Pesquisa e quantificação de microrganismos no dorso lingual de indivíduos com alto e baixo índice de CPO-D.
Materiais e métodosO estudo efetuado envolveu 50 indivíduos, avaliados quanto aos seus índices de CPO-D, por meio de um exame clínico, separados em dois grupos, alto índice de cárie e baixo índice de cárie, de 25 elementos cada. Em cada indivíduo foi pesquisada a presença de microrganismos no dorso da língua, recorrendo a meios de cultura específicos (Columbia Agar, MSA, MSB e Rogosa Agar). Os microrganismos isolados foram identificados e quantificados. Os resultados obtidos foram alvo de análise estatística inferencial.
ResultadosOs resultados obtidos mostraram uma relação positiva entre os valores dos Streptococcus mutans e de Lactobacillus spp com indivíduos com CPO-D elevados (p<0,001).
ConclusãoOs dados obtidos neste estudo demonstram que o dorso lingual é um importante nicho de bactérias, nomeadamente microrganismos cariogénicos.
Identification and quantification of microorganisms in the tongue dorsum in subjects with high and low level of DMFT.
Materials and methodsThe study involved 50 subjects assessed for their DMFT levels, through a clinical examination, separated into two groups of 25 elements each, being one group a high prevalence of dental caries and the other a low prevalence of dental caries. In each individual the presence of microorganisms in the tongue dorsum was determined, using specific culture media (Columbia Agar, MSA, MSB e Rogosa Agar). The isolated microorganisms were identified and quantified. Inferential statistical analysis was performed on the experimental data.
ResultsThe results showed a positive relationship between the values of Streptococcus mutans and Lactobacillus spp. with subjects with a high DMFT (p<0,001).
ConclusionThe data from this study demonstrate that the back of the tongue is an important niche of bacteria, including cariogenic microorganisms.
O dorso da língua representa um dos mais complexos nichos ecológicos humanos, sendo que, aproximadamente um terço dos microrganismos, que habitam a cavidade oral, se encontra só ao nível do dorso lingual1. A composição bacteriana da superfície lingual é complexa e de difícil caracterização devido ao facto de um indivíduo saudável apresentar em média 100 a 200 espécies diferentes, indicando uma heterogeneidade substancial entre indivíduos2. O dorso da língua forma uma zona ecológica única, com as suas criptas e papilas, que providenciam uma superfície ampla favorecendo a acumulação de resíduos orais e de microrganismos. Microbiologicamente, constitui um importante reservatório bacteriano, funcionando assim, como um fator determinante ao nível da colonização da superfície dentária3–5. As investigações feitas à origem dos microrganismos na saliva, concluem que grande parte desses microrganismos emanam da língua e, em geral, os microrganismos da língua influenciam a flora de toda a cavidade oral6.
Apesar da descamação contínua do epitélio da língua, o dorso raramente se apresenta livre de estripes de Staphylococcus e de Streptococcus. Estes microrganismos podem compor até 90% da massa bacteriana na língua1,4,7.
Dentro da família dos Streptococcus é importante realçar o grupo dos Streptococcus viridans, que engloba quatro conjuntos filogenéticos: mitis, mutans, salivarius e o grupo anginosus ou milleri. Algumas dessas bactérias estão implicadas em doenças orais como a cárie e a periodontite, sendo estas as infeções bacterianas mais comuns em humanos8.
As principais espécies bacterianas associadas ao desenvolvimento da cárie (bactérias cariogénicas) são Streptococcus mutans (S. mutans), e Lactobacillus spp.9–12. Estas espécies estão intimamente ligadas aos índices de cárie de um indivíduo, apresentando uma associação positiva entre os seus níveis e a alta prevalência de cáries13–15.
O S. mutans é considerado por alguns autores como sendo um organismo específico das cáries dentárias e constitui uma das bactérias com maior poder cariogénico devido à sua grande capacidade acidogénica13,14,16,17. Habita normalmente nas superfícies dentárias, mas tem sido encontrado noutros nichos, tais como o dorso da língua6,18,19.
