Investigações recentes no âmbito da obesidade sugerem que as crenças, atitudes e práticas de vários profissionais de saúde, principalmente ao nível dos cuidados de saúde primários, parecem estar a influenciar negativamente o comportamento destes técnicos no tratamento desta doença, não lhe dando a devida importância e contribuindo para a manutenção das taxas de obesidade. As críticas têm apontado para a primazia de investigações quantitativas e para a ausência de estudos comparativos com diferentes grupos de profissionais de saúde.
MétodoNeste estudo foram realizadas entrevistas semiestruturadas a médicos de família, nutricionistas e enfermeiros, a laborar em centros de saúde dos distritos de Braga, Porto e Aveiro. As entrevistas foram transcritas e analisadas, segundo os princípios da análise temática.
ResultadosOs 3 grupos apresentam crenças e atitudes negativas em relação aos obesos, que são descritos como desmotivados e passivos face ao tratamento, não aderindo na maioria das vezes, visto desvalorizarem a obesidade enquanto problema de saúde. Os médicos de família possuem baixas expectativas de sucesso, sentindo‐se frustrados com a falta de adesão, o que os leva a adotar uma postura passiva e resignada face ao tratamento. Os nutricionistas e enfermeiros percecionam‐se como agentes ativos, considerando‐se capazes de influenciar a motivação dos obesos; acreditam no seu sucesso, mas descrevem o processo como uma luta constante. Há várias referências a problemas de comunicação entre os 3 grupos de profissionais.
DiscussãoPara uma maior eficácia no tratamento da obesidade torna‐se peremptório alertar os profissionais de saúde para o impacto que as suas crenças poderão exercer na prática, reforçar a abordagem multidisciplinar e promover o aumento dos conhecimentos e de opções de tratamento, e a melhoria da comunicação entre os vários profissionais.
Recent studies indicate that healthcare providers, especially in primary healthcare, have negative beliefs and attitudes towards obese, which are negatively affecting their practices by not taking this issue as seriously as they should and, therefore, compromising the success of obesity treatment. However, data is not conclusive and quantitative research is not being able to clarify how health professionals’ practices and roles are affected by the way they perceive obesity and obese people.
MethodSemi‐structured interviews about beliefs, attitudes and practices about obesity were conducted withe Portuguese general practitioners, nutritionists and nurses working in primary health care centers in the north of Portugal. Data was analyzed according to thematic analysis’ procedures.
ResultsThe main themes indicate that all groups are concerned about the obesity pandemic and have similar negative beliefs and attitudes toward obese, who are described as being unmotivated, noncompliant and demonstrating a passive coping and a lack of understanding about the gravity of their condition. General practitioners, due to patients’ lack of compliance and success, feel frustrated, have lower expectations of efficacy and are negative about their role in the treatment, giving up in most of the cases. Nutritionists and nurses demonstrate an active role, are persistent, perceived themselves as being able to positively modify obese motivation and believe in the success of the interventions, which, however, are described as a constant struggle between them and the patients. It seems to exist communication problems between these three groups.
DiscussionIn order to achieve success, healthcare providers should be aware of how their beliefs and attitudes can influence their practices. Education and training concerning treatment options and communications skills should be improved as well as a bigger emphasis should be put on a multidisciplinary approach to obesity.
A obesidade, considerada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) uma das epidemias do século XXI, é uma doença crónica cuja prevalência tem aumentado de forma dramática. Nas projeções efetuadas, em 2008, pela OMS, cerca de 35% dos adultos, acima dos 20 anos de idade, possuía excesso de peso e 11% eram obesos1. Em Portugal, os números são igualmente elevados, estimando‐se que mais de metade da população portuguesa apresente problemas de excesso de peso2,3. Nomeadamente, em 2008/2009, dos 9.447 participantes de um estudo realizado por Sardinha et al. (2012), 66,6% dos homens e 57,9% das mulheres, entre os 18 e os 64 anos de idade, tinham excesso de peso, dos quais 19,9%, em ambos os grupos, apresentavam obesidade.
