Determinar a prevalência das anomalias de oclusão e dos hábitos orais deletérios e relacionar estes hábitos com a presença de anomalias oclusais.
MétodosA população-alvo foi constituída por 1.176 crianças, com idades compreendidas entre os 3 e 13 anos, observadas na consulta criada para o projeto «Paranhos Sorridente», na clínica da Faculdade de Medicina Dentária da Universidade do Porto. A análise estatística foi efetuada utilizando o programa de análise estatística SPSS® v.19.0, com o nível de significância de 0,05.
ResultadosDa totalidade das crianças, 33,8% apresentava hábitos orais deletérios: 2,4% hábito de sucção da chupeta; 3,8% hábito de sucção do lábio; 1,9% hábito de sucção da língua; 4,5% hábito de sucção do polegar; 2,3% hábito de sucção de outros dedos; 7,6% hábito de morder os lábios; 29,3% hábito de onicofagia; 5,1% hábito de interposição da língua; e 1,4% hábito de interposição da bochecha. As anomalias oclusais, no global, foram encontradas em 29,2% das crianças. A mordida aberta anterior foi de 11,2%; a mordida aberta posterior foi de 4,8%; a mordida cruzada anterior foi de 9,2%; e a mordida cruzada posterior foi de 16,1%. Das 381 crianças com hábitos orais deletérios, 130 (34,1%) apresentavam anomalias oclusais (p=0,009).
ConclusãoOs hábitos orais deletérios apresentam-se com uma prevalência significativa e estão, muitas vezes, associados a anomalias oclusais.
To assess the prevalence of occlusal anomalies and deleterious oral habits and to determine the association between these habits and the presence of occlusal anomalies.
Methods1176 children between the ages of 3 and 13 years old were observed in “Paranhos Sorridente” project at the Faculty of Dentistry of University of Porto's clinic. Statistical analysis was performed using the statistical analysis program SPSS® v.19.0. The level of significance was set at 0.05.
ResultsOcclusal anomalies were detected in 29.2% of the children: 11.2% had anterior open bite; 4.8% had posterior open bite; 9.2% had anterior cross-bite; and 16.1% had posterior cross-bite. Deleterious oral habits were detected in 33.8% of the children: 2.4% had pacifier sucking habits; 3.8% lip sucking; 1.9% tongue sucking; 4.5% thumb sucking; 2.3% other finger sucking; 7.6% lip biting; 29.3% nail biting; 5.1% tongue thrusting; and 1.4% cheek biting. Of the 381 children with deleterious oral habits, 130 (34.1%) had occlusal anomalies (p=0.009).
ConclusionDeleterious oral habits have a significant prevalence and are often associated with occlusal anomalies.
O desenvolvimento do complexo craniofacial resulta da interação entre fatores genéticos e ambientais1. Os comportamentos succionais estão reconhecidos como fatores etiológicos que podem causar alterações do padrão normal e afetar as características da arcada dentária e da oclusão2.
Um hábito oral consiste num ato neuromuscular de natureza complexa, um estímulo aprendido que se torna inconsciente, estando diretamente relacionado com as funções do sistema estomatognático (sucção, deglutição, mastigação e fonética)3.
A qualificação de um hábito deletério quanto ao dano causado no sistema estomatognático é resultante, entre outras, das variáveis frequência, duração e intensidade4. Podem ser classificados como não compulsivos, quando são de fácil aquisição e abandono, acompanhando o processo de maturidade, ou compulsivos, quando estão fixados à personalidade da criança, sendo um refúgio quando esta se sente ameaçada. Quanto à capacidade de satisfazer necessidades, podem ser classificados em nutritivos, aqueles que permitem a obtenção de nutrientes essenciais, ou não nutritivos, se transmitem sensação de segurança e conforto5.
A prevalência de hábitos orais deletérios varia entre 40,0%, num estudo com crianças dos 30 aos 59 meses de idade6, e 73,4%, num estudo com crianças dos 3 aos 5 anos7, sendo os mais comuns a sucção digital e da chupeta, sucção ou morder o lábio ou a língua, onicofagia, prática de morder objetos e bruxismo.