Existem à volta de 100 espécies de Lactobacillus e algumas dessas espécies habitam várias zonas do nosso organismo, como por exemplo, o trato gastrointestinal e o trato urogenital feminino, onde desempenham um papel importante na saúde geral do hospedeiro, funcionando como microrganismos probióticos. Em contraste, na cavidade oral, estas bactérias estão amplamente implicadas no desenvolvimento da cárie dentária. Os estudos demonstram que aparecem durante os primeiros anos de vida e estão presentes em elevados números na saliva, dorso da língua, na mucosa oral e palato20,21. O Lactobacillus, tal como o S. mutans, exibe certos traços cariogénicos, tais como o alto potencial acidogénico, libertando grandes quantidades de ácido lático, diminuindo o pH do meio até ao ponto de inibir o crescimento de organismos menos ácido tolerantes22,23.
É importante salientar que outras bactérias orais como Actinomyces israelii, Streptococcus mitis, Streptococcus milleri e Veillonella também possuem algum potencial cariogénico tendo já sido encontradas associadas a lesões de cárie16,24. Os estudos efetuados à flora residente da cavidade oral, concluem que várias bactérias orais, para além do S. mutans e dos Lactobacillus, são suficientemente acidogénicas para terem efeito cariogénico, ou seja, estas bactérias trabalhando em conjunto e num meio rico em hidratos de carbono, possuem a capacidade de baixarem o pH do meio para níveis críticos de desmineralização do esmalte dos dentes, iniciando assim o processo da cárie, porém a uma taxa mais lenta16,25.
A cárie dentária é a doença com maior prevalência no mundo inteiro, é transmitida logo nos primeiros anos de vida e representa um problema significativo de saúde pública em alguns países. Encontra-se presente em todas as populações do mundo e se não for tratada provoca a destruição dos tecidos duros do dente (esmalte e dentina), sendo a principal razão para a perda de peças dentárias23,26–28.
Com este estudo pretendeu-se identificar quais os microrganismos presentes no dorso lingual em indivíduos com elevado índice de CPO-D e em indivíduos de baixo índice de CPO-D.
Materiais e métodosAmostragemFoi efetuado um estudo seccional cruzado que decorreu durante 3 meses (maio, junho e julho).
Este estudo envolveu 50 indivíduos. Estes foram avaliados quanto aos seus níveis de CPO-D e agrupados em dois grupos distintos, de 25 elementos cada. O grupo A formado pelo conjunto de indivíduos com alto índice de cárie, CPO-D superior a 3, e o grupo B constituído pelo conjunto de indivíduos com baixo índice de cárie, CPO-D inferior 3. Foram excluídos, neste estudo, indivíduos portadores de qualquer doença sistémica e que estivessem sob o efeito de antibióticos.
Foram estudados mais indivíduos, mas apenas estes estavam de acordo com os critérios de inclusão
Os 50 indivíduos estudados representam 1% dos utentes da clínica no período do estudo.
Este estudo foi aprovado pela Comissão de Ética do Instituto Superior de Ciências da Saúde Egas Moniz.
Todos os participantes assinaram um Termo de Consentimento Informado.
Variáveis de estudoProtocolo clínicoOs indivíduos estudados foram avaliados quanto aos seus índices de cárie por meio de um exame clínico.
O diagnóstico das lesões de cárie teve em conta os critérios da OMS, tendo sido apenas realizado um exame clínico (visual e tátil), não se efetuando quaisquer exames radiológicos29.
Protocolo laboratorialApós o exame clínico foi feita a recolha, com uma zaragatoa estéril, de uma amostra do dorso da língua, ao nível do sulco mediano da parte anterior da língua. A amostra foi guardada num tubo de ensaio com meio de transporte BHI (Brain Heart Infusion) e transportada para o laboratório.
As amostras foram inoculadas em meios de cultura: Columbia Agar (bioMérieux), MSA (Mitis-Salivarius-Agar), MSB (Mitis-Salivarius-Bacitracina) e Rogosa Agar29,30. Os 3 primeiros foram incubados em aerobiose e em atmosfera de anaerobiose, a 37°C durante 48h, e o Rogosa agar foi incubado em microaerofilia, a 37°C durante 48h.