Os cuidados de saúde primários, com responsabilidades ao nível da promoção da saúde individual e comunitária, prevenção das doenças e diagnóstico e tratamento das mesmas, assumem um papel de destaque no combate à obesidade. Neste contexto, os profissionais de saúde (PS) surgem como agentes primordiais na promoção da mudança comportamental e da adoção de um estilo de vida saudável4–6. No entanto, estudos recentes indicam que os médicos de clínica geral e familiar (MCGF), enfermeiros e nutricionistas não parecem estar a empenhar‐se devidamente nesta tarefa, apresentando uma ação inconsistente e descoordenada, assim como crenças e atitudes negativas face à obesidade e aos obesos, que parecem estar a influenciar negativamente as suas práticas. No entanto, não deixam de considerar a obesidade um problema grave de saúde pública e uma doença cuja intervenção faz parte das suas responsabilidades e domínio de ação7–10.
A vasta literatura relativa às crenças, atitudes e práticas dos MCGF é unânime quanto à existência de conhecimentos e de competências inadequados face à obesidade e seu tratamento, e de crenças ambivalentes e de atitudes negativas face aos obesos, que são descritos como desmotivados, preguiçosos e com ausência de autocontrolo e de responsabilidade face ao tratamento. Estes profissionais consideram que lidar com o problema da obesidade não é fácil, manifestam baixas expectativas de resultados quanto à perda de peso e sentem‐se, muitas vezes, frustrados e pouco sucedidos, perspetivando o seu papel no tratamento da obesidade de uma forma negativa11–13.
Relativamente aos nutricionistas e enfermeiros, a literatura é bastante escassa e incoerente quanto às perceções e práticas destes grupos no que diz respeito à obesidade. Todavia, a literatura existente aponta para a manifestação de crenças e atitudes negativas face aos obesos e à sua capacidade para perder peso9,10,14,15, não existindo ainda evidência clara quanto à forma como este pessimismo influencia as práticas destes profissionais. Os nutricionistas tendem a considerar‐se o grupo mais influente e melhor preparado para lidar com a obesidade e perda de peso, desejando, ainda assim, obter mais formação e competências, principalmente em termos de estratégias motivacionais9,14. Contrariamente, os enfermeiros admitem falta de conhecimentos e competências adequadas, embora não considerem que exista relação com os resultados das suas intervenções, visto percecionarem‐se como capazes de motivar o doente para a mudança do estilo de vida e perspetivarem o tratamento como sendo da responsabilidade do obeso15,16.
Há 2 limitações principais que parecem transversais aos estudos realizados no âmbito desta temática: por um lado, a escassez de estudos comparativos entre MCGF, nutricionistas e enfermeiros e, pelo outro, a primazia de estudos quantitativos considerados redutores quanto à compreensão da visão dos PS face à obesidade, e à forma como percecionam o seu papel no tratamento desta doença16,17. Em Portugal, não existem registos de estudos neste âmbito e, perante o aumento do número de obesos, torna‐se peremptório perceber como é que os PS estão a lidar com este fenómeno e quais as suas implicações para a prática. Com o intuito de responder às limitações identificadas na literatura, desenvolvemos uma investigação qualitativa na qual, através da realização de entrevistas semiestruturadas, pretendemos compreender, de forma sistemática, as crenças, atitudes e práticas de MCGF, nutricionistas e enfermeiros relativamente à obesidade e aos obesos, em contexto de cuidados de saúde primários.