A sucção satisfaz, além da nutrição, importantes necessidades psicológicas, e parece estar relacionada com a linguagem e outras expressões de desenvolvimento mental. Pelo facto de os hábitos de sucção não nutritivos persistentes poderem resultar em problemas a longo prazo, recomenda-se a eliminação do hábito em crianças com idades superiores a 3 anos1,8. Vários estudos têm referido que os hábitos de sucção não nutritivos (principalmente a sucção digital ou da chupeta) podem ser responsáveis por várias formas de má oclusão infantil, como mordida aberta anterior, aumento do overjet e mordida cruzada posterior1,8,9.
Sendo escassa a existência de estudos sobre a prevalência de hábitos orais deletérios e anomalias oclusais, principalmente na dentição mista, bem como sobre a relação entre ambos, e tendo em consideração o interesse e importância da temática para uma prática clínica mais completa e atenta, o presente estudo tem por objetivo testar a hipótese de que existe uma relação positiva entre estes hábitos e a ocorrência das más oclusões, através do estudo da prevalência de hábitos orais deletérios e de anomalias oclusais na população «Paranhos Sorridente».
Materiais e métodosDesenho do estudo e caracterização da amostraA Faculdade de Medicina Dentária da Universidade do Porto estabeleceu um protocolo com a Junta de Freguesia de Paranhos no sentido de melhorar a saúde oral das crianças que frequentam os jardins-de-infância e as escolas do 1.° e 2.° Ciclos desta freguesia. No âmbito deste projeto, realizou-se um estudo observacional, descritivo e transversal.
A população-alvo foi constituída por 1.176 crianças, com idades compreendidas entre os 3 e 13 anos, de ambos os sexos, matriculadas nos 9 jardins-de-infância e escolas públicas do 1.° e 2.° Ciclos da freguesia de Paranhos.
Para serem incluídas no estudo, as crianças precisavam de ser colaborantes e ter consentimento informado assinado pelos seus representantes legais. Foram excluídas deste estudo 49 crianças, por não serem colaborantes e não permitirem uma completa examinação.
No âmbito deste projeto, realizou-se um manual de referência com todas as variáveis de estudo, de modo a uniformizar os parâmetros de avaliação de cada uma dessas variáveis. Este manual foi entregue a todos os examinadores antes da avaliação das crianças. Foram realizadas sessões prévias de observação das variáveis de estudo em crianças nas disciplinas de Odontopediatria e Medicina Dentária Preventiva, sendo os examinadores avaliados por 2 docentes especializados. Os examinadores foram treinados e calibrados com Gold standard.
O exame clínico de todos os participantes foi realizado por grupos de 2 alunos de Medicina Dentária. Um aluno treinado era responsável pelo exame clínico intra e extra-oral das crianças e o outro era responsável pelo preenchimento correto dos dados na ficha clínica do paciente. Esta observação foi feita na cadeira dentária, com luz indireta, usando espelho, sonda e régua milimétrica. Não foram utilizadas radiografias como meio auxiliar de diagnóstico das anomalias oclusais.
Os pais ou representantes legais das crianças foram informados de como seria feito o exame e, após este procedimento, assinaram, de livre e espontânea vontade, o consentimento informado.
As crianças foram observadas no período de outubro de 2008 a junho de 2010. O projeto foi aprovado pela Comissão de Ética da Faculdade de Medicina Dentária da Universidade do Porto.
A revisão bibliográfica a respeito do tema proposto compreendeu uma pesquisa nas bases de dados Pubmed e Sielo. Com restrição à língua portuguesa e inglesa, os artigos selecionados incluíam os seguintes descritores: «occlusal anomalies», «oral habits», «crossbite», «digital sucking», «pacifier sucking» e «mixed dentition».
VariáveisAs anomalias oclusais estudadas foram: mordida cruzada anterior, mordida cruzada posterior, mordida aberta anterior e mordida aberta posterior.
