivo-molar. Foram selecionados artigos de revisão e estudos epidemiológicos, tendo sido rejeitados os artigos não acessíveis através dos servidores da Faculdade de Medicina Dentária da Universidade do Porto, assim como todos aqueles que não abordavam os critérios de inclusão, anteriormente referidos.
Hipomineralização incisivo-molarDesde que foi identificada pela primeira vez, em finais dos anos 702, esta patologia tem permanecido enigmática, nomeadamente quanto aos mecanismos que estão na sua origem. Por esse fato, ao longo dos anos, têm sido utilizados diferentes termos para identificar a mesma condição clínica3.
Num questionário efetuado a membros da European Academy of Paediatric Dentistry (EAPD), com o objetivo de verificar se encaravam a HIM como um problema clínico e, ao mesmo tempo, avaliar a prevalência nos seus respetivos países, concluiu-se que os especialistas consideravam esta condição um problema clínico importante e que os estudos de prevalência eram maioritariamente provenientes de países do Norte da Europa9 (tabela 1). Foi observada uma prevalência que variou entre os 2,8 e os 22%. Esta grande variação pode ser devida à variabilidade de critérios utilizados na realização dos exames clínicos, à utilização de grupos de crianças pertencentes a diferentes faixas etárias, às diferenças de prevalência da patologia, observada em distintos países e, por fim, à possibilidade de, em certos países, os altos níveis de prevalência de cárie poderem mascarar a existência da HIM9.
Prevalência de HIM em alguns estudos
Prevalência de HIM em alguns estudos | ||
Estudo e ano de publicação | Amostra | Prevalência de Primeiros Molares Permanentes (PMP) afetados |
Koch et al. (1987)2 | 2,226 crianças suecas nascidas entre 1966-1974 | 4%-15% das crianças exibia «hipomineralização idiopática» dos PMP |
Jalevik et al. (2001)6 | 516 crianças suecas 7-8 anos | 18% das crianças exibia HIM; as crianças afetadas possuíam em média 3,2 dentes hipomineralizados, 2,4 dos quais eram PMP |
Weerheijm et al. (2001)1 | 497 crianças alemãs com 11 anos nascidas em 1988 | 10% das crianças exibia «cheese molars (distúrbios idiopáticos de esmalte)»; 79% das crianças afetadas possuía 2 ou mais PMP afetados |
Apesar da inexistência de uma classificação universal, geralmente são atribuídos os termos «suave», «moderada» e «severa» para distinguir as diferentes formas de HIM8. Clinicamente, o esmalte dos dentes afetados apresenta zonas de descoloração branca/opaca, amarela ou castanha, em que lesões mais escuras refletem um aumento de severidade1,8. Isto foi comprovado num estudo longitudinal realizado em 2011, que revelou existir um aumento do risco de fratura pós-erupção nos dentes com colorações mais escuras10. Estas conclusões podem ser explicadas com o estudo de Jalevik e Noren11 que revelou que o esmalte com lesões de coloração amarela ou castanha é, microscopicamente, mais poroso do que o esmalte cujas lesões têm coloração branca/opaca. Estes resultados confirmam que a avaliação clínica da cor do esmalte reflete, em parte, a severidade da HIM10,11. A atribuição de um nível de severidade é importante, uma vez que esta condiciona as necessidades de tratamento das crianças afetadas. Mathu-Maju e Wright12 sugeriram que a sensibilidade dentária e as preocupações estéticas expressadas pelas crianças afetadas ou pelos pais deveriam também ser considerados critérios utilizados na avaliação da severidade da HIM.
EtiologiaAcredita-se que as doenças da infância, assim como o seu tratamento, possam ter um papel etiológico importante1,4,6,13. Doenças comuns aos primeiros 3 anos de vida da criança como as doenças do trato respiratório, asma, otite, amigdalite, varicela, assim como a rubéola, estão aparentemente associadas à HIM6,13. Outros fatores, como a má nutrição infantil, a exposição a bifenilos policlorados e dibenzo-p-dioxinas, ou até mesmo a exposição ambiental, em indivíduos com um aumento da suscetibilidade genética, podem estar associados a defeitos de esmalte13. São necessários estudos a longo prazo que tornem os dados mais consistentes.