MétodoParticipantes e recolha de dadosApós a aprovação da Comissão Nacional de Proteção de Dados e da Comissão de Ética da ARS Norte, I.P., realizámos entrevistas semiestruturadas a MCGF, nutricionistas e enfermeiros da zona norte do país, entre janeiro de 2011 e outubro de 2013. Tendo por base os pressupostos do método de recolha e análise de dados escolhido, nomeadamente a análise temática18, constituiu‐se uma amostragem teórica, ou seja, os participantes foram selecionados por apresentarem características relevantes para a compreensão do fenómeno em estudo. Nomeadamente, tinham de possuir especialidade em medicina geral e familiar ou licenciatura em nutrição ou enfermagem; trabalhar numa unidade pública de cuidados de saúde primários (unidade de cuidados de saúde personalizados, unidade de saúde familiar, etc.); e ter, pelo menos, 2 anos de experiência profissional. Todavia, a análise das entrevistas dos nutricionistas apontou para a necessidade de se realizarem entrevistas a profissionais deste grupo que trabalhassem no setor privado, pelo que tivémos que incluir elementos deste contexto neste grupo. Os PS foram contactados através de informantes‐chave, por via telefónica e/ou mediante autorização e colaboração dos coordenadores das instituições de saúde. A constituição de uma amostragem teórica pressupõe também que a recolha e análise de dados se processem de forma simultânea, tendo em vista a procura da variabilidade e/ou aprofundamento dos conceitos emergentes na análise. Assim, após as primeiras entrevistas e consequentes análises, recorreu‐se à estratégia de bola de neve ou seleção de participantes em cadeia, com o intuito de se aceder a mais instituições e PS.
As entrevistas foram realizadas no local de trabalho dos participantes, com uma duração entre 30‐55 minutos. Obtivémos o consentimento informado de todos os participantes, assim como autorização para gravação áudio das entrevistas. Desenvolvemos um guião de entrevista provisório e igual para os 3 grupos (c.f.: tabela 1), o qual continha inicialmente 9 questões de caráter aberto, que foram sendo reformuladas à medida que a investigação e a análise de dados foi ocorrendo. Este processo repetiu‐se até alcançarmos a saturação teórica dos dados, isto é, até novos dados deixarem de emergir das análises efetuadas. No final de cada entrevista, foi pedido aos PS que respondessem a um breve questionário para recolha de informação sociodemográfica.
Guião de entrevista
1. O que é que pensa acerca da obesidade? |
2. Como descreve a sua experiência com os obesos? |
3. Como descreve os doentes obesos? |
4. Como costuma abordar a questão do excesso de peso com os obesos? |
5. Como costuma intervir junto destes doentes? |
6. Como se sente ao lidar com estes doentes? |
7. O que acha que o doente espera de si enquanto profissional de saúde? |
8. Qual é a sua opinião acerca dos tratamentos disponíveis para a obesidade? |
9. O que é que pensa sobre a formação existente em Portugal, para profissionais de saúde, acerca da obesidade? |
Todas as entrevistas foram transcritas verbatim pelo mesmo investigador, tendo‐se eliminado quaisquer dados de identificação dos participantes, salvaguardando‐se o seu anonimato e a confidencialidade dos dados. As entrevistas foram analisadas segundo a ordem com que foram realizadas e com recurso ao software NVivo10.
Para a análise dos dados, a escolha recaíu sobre o método da análise temática18, por permitir obter, de forma rigorosa e sistemática, uma compreensão aprofundada e alargada da perceção e do significado que os PS atribuem à obesidade, aos obesos e ao seu papel na gestão e tratamento desta doença. A análise temática é um método de descrição, análise e identificação de padrões (ou temas), que se processa através do desenvolvimento de um sistema de codificação dos dados, que procura encontrar temas centrais, relacionando‐os e hierarquizando‐os desde um nível mais descritivo até um nível mais interpretativo18,19. Desta forma, adotando a ideia como unidade de análise, um dos investigadores iniciou a análise com a decomposição do conteúdo das primeiras entrevistas, desenvolvendo um sistema de codificação que foi, posteriormente, discutido e refinado com os restantes membros da equipa. Este sistema inicial serviu de base para as análises seguintes, o qual, com recurso ao método de comparação constante, foi sendo reformulado à medida que a recolha e análise dos dados foram progredindo, simultaneamente, e novos temas foram emergindo. A cofidicação e agrupamento dos dados, e a identificação de temas e de relações entre estes, foram evoluindo para um sistema cada vez mais hierarquizado e interpretativo, até se atingir a saturação teórica dos dados. Diferenças de interpretação foram sendo discutidas pela equipa, até identificarmos os temas centrais, ou chave, que englobassem e relacionassem todos os dados. As análises e os processos de tomada de decisão foram registados em memorandos ao longo de toda a investigação.