Foi considerada mordida cruzada anterior quando a relação vestíbulo-lingual dos dentes anteriores se apresentava anormal: os dentes incisivos inferiores ocluíam por vestibular dos seus antagonistas superiores.
Foi considerada mordida cruzada posterior quando um ou mais dentes, temporários ou permanentes posteriores, ocluíam numa relação bucolingual anormal com os seus antagonistas, podendo ocorrer uni ou bilateralmente.
Foi considerada mordida aberta quando havia falta de contacto oclusal, no sentido vertical, entre os dentes superiores e inferiores, totalmente erupcionados, podendo ser na zona anterior ou posterior. A presença de mordida aberta fisiológica, por erupção da dentição permanente, não foi registada como anomalia oclusal.
Os hábitos orais deletérios estudados foram: sucção da chupeta, sucção labial, sucção lingual, sucção do polegar, sucção de outros dedos, interposição da bochecha, interposição da língua, onicofagia e morder os lábios.
Análise estatísticaA análise estatística foi realizada com recurso ao software Statistical Package for the Social Sciences® (SPSS®) v.19.0. A fim de realizar os testes de hipóteses sobre a independência das variáveis, foi aplicado o Teste do Qui-Quadrado de Independência ou o Teste Exato de Fisher, conforme apropriado. Foi utilizado, em todos os testes, o nível de significância de 5% (p=0,05).
ResultadosA amostra foi constituída por 1.127 crianças, dos 3 aos 13 anos (idade média 7,29 anos), figura 1, estando uniformemente distribuída pelo sexo (feminino 48%, masculino 52%).
Da amostra, 33,8% (n=381) das crianças apresentava hábitos orais deletérios, figura 2.
As anomalias de oclusão, no global, foram encontradas em 29,2% (n=329) da amostra. A distribuição das anomalias oclusais está representada na figura 3.
Verificou-se que das 381 crianças com hábitos orais deletérios, 130 (34,1%) apresentavam anomalias de oclusão, com significado estatisticamente significativo (p=0,009). A prevalência de anomalias de oclusão em pacientes com hábitos orais deletérios está exposta na tabela 1.
Prevalência de anomalias de oclusão em pacientes com hábitos orais deletérios
Hábito | Prevalência de anomalias de oclusão | p |
Sucção da chupeta | 59,3% (n=16) | 0,001 |
Sucção do lábio | 44,2% (n=19) | 0,027 |
Sucção da língua | 28,6% (n=6) | 0,950 |
Sucção do polegar | 29,4% (n=15) | 0,972 |
Sucção de outros dedos | 26,9% (n=7) | 0,797 |
Morder os lábios | 33,7% (n=29) | 0,337 |
Onicofagia | 30,9% (n=102) | 0,415 |
Interposição da língua | 43,1% (n=25) | 0,017 |
Interposição da bochecha | 25% (n=4) | 0,710 |
Das 27 crianças com o hábito de sucção da chupeta, 14 (51,8%) apresentavam mordida aberta anterior, com significado estatisticamente significativo (p<0,001) e só 4 (14,8%) apresentavam mordida cruzada posterior, sem significado estatisticamente significativo (p=0,858).
Entre as 51 crianças com o hábito de sucção do polegar, apenas 10 (19,6%) apresentavam mordida aberta anterior, sem significado estatisticamente significativo (p=0,051) e só 7 (13,7%) tinham mordida cruzada posterior, também sem significado estatisticamente significativo (p=0,642).
Das 58 crianças com o hábito de interposição da língua, 22 (37,9%) apresentavam mordida aberta anterior (p<0,001) e 9 (15,5%) apresentavam mordida aberta posterior, com significado estatisticamente significativo (p=0,001).
Das 43 crianças com o hábito de sucção labial, 12 (27,9%) apresentavam mordida aberta anterior (p=0,002), com significado estatisticamente significativo (p=0,027).
