A análise da informação em saúde pública constitui, como há muito se reconhece, uma etapa essencial no processo de produção de novos conhecimentos. Uma questão que não pode ser ignorada e que está associada à valorização do conhecimento, à sua gestão, difusão e utilização.
A decisão baseada em conhecimento foi reconhecida já pelos epidemiologistas ingleses do século XIX, que tinham demonstrado a justeza deste princípio, nomeadamente William Farr (1808‐1883) com a criação do General Register Office em 1838 e John Snow (1813‐1858) nos estudos de mortalidade específica por cólera em 1855 (On the Mode of Communication of Cholera).
Em Portugal, os registos civis modernos foram instituídos a partir de 1911 pelo Governo da República. Antes, as estatísticas vitais estavam, no princípio, ligadas à Igreja, centradas nas paróquias (assentos paroquiais). Eram, nessa época, incompletas, como assinala o Anuário Estatístico 1904‐1905: «…o número de óbitos por causas ignoradas ou mal definidas se apresenta em 1905 superior a um terço do total.»
O famoso modelo de certificado em papel, preenchido pelo médico, fez o seu percurso ao longo de 100 anos. Os médicos nem sempre terão dado a devida atenção à importância deste instrumento, a avaliar pela elevada taxa de causas de óbito desconhecidas (cerca de 10% nos últimos anos). A perfeição no seu preenchimento não era a regra, facto que sempre dificultou, naturalmente, a qualidade da sua análise.
Aliás, essa preocupação foi manifesta durante a onda de calor de 2003. Então, pela primeira vez, foi possível comparar os certificados originais preenchidos pelos médicos e os verbetes de óbito emitidos pelas conservatórias do registo civil. As imprecisões foram, nesta altura, evidenciadas. Sobretudo a lentidão do circuito era considerada inexplicável. É verdade que, de acordo com o quadro legal então em vigor, um familiar do cidadão falecido entregava na Conservatória do Registo Civil o certificado de óbito assinado pelo médico que, de seguida, era transcrito para um verbete na conservatória respetiva e endereçado à sede da Direção‐Geral dos Registos e Notariado (hoje IRN), que por sua vez o enviava para o Instituto Nacional de Estatística (INE), que depois o remetia à Direção‐Geral da Saúde (DGS) para efeitos de codificação e que finalmente era de novo encaminhado, ao fim de vários meses, para o INE.
Desde 1911 que o circuito de declaração e de registo do óbito se manteve quase inalterado, se bem que em 2001 a introdução de um novo modelo em papel autocopiável e a adoção da 10.a Revisão da Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde permitiram que Portugal se aproximasse da generalidade dos países da União Europeia em termos de adequação às normas estatísticas internacionais relacionadas com a codificação das causas de morte. Contudo, as alterações de 2001 tiveram um impacte muito limitado na qualidade das estatísticas de óbito. Não alteraram a reconhecida pouca utilidade para fins de vigilância epidemiológica ou de investigação e não melhoraram os estudos de mortalidade.
Ora, a entrada em produção do Sistema de Informação dos Certificados de Óbito (SICO), nos termos previstos na nova leia, representa um marco que separa 2 eras bem distintas. Antes e depois de 1 de janeiro de 2014. Mais rapidez (imediatamente), mais segurança e mais qualidade. Mas também mais proteção de dados em relação ao cidadão, à luz do princípio de que cada instituição só recebe a informação que legalmente precisa. O processo inteiramente desmaterializado foi antecedido por um período de longa maturação e por uma fase experimental, desde o outono de 2012, em Coimbra, que ao longo de 2013 foi progressivamente alargada a todo o país, incluindo regiões autónomas.
O sistema de certificação das causas de óbito, assente num certificado desmaterializado, permite, comprovadamente, conhecer em cada momento a evolução da mortalidade e as suas causas e, portanto, monitorizar em tempo real a certificação da mortalidade, dado que a DGS dispõe hoje da totalidade dos certificados emitidos através do SICO.
A aplicação de suporte ao SICO assenta no preenchimento de um certificado de óbito de adulto e de um outro fetal e neonatal através de um formulário eletrónico que, inerentemente, tem verificações para preenchimento obrigatório de todos os campos relevantes, de acordo com a situação de cada óbito considerado. Paralelamente, este sistema recolhe ainda os Boletins de Informação Clínica, emitidos nos termos da lei, e os relatórios das autópsias clínicas e médico‐legais realizadas.
A desmaterialização permitida pelo SICO, para além de facilitar o processo de registo e análise de todos os óbitos ocorridos em Portugal, permite interpretar acontecimentos inesperados, como a atividade epidémica de um dado problema (de origem infeciosa ou não), bem como identificar eventuais impactes na mortalidade devidos aos fenómenos climáticos extremos (por exemplo, ondas de calor).
Os resultados já avaliados no final do primeiro mês (janeiro de 2014) demonstram que o registo desmaterializado correspondeu a 100%.
É, agora, tempo de fomentar e organizar projetos de vigilância e de investigação em parceria com centros académicos e sociedade científicas.
Fevereiro, 2014
Lei n.° 15/2012, de 3 de abril.