ResultadosCaracterísticas dos participantesA amostra foi constituída por 44 PS, nomeadamente 16 MCGF (7 homens e 9 mulheres), 12 enfermeiros (3 homens e 9 mulheres) e 16 nutricionistas (2 homens e 14 mulheres), dos quais 9 trabalhavam no setor público, 6 no setor privado e um em ambos os setores. O conjunto dos 3 grupos de profissionais apresenta uma média de 41,13 (DP=9,60) anos de idade e de 16,38 (DP=7,61) anos de experiência profissional. Vinte e oito profissionais apresentavam peso normal, 13 excesso de peso e 3 obesidade grau I, sendo que a média de índice de massa corporal (IMC) corresponde a 24,12kg/m2 (DP=1,48). Do grupo dos homens, 2 já tiveram problemas de peso no passado, 2 afirmaram ter problemas de peso no presente e 6 não consideram ter um peso adequado. Do grupo das mulheres, 12 referiram ter tido problemas de peso no passado, 9 referiram ter problemas de peso atualmente e 23 não consideram ter um peso adequado. Outras características dos PS são descritas na tabela 2.
Características sociodemográficas dos participantes
MCGF | Nutricionistas | Enfermeiros | Total | |
---|---|---|---|---|
Sexo | ||||
Masculino | 7 | 2 | 3 | 12 |
Feminino | 9 | 14 | 9 | 32 |
Total | 16 | 16 | 12 | 44 |
Média de idades (DP) | 51,75 (9,73) | 33,06 (8,44) | 38,58 (9,32) | 41,13 (9,60) |
Mínimo | 32 | 24 | 26 | ‐ |
Máximo | 64 | 57 | 52 | ‐ |
Média de anos de experiência profissional (DP) | 24,25 (10,57) | 9,06 (7,55) | 15,83 (9,28) | 16,38 (7,61) |
Mínimo | 5 | 2 | 4 | ‐ |
Máximo | 34 | 30 | 29 | ‐ |
Média IMC (DP) | 25,55 (3,04) | 22,59 (2,55) | 24,22 (2,67) | 24,12 (1,48) |
Mínimo | 20,83 | 19,81 | 20,20 | ‐ |
Máximo | 30,48 | 29,01 | 30,39 | ‐ |
Obesidade enquanto problema de saúde pública: todos os profissionais encontram‐se preocupados com aquilo que muitos designam por «flagelo da obesidade» e com as consequências que esta doença acarreta, principalmente, em termos físicos, visto aumentarem a gravidade do problema e representarem um aumento de custos com a saúde. Os participantes consideram que, em Portugal, a população geral ainda não está sensibilizada para esta questão, sendo necessárias mais campanhas e iniciativas políticas direcionadas à promoção da saúde. No entanto, mencionam verificar mudanças positivas, transversais a todas as idades e contextos (rural e urbano), princialmente no que diz respeito à prática de exercício físico. Os participantes questionam‐se quanto aos potenciais efeitos que a atual crise económica poderá trazer a longo prazo, não sendo contudo unânimes nas suas opiniões.
Características dos obesos vs. exigências do tratamento: os profissionais descrevem os obesos como doentes fortemente desmotivados para a perda de peso e passivos quanto à realização de mudanças comportamentais; que não assumem a responsabilidade do tratamento e desculpabilizam‐se constantemente, explicando a sua não adesão e os seus fracassos com base em fatores externos (ex.: «… tive um aniversário… é o trabalho… não tenho tempo…»). Todos os participantes referem que os obesos apresentam problemas de autoestima, ansiedade e depressão, que conduzem a uma ingestão emocional, associada à perda de autocontrolo. Todos consideram que os obesos procuram um «milagre», ou algo que os faça perder peso sem realizarem sacrifícios. Os profissionais referem ainda que estes doentes possuem muitos mitos acerca da alimentação e, devido às inúmeras tentativas e procura de ajuda para perda de peso, trazem consigo uma «bagagem informativa» que exige mais conhecimentos e competências do profissional de saúde. A maioria dos entrevistados considera que os obesos, de forma geral, não compreendem a problemática e gravidade da obesidade «porque é uma doença que não dói». Na sequência deste facto, os participantes consideram que a insatisfação corporal surge como o principal motivo para a perda de peso, embora seja o motivo mais comum nos jovens adultos. A partir da meia‐idade, segundo os entrevistados, as motivações surgem associadas ao desenvolvimento de morbilidades.