PrevalênciaSeow14, em 1996, relatou uma prevalência superior de defeitos de esmalte em primeiros molares permanentes, em crianças com nascimento pré-termo e baixo peso ao nascimento (21% e 11%, respetivamente), quando comparados com crianças de um grupo controlo, mas, na sua publicação, não utilizou o termo hipomineralização incisivo-molar, descrevendo-as simplesmente como «defeitos no esmalte». Outro estudo, realizado na Suécia15, revelou também uma prevalência 2 vezes superior em crianças cujo parto foi pré-termo (38%) quando comparada com crianças de um grupo controlo (16%). Também uma baixa idade gestacional e um baixo peso ao nascimento foram considerados fatores concomitantes ao aparecimento de HIM11,13.
Características clínicasUma das características típicas é a sua localização assimétrica, afetando principalmente os 2/3 oclusais da coroa, tanto nos molares como nos incisivos, podendo o esmalte de um molar estar gravemente afetado enquanto que o do contralateral pode apresentar-se clinicamente são ou com defeitos de pequena dimensão4,8.
Durante a erupção dos primeiros molares permanentes, a superfície hipomineralizada é muito suscetível à cárie e à erosão. É importante o diagnóstico precoce desta patologia no sentido da implementação de medidas rigorosas de higiene, que permitam a remineralização das superfícies dentárias hipomineralizadas, devendo, ao mesmo tempo, ser desaconselhada uma dieta cariogénica, assim como a exposição a fatores considerados abrasivos/erosivos13.
As propriedades mecânicas do esmalte hipomineralizado de dentes com HIM são bastante inferiores quando comparadas com as de dentes saudáveis16, pelo que, com as forças mastigatórias, o aparecimento de fraturas nestes dentes é frequente. Estas, por sua vez, permitem uma maior retenção de placa bacteriana e o estabelecimento de nichos bacterianos, proporcionando melhores condições para a sua progressão e eventual atingimento da polpa1,8,16. Ao contrário do que sucede com os molares, os incisivos raramente fraturam17,18.
Clinicamente, estes pacientes possuem sensibilidade dentária aumentada8 o que pode levar a uma má escovagem e, consequentemente, ao aumento do risco de cárie e de perda dentária4. Além de uma dieta e higiene oral adequadas, a aplicação tópica de flúor e a utilização de pastas dessensibilizantes são uma opção na prevenção da cárie e no alívio da sensibilidade dentária, nestes pacientes17.
Esta patologia sempre teve pouco consenso no que se refere à sua classificação. Após um seminário ocorrido em 2003, foi acordado e publicado um conjunto de critérios que passariam a ser utilizados no diagnóstico da HIM tendo em vista a sua uniformização e a facilidade na comparação de estudos (tabela 2)18. Contudo, a comparação entre estudos permaneceu, ainda assim, difícil, já que surgiram outros parâmetros, passíveis de variação, como a faixa etária considerada, a utilização de índices diferentes para a avaliação da severidade da patologia, assim como a própria metodologia de recolha de dados4,19.
Critérios de avaliação usados no diagnóstico de HIM, em estudos e prevalência, a partir de 2003
Opacidade demarcada |
Alteração no esmalte do dente, de grau variável, afetando a sua translucência. O esmalte alterado é de espessura normal, com uma superfície lisa, podendo apresentar-se de cor branca, amarela ou castanha |
Fratura pós-erupção |
Perturbação que afeta os dentes após a sua erupção geralmente associada a opacidade demarcada e que resulta de defeitos observados na superfície dos dentes |
Restauração atípica |
O tamanho e a forma das restaurações não são típicos de cáries de dentes temporários. Nos molares, na maioria dos casos, as restaurações estão estendidas para as superfícies vestibular ou palatina. Na margem das restaurações observa-se, frequentemente, uma opacidade. Nos incisivos pode ser observada uma restauração vestibular sem qualquer trauma associado |
Extração de molar devida a HIM |
A ausência de um primeiro molar permanente deverá estar relacionada com a restante dentição. Suspeita de extração devido a HIM: opacidades ou restaurações atípicas em outros primeiros molares permanentes combinado com a ausência de um primeiro molar permanente. Também a ausência de primeiros molares permanentes numa dentição sã em combinação com opacidades demarcadas de emalte nos incisivos. Não é provável a extração de incisivos devido a HIM |
Não erupcionado |
O primeiro molar permanente ou o incisivo a ser examinado não está erupcionado |
As possibilidades de tratamento de dentes com HIM são diversas, variando desde a prevenção até à restauração ou mesmo à extração dentária. A decisão do tratamento a seguir é complexa e depende de inúmeros fatores, sendo que a severidade da condição, a idade dentária do paciente, o contexto sócio-ecónomico da criança/pais e as suas expectativas são os mais considerados17,18,20.