Identificação das amostrasApós a incubação os microrganismos isolados foram diferenciados visualmente, pelo seu aspeto e pela sua atividade hemolítica. O número de ufc foi registado numa ficha de participante. Posteriormente, foram re-isoladas colónias em meio Columbia Agar, para efetuar a sua identificação. Estas foram incubadas nas mesmas condições de temperatura e atmosfera do seu isolamento.
Foi efetuada coloração de Gram e pesquisada a presença da enzima catalase em todos os microrganismos. Quando esta última se encontrava presente, o microrganismo foi re-isolado em meio Chapman Agar (bioMérieux) e foi efetuado o teste de coagulase, com o fim de despistar uma possível estirpe de Staphylococcus aureus coagulase positivo.
Posteriormente, procedeu-se à identificação dos microrganismos por meio de galerias de identificação Api® (bioMérieux). Para as estripes de Estreptococos utilizou-se o teste Api 20 Strep®, para as bactérias anaeróbias utilizou-se o teste Api 20 A®, e para os bacilos Gram negativos utilizou-se o teste Api 20 E®. Para a identificação dos Lactobacilos utilizou-se o teste Api 50 CH®.
Análise estatísticaOs dados obtidos nesta investigação foram submetidos à análise estatística pelo programa PASW v18, utilizando métodos de estatística descritiva e inferencial (testes do Qui-Quadrado, t-Student e de Mann-Whitney). Os testes foram aplicados considerando um nível de significância de 5%.
ResultadosNo presente estudo foi avaliada uma amostra de 50 indivíduos, separados em dois grupos: grupo A com alto índice de CPO-D e grupo B com baixo índice de CPO-D.
A média dos valores de CPO-D do grupo A foi maior (13,44±7,14) que a do grupo B (0,96±1,14) (tabela 1).
Comparativamente à média das idades dos indivíduos em estudo, o grupo A apresentou um valor médio (34,56±14,84) mais alto do que o grupo B (21,68±3,35) (tabela 1).
A nível microbiológico foram identificadas 19 espécies distintas num total de 2,55x107 UFC/ml isoladas. A espécie bacteriana mais encontrada nas amostras foi o Streptococcus sallivarius, (32% das espécies encontradas) seguido do Streptococcus viridans (24%) e do Streptococcus mitis (14%). O Streptococcus milleri (13%) o Lactobacillus spp (5%) e a Prevotella melaninogenica/oralis (3%), seguem-se às bactérias anteriores. Com uma percentagem idêntica de 1%, encontram-se as espécies Staphylococcus aureus e a Gemella morbillorum. As restantes espécies encontravam-se em percentagens inferiores a 1%. A espécie menos encontrada foi o Streptococcus anginosus (fig. 1).
Adicionalmente, foi também efetuada uma análise estatística a nível do cruzamento das variáveis do exame clínico (índice CPO-D), com os microrganismos isolados.
Na comparação das variáveis foram utilizados os testes estatísticos do Qui-Quadrado, t-Student e Mann-Whitney para um nível de significância de 5%.
Os resultados referentes aos indivíduos portadores de Streptococcus mutans e também de Lactobacillus spp, mostram um número superior de indivíduos portadores com CPO-D elevado em comparação aos indivíduos portadores com CPO-D baixo (p<0,001) (tabela 2). Nestes dados constatamos que 76% dos indivíduos com CPO-D elevado são portadores de Streptococcus mutans divergindo dos valores encontrados para os indivíduos com CPO-D baixo, que se situou nos 12% de indivíduos portadores. A nível dos Lactobacillus spp constata-se que 96% dos indivíduos com CPO-D alto analisados são portadores, sendo que os valores encontrados para os indivíduos com CPO-D baixo, foi de 48% de indivíduos portadores (tabela 2).
N° indivíduos portadores / classe de CPO-D.