Todas estas características se opõem àquilo que os profissionais descrevem como sendo as exigências para um tratamento eficaz e bem‐sucedido: possuir elevada motivação, determinação, força de vontade, espírito de sacrifício e autocontrolo, o que se traduz na adoção de um papel ativo por parte do doente, o qual deve estar disposto a desconstruir barreiras (individuais e coletivas), empenhando‐se nas mudanças comportamentais necessárias para a adoção de um estilo de vida saudável.
Barreiras: a desmotivação dos obesos, a falta de tempo na consulta e a ausência de recursos, como a falta de nutricionistas nas instituições de saúde, são as 3 principais barreiras comuns no discurso dos MCGF, nutricionistas e enfermeiros. Estes 2 últimos grupos mencionam ainda dificuldades de articulação e comunicação entre PS, principalmente com os médicos de família, os quais consideram não terem conhecimentos suficientes e não estarem devidamente sensibilizados para a problemática da obesidade.
Exemplos dos discursos quanto às semelhanças dos 3 grupos de profissionais podem ser encontrados na tabela 3.
Semelhanças no discurso dos 3 grupos de profissionais de saúde
MCGF | Enfermeiros | Nutricionistas | |
---|---|---|---|
Obesidade enquanto problema de saúde pública | «A obesidade, atualmente, já é um problema de saúde pública, não é? (…) com repercussões graves ao nível da saúde…» MCGF 3 (57 anos, sexo masculino)«Eu acho que as coisas já começam a mudar um bocadinho. Já se vê mais pessoas a caminhar, já começam a estar mais preocupadas com o que comem… ainda assim, não é suficiente.» MCGF 11 (56 anos, sexo feminino)«As pessoas não estão minimamente sensibilizadas… Ser gordo não dói! Só se lembram quando já têm alguma patologia associada e, mesmo assim, acham que esta não tem nada a ver com o peso.» MCGF 14 (59 anos, sexo feminino) | «Cada vez na consulta temos mais e mais doentes obesos… Então nas crianças, é um flagelo! E os pais não percebem… Também eles são, na maioria, obesos!» Enf 3 (26 anos, sexo feminino)« (…) Imagino que vamos ter uma prevalência muito, muito marcada nos próximos anos, até desta crise porque o pão está caro, é certo, mas é o que eles vão comer! É pão, e é salsichas, e é esse tipo de coisas. É uma pena que não seja sopa, mas a sopa dá trabalho a fazer e para quem tem que comprar os legumes, não é barato (…) É difícil eu dizer às pessoas que devem comer mais peixe, mais isto ou mais aquilo, se a parte económica não lhes permite, não é?» Enf 6 (48 anos, sexo masculino) | «Mas acho que as pessoas não têm noção de que a obesidade é uma doença, de que o excesso de peso lhe pode trazer sérias e graves complicações de saúde e que tem uma elevada taxa de mortalidade e morbilidade associada, não têm noção. Porque ser gordo não dói.» Nut 6 (37 anos, sexo feminino) |
Características dos obesos vs. exigências do tratamento | « (…) A maior parte não liga… Não se preocupa… Não valorizam absolutamente nada!» MCGF 3 (57 anos, sexo masculino), 1, 4, 13 (50, 57, 56 anos, respetivamente; sexo feminino)« (…) Eles não querem deixar de comer aquilo de que gostam, nem fazer sacrifícios. (…) As perspetivas deles são sempre perder peso rapidamente, sem grandes sacrifícios (risos)… Não querem abdicar daquilo que lhes sabe bem e daquilo que gostam em função da redução do peso.» MCGF 4 (57 anos, sexo feminino)«Se não houver força interior, capacidade motivacional suficiente… Não se vai a lado nenhum.» MCGF 12 (57 anos, sexo masculino) | « (…) Eles dizem que fazem, mas na maioria são muito poucos os que fazem.» Enf 2 (39 anos, sexo feminino), 6 (48 anos, sexo masculino)«Mas em termos de motivação, realmente, e de abertura para mudar hábitos, e para fazer algo que implique sacrifícios também da parte deles, de uma forma geral, não estão muito motivados para isso, não. (risos) Eles