Dentro das medidas preventivas, especialmente numa fase precoce e como primeira linha de tratamento, deve ser efetuado um aconselhamento dietético e recomendada uma pasta dentífrica com uma concentração de flúor no mínimo de 1000 ppm20. No caso de o indivíduo apresentar sensibilidade dentária espontânea, a aplicação profissional de um verniz de flúor poderá ser uma medida eficaz. A aplicação de selantes de fissuras em dentes posteriores é uma opção eficaz na prevenção do aparecimento de cáries nestes dentes, devendo ser colocado em dentes íntegros que não tenham sofrido fratura20. Apesar de, em 2005, Kotsanos20, ter duvidado da eficácia da colocação de selantes nestes dentes devido à verificação de baixas taxas de retenção, Lygidakis21, 4 anos depois, num estudo longitudinal, verificou altas taxas de retenção conseguidas com a aplicação de adesivos de 5.ª geração previamente à colocação dos selantes. No caso de os dentes anteriores estarem comprometidos esteticamente, mas se apresentarem estruturalmente íntegros, pode ser considerado um branqueamento com peróxido de carbamida, tendo em atenção a possibilidade do agravamento da sensibilidade dentária17.
A opção restauradora deverá ser utilizada em dentes pouco comprometidos, utilizando preferencialmente resinas compostas, com remoção de todas as lesões opacas hipomineralizadas do esmalte, e utilizando-se, preferencialmente, um adesivo de 6.ª geração7. As resinas compostas mostraram ser o material com mais durabilidade quando comparados com outros materiais restauradores17,20.
Quando um dente não possui estrutura suficiente para suportar restaurações em resina composta, está recomendada a colocação de coroas de aço pré-formadas, que promovem a cobertura total do dente, previnem a perda dentária, auxiliam no controlo da sensibilidade dentária e na manutenção da dimensão vertical, não requerendo muito tempo a sua colocação7. Por outro lado, no caso de dentes anteriores completamente erupcionados, pode ser considerada a colocação de facetas potencialmente com elevada durabilidade, não havendo ainda, contudo, estudos que o comprovem22.
Em dentes com grande comprometimento, quando a restauração não é possível, torna-se necessário considerar a extração. Neste caso, é importante averiguar a possibilidade de ocorrência de futuras complicações de caráter ortodôntico23,24. Caso a condição ortodôntica seja favorável, segundo William7, a idade ideal para a extração dos dentes afetados será entre os 8 anos e meio e os 9 anos.
A decisão de extrair ou restaurar os dentes afetados deve ser baseada na idade do paciente, no número de dentes envolvidos, na sua vitalidade, na possibilidade de realizar a sua restauração, no número de dentes que apresentam sintomatologia, na cooperação do paciente e na fase de erupção em que se encontra o dente17,23–25.
Está descrita uma maior dificuldade na obtenção de bons níveis de anestesia local neste tipo de dentes, que pode refletir-se numa falta de cooperação e na consequente maior dificuldade no seu tratamento4,26.
ConclusõesA HIM permanece ainda uma entidade relativamente desconhecida e de etiologia não totalmente definida, pois a falta de evidência na literatura não permite estabelecer os fatores etiológicos desta doença de forma clara. Pode, com base na literatura analisada, concluir-se que a HIM terá uma origem multifatorial, sendo mais comum nas crianças com nascimento pré-termo e naquelas que contraíram doenças da infância durante os primeiros 3 anos de vida. É importante, assim, que esta patologia seja reconhecida universalmente com o estabelecimento de critérios de diagnóstico bem definidos, sem os quais qualquer investigação ficará comprometida.
O mapeamento da prevalência é também imperativo, com populações representativas e estudos validados pelo uso de métodos padronizados para as fotografias intraorais, que foi apontado como útil em estudos epidemiológicos de defeitos do esmalte.
As crianças afetadas com HIM exibem com maior frequência problemas de comportamento, medo e ansiedade. Tais complicações estarão provavelmente relacionadas com repetidos episódios de dor durante a execução dos tratamentos dentários, ou durante a sua tentativa de realização, uma vez que, em muitas crianças, a anestesia local não proporciona um bloqueio adequado das estruturas nervosas que permita a ausência total de dor durante a realização dos tratamentos dentários. Desta forma, o paciente com HIM deve frequentar o Médico Dentista com relativa periodicidade, o qual deve implementar medidas de higiene oral rigorosas e eficazes.
Todas a crianças com HIM devem ser consideradas pacientes com alto risco de desenvolvimento de cárie dentária, devendo, por isso, ser monitorizadas frequentemente, com uma abordagem cuidadosa, de forma a conseguir-se uma boa colaboração.
Conflito de interessesOs autores declaram não haver conflito de interesses.