CPO-D elevado (n=25) | CPO-D baixo (n=25) | p | |
Streptococcus sallivarius | 25 (100%) | 25 (100%) | - |
Streptococcus mitis | 23 (92%) | 25 (100%) | - |
Streptococcus milleri | 25 (100%) | 19 (76%) | - |
Streptococcus viridans | 23 (92%) | 25 (100%) | - |
Streptococcus mutans | 19 (76%) | 3 (12%) | < 0,001a |
Lactobacillus spp | 24 (96%) | 12 (48%) | < 0,001a |
Verificou-se ainda que os Lactobacillus spp se encontram em maior quantidade nos indivíduos com CPO-D elevado (4,70±0,30), comparando com os de CPO-D baixo (2,98±0,47) (p<0,001) (tabela 3).
Log (UFC/ml) / classe de CPO-D.
CPO-D elevado Média±desvio padrão | CPO-D baixo Média±desvio padrão | p | |
Streptococcus sallivarius | 4,77 ± 0,52 | 4,57 ± 0,58 | 0,211a |
Streptococcus mitis | 4,43 ± 0,50 | 4,24 ± 0,43 | 0,174a |
Streptococcus milleri | 4,49 ± 0,55 | 4,21 ± 0,38 | 0,053a |
Streptococcus viridans | 4,58 ± 0,63 | 4,45 ± 0,52 | 0,434a |
Streptococcus mutans | 2,76 ± 0,61 | 2,55 ± 0,13 | 0,885b |
Lactobacillus spp | 4,70 ± 0,30 | 2,98 ± 0,47 | < 0,001b |
Os resultados obtidos indicam uma maior prevalência de bactérias no dorso lingual em indivíduos com CPO-D alto. Neste estudo verificou-se que o dorso lingual funciona como importante nicho para várias estirpes bacterianas incluindo estirpes cariogénicas, como é o caso dos Streptococcus mutans e dos Lactobacillus spp.. Este pode ser considerado um estudo piloto, cujos resultados preliminares demonstram a importância de no futuro aprofundar este tema e verificar se este nicho bacteriano terá influência no desenvolvimento da cárie.
Os resultados mostram que o número de microrganismos isolados nos indivíduos com CPO-D elevado é, na sua maioria, superior aos dos indivíduos com CPO-D baixo. Estes dados vão ao encontro dos resultados encontrados em outros estudos que demonstram a presença de um aumento de microrganismos, especialmente nos valores dos Streptococcus mutans e nos Lactobacillus spp em indivíduos com CPO-D elevados15,19,25,32. Por outro lado, existem estudos que mostram que a escovagem da língua contribuiu para a diminuição dos niveis de Streptococcus mutans e de Lactobacillus spp.2,19.
A existência de significado estatístico nas diferenças encontradas nos indivíduos portadores de Streptococcus mutans e de Lactobacillus spp com diferentes CPO-D corroboram com a literatura corrente, que identifica esses dois microrganismos como principais agentes cariogénicos. Em relação aos outros microrganismos, a ausência de significado estatístico nas diferenças encontradas nas suas quantidades, parecem indicar a pouca relação existente entre os seus níveis e o índice de CPO-D. Na verdade, ainda não se encontra bem definido a sua contribuição para o desenvolvimento da cárie dentária. Alguns estudos16,31 evidenciam o potencial cariogénico destes microrganismos, demonstrando a sua capacidade acidogénica, como é o caso do Streptococcus mitis e do Streptococcus milleri, mas pelo contrário, outros estudos28,32 caracterizam esses microrganismos como benéficos, na medida que ocupam os nichos dos microrganismos cariogénicos, impedindo assim a sua colonização.
A pequena representatividade da amostra e o facto de ser um estudo retrospetivo permitem apenas mostrar que o dorso da língua é um importante nicho de microrganismos. Para aferir da importância deste nicho para o desenvolvimento da cárie, são necessários estudos mais aprofundados. Muito pouco se sabe sobre a flora microbiana do dorso lingual, por isso consideramos que este estudo piloto é importante como base para no futuro se delinearem estudos mais completos.
ConclusãoEstes dados apontam para o interesse do estudo do dorso lingual na saúde oral e como tal, deve realçar-se a importância da escovagem da língua, juntamente com a escovagem dos dentes e o uso do fio dentário como forma eficaz no combate da placa bacteriana e na prevenção da cárie dentária.
Conflito de interessesOs autores declaram não haver conflito de interesses.