A saúde é uma base fundamental para o funcionamento da sociedade, da economia e do progresso de uma nação e aceite, cada vez mais, como responsabilidade de todos. No entanto, no desenho e implementação de políticas de saúde alguns continuam a adotar uma abordagem blaming the victim, colocando o ónus de comportamentos menos saudáveis nos indivíduos ou, mais recentemente, uma visão blaming the system, atribuindo a «culpa» ao poder central.
Certamente ainda marcada pelo obscurantismo do período da ditadura em Portugal, a nossa cultura não tem valorizado suficientemente as potencialidades do poder local para promover a saúde e tem tido dificuldade em funcionar com a confiança que está na base da descentralização do poder e do trabalho em parceria, essenciais para bem responder às necessidades locais. Impulsionar a descentralização, a autonomia das organizações e a responsabilidade das comunidades através de políticas que respeitem os cidadãos é fundamental para o progresso da nossa sociedade.
As atuais crises - financeira, social e individual - tornam premente a necessidade de criar políticas e competências para otimizar oportunidades de saúde ao nível local, regional e nacional dirigidas, tanto quanto possível, às causas dos problemas.
Intervir nos determinantes da saúde exige o estabelecimento de pontes de diálogo que aproximem os diversos setores da sociedade, a criação de sinergias entre saberes −do académico à experiência de vida− o desenho de políticas que respondam às necessidades das populações e de mecanismos que garantam a sua implementação. A ligação integrada entre a investigação, a política e a prática constitui uma forma efetiva de translação do conhecimento, em que se valoriza quer o conhecimento que vem da investigação fundamental e em saúde pública quer o que vem da sua aplicação na prática. Esta estreita ligação é fundamental à sua disseminação e um desafio à ciência da implementação. Tal como a evidência científica deve mostrar relevância para dar resposta às necessidades de saúde das pessoas, também o modo como ela é transferida e implementada pode constituir um modelo de referência para boas práticas.
O poder local, através das suas instituições e formas organizativas nas comunidades, tem inerentes potencialidades para transformar em orientações práticas o que os resultados da investigação em saúde pública têm conseguido evidenciar.
Há alguns anos, muitos municípios tinham dificuldade em assumir o seu papel na promoção da saúde, ou porque não queriam implicar-se diretamente ou porque não havia plena conscientização do processo. Hoje, alguns funcionam já segundo os princípios das Cidades Saudáveis, movimento criado pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Por isso, celebramos nas secções «Notícias» e «Nota Informativa» desta publicação, os dois municípios que marcam a história deste movimento: o município de Lisboa, onde teve lugar a primeira reunião da OMS no âmbito do projeto «Saúde em Lisboa», em 1986, através do texto disponibilizado pela vereadora Helena Roseta, e o município do Seixal, atual coordenador da Rede Portuguesa das Cidades Saudáveis, pelo texto escrito pela sua vereadora Corália Loureiro.
Por todo o país se assiste à preocupação de muitas autarquias em melhorar o nível de educação, reforçar as redes sociais no sentido de uma mais eficiente articulação entre setores e instituições, conseguir maior coesão social, defender e promover a saúde dos munícipes. Com base no modelo da salutogénese estimula-se a identificação dos recursos existentes, para os potenciar e encontrar as alternativas que sirvam as populações, desenvolvendo, do nível individual ao social, mecanismos de resiliência e de criatividade.
Os Planos de Desenvolvimento Social e os Planos Municipais de Saúde, em crescente parceria com os vários setores sociais, da saúde, educação, ação social e outros, têm constituído experiências promissoras em termos da implementação do que é preconizado pela filosofia da saúde em todas as políticas. Desde Virchow (1821-1902), que no século XIX defendeu esta visão, até à aprovação do documento Health in All Policies, em Helsínquia, em 2006, aquando da presidência finlandesa da União Europeia, tem sido difícil os vários setores assumirem o papel que lhes cabe na defesa e promoção da saúde dos cidadãos.
Os mecanismos de governança democrática, progressivamente a serem implementados nos territórios, são, ainda, insuficientes e frágeis, muitas vezes distanciados da maioria da população. É necessária vontade política e um forte investimento em mecanismos estruturais conducentes a facilitar a participação, desenvolvendo competências para o exercício de uma cidadania ativa.
Neste número da RPSP o espetro de publicações é vasto. Integra artigos que abordam as estratégias de combate à pobreza e às iniquidades através de políticas de âmbito internacional e nacional, e outros que se debruçam sobre medidas para o desenvolvimento local. Foca-se, fundamentalmente, no papel que as autarquias podem assumir na promoção da saúde e no apoio aos doentes, no seu processo de tratamento e recuperação, sem ignorar a complementaridade e necessidade de medidas ao mais alto nível. São apresentadas quer propostas políticas gerais quer estratégias locais de saúde na abordagem de questões ambientais, combate à pobreza e comportamentos ligados à saúde, como a obesidade e o tabagismo. Incluem-se reflexões sobre a participação dos cidadãos na saúde e no empreendedorismo social. Apresentam-se sugestões de metodologias de investigação e de planeamento participado, que incorporam os princípios da promoção da saúde.
Os trabalhos que se apresentam neste número da RPSP assentam nos princípios dos direitos humanos e da proteção à saúde, consignados na Constituição da República Portuguesa.
Espera-se que a publicação deste número, orientado para o tema «Poder Local e Promoção da Saúde», contribua para uma melhor clarificação sobre o modo como o poder local pode melhorar a qualidade de vida das pessoas e criar mais justiça social, articulando a investigação, as políticas e as práticas. Defende-se a permanente reflexão a nível dos municípios sobre os contextos e as necessidades, bem como sobre as próprias capacidades para desenvolver estratégias locais, com autonomia, estudando o impacte na saúde dos diferentes modelos de governança e das iniciativas políticas das várias áreas, implicando nos processos todos os atores-chave que forem relevantes. Alerta-se para a necessidade de políticas, a todos os níveis e em todos os setores, que promovam uma sociedade mais justa, saudável e feliz.
Espera-se, também, que este número da revista constitua um estímulo para o exercício de uma cidadania ativa, de pleno direito, no processo de corresponsabilidade e cocriação da saúde.