DiscussãoOs hábitos orais estão associados a alterações dentoalveolares e/ou esqueléticas em alguns pacientes. A gravidade destas deformações está relacionada com a frequência, duração, direção e intensidade de certos hábitos4. As alterações que podem ocorrer nas estruturas dentoalveolares podem ser: mordida aberta anterior ou posterior, mordida cruzada anterior ou posterior, interferência na posição normal e erupção dos dentes e alteração no crescimento ósseo9.
Tal como referido noutros estudos1,6–19, verificou-se uma relação positiva entre a presença de hábitos orais deletérios e as anomalias de oclusão. Relativamente à relação entre os hábitos orais deletérios estudados e as anomalias de oclusão, só se encontraram, neste estudo, resultados estatisticamente significativos no caso do hábito da sucção da chupeta, da sucção labial e da interposição da língua.
Montaldo et al.1 e Warren et al.14 verificaram que, na dentição mista, as crianças com hábitos de sucção não nutritivos apresentavam maior risco de desenvolver mordida cruzada posterior e mordida aberta anterior. No entanto, nenhum dos autores encontrou relação entre a sucção da chupeta e a mordida cruzada posterior, tendo encontrado apenas relação com a mordida aberta anterior.
Farsi e Salama15, Heimer et al.16 e Onyeaso e Isiekwe17 só encontraram relação positiva entre a presença de hábitos de sucção não nutritivos e a mordida aberta anterior, não encontrando relação entre estes hábitos e a mordida cruzada posterior.
Cozza et al.18,19 identificaram uma relação positiva entre hábitos de sucção não nutritivos, hiperdivergência facial e uma maior prevalência de mordida cruzada posterior e mordida aberta anterior, em crianças com dentição mista.
Katz et al.13, num estudo com 330 crianças de 4 anos de idade, identificaram hábitos de sucção não nutritivos em 67,9% da amostra, apresentando uma diferença estatisticamente significativa entre a presença destes hábitos e o desenvolvimento de mordida cruzada posterior e mordida aberta anterior.
Relativamente ao hábito de interposição da língua encontrou-se relação positiva, com significado estatisticamente significativo, com a mordida aberta anterior e posterior, o que é explicado pela forma como a criança interpõe a língua, seja mais anterior ou posterior.
Uma limitação do estudo consiste em ser um estudo transversal, não avaliando, ao longo do tempo, as consequências dos hábitos orais deletérios. Poderia haver crianças que apresentavam anomalias de oclusão e tinham abandonado o hábito tardiamente, sendo que, no momento da avaliação, já não o possuíam. Uma linha de investigação futura seria realizar um estudo longitudinal, de modo a avaliar melhor a relação entre estes parâmetros.
Outra possível linha de investigação seria realizar um estudo relacionando hábitos orais deletérios, anomalias de oclusão e padrão de crescimento vertical.
O médico dentista deve fornecer a informação necessária ao paciente e aos pais, alertando para as consequências do hábito. As modalidades de tratamento para controlar os hábitos orais deletérios consistem no aconselhamento paciente/pais, técnicas de modificação do comportamento, terapia miofuncional e tratamento com aparelhos ortodônticos20.
ConclusõesOs hábitos orais deletérios apresentam-se com uma prevalência significativa e estão, muitas vezes, associadas a anomalias oclusais. A identificação destes hábitos pelo médico dentista é fundamental para uma correta intervenção e um tratamento de sucesso.
Responsabilidades éticasProteção de pessoas e animais. Os autores declaram que para esta investigação não se realizaram experiências em seres humanos e/ou animais.Confidencialidade dos dados. Os autores declaram ter seguido os protocolos de seu centro de trabalho acerca da publicação dos dados de pacientes e que todos os pacientes incluídos no estudo receberam informações suficientes e deram o seu consentimento informado por escrito para participar nesse estudo.Direito à privacidade e consentimento escrito. Os autores declaram ter recebido consentimento escrito dos pacientes e/ou sujeitos mencionados no artigo. O autor para correspondência deve estar na posse deste documento.
Conflito de interessesOs autores declaram não haver conflito de interesses.