gostariam era de uma solução milagrosa, que geralmente é isso que vêm à procura! De que não implique muitas alterações nos seus estilos de vida e naquilo que estão habituados a fazer.» Enf 10 (30 anos, sexo feminino)«Já se sabe que é preciso força de vontade e motivação para se mudar… Não é fácil, mas isso não dá.» Enf 4 (48 anos, sexo feminino) | «Ainda há muita gente que vem atrás da pilulazinha milagrosa.» Nut 1 (42 anos, sexo feminino)«Há alguns que só sabem apresentar desculpas! Não estão minimamente motivados!» Nut 2 (30 anos, sexo feminino)«As pessoas acham que só por comerem todos os dias que já sabem muito sobre nutrição!» Nut 3 (41 anos, sexo feminino)«É muito evidente em alguns casos a relação que estas pessoas têm com a comida… Nem tentam negar! Há aquela tensão, aquela ansiedade que é claramente resolvida e vingada na comida» Nut 9 (24 anos, sexo feminino) |
Barreiras | « (…) Nós temos a possibilidade de ter uma nutricionista aqui no centro … que é… perfeitamente insuficiente…» MCGF 12 (57 anos, sexo masculino)«A nível do serviço público há muito pouco, há muito poucos nutricionistas…» MCGF 3 (57 anos, sexo masculino) | «Para nós, às vezes, também é complicado porque nem todos os médicos de família estão ainda sensibilizados para estas questões e por isso, às vezes, temos de ser nós a fazer grande parte da abordagem com aquela pessoa.» Enf 2 (39 anos, sexo feminino) | «Mas para alguns [médicos] continua a não ser uma doença… E isso reflete‐se em termos de encaminhamento. Há médicos muito mais preocupados, mais sensibilizados a encaminharem o paciente para a consulta de nutrição e outros que não… Que nem sequer se preocupam com essa situação.» Nut 4 (24 anos, sexo feminino) |
Práticas: o discurso dos MCGF aponta para alguma relutância relativamente a abordarem diretamente a problemática do excesso de peso, preferindo que seja o doente a introduzir a questão; demonstram preocupação quando o doente já apresenta um IMC elevado mas, tendencialmente, abordam a questão do excesso de peso no contexto de comorbilidades como a diabetes ou a hipertensão, fazendo‐o com cuidado relativamente à linguagem que utilizam, pois consideram ser um tema sensível para os doentes e que pode ferir suscetibilidades. Pequenos aumentos de peso tendem a ser desvalorizados, mas pequenas perdas são reforçadas positivamente. As recomendações para mudanças de estilo de vida prendem‐se com a prática regular de exercício físico (ex.: caminhadas diárias) e a diminuição da ingestão alimentar ou eliminação de alimentos hipercalóricos, mas poucos são aqueles que fornecem explicações e materiais estruturados (ex.: planos alimentares e/ou diários de alimentação) quanto à forma de se proceder a essas alterações. Os discursos indicam que estes profissionais são contra a prescrição de fármacos que contribuam para a redução do peso, e apenas 2 participantes afirmaram recorrer ao uso de suplementos alimentares, embora esporadicamente. Os encaminhamentos para consultas de nutrição são, muitas vezes, feitos com base em avaliações subjetivas quanto à gravidade do excesso de peso e à motivação do doente ou quando a pessoa apresenta tentativas fracassadas de perda peso. Pelo contrário, encaminhamentos para consultas de obesidade são realizados sempre que possível e quando o doente apresenta um IMC igual ou superior a 40kg/m2, com história de insucessos repetidos.
Os enfermeiros referem não sentir dificuldades ao abordar o doente quanto ao excesso de peso: apesar de também referirem cuidados na linguagem, consideram agir de forma natural pois, na maioria dos casos, «as pessoas sabem que têm excesso de peso… sabem que estão gordas…”. Contrariamente aos MCGF, demonstram‐se preocupados com pequenos aumentos de peso, privilegiando uma abordagem preventiva que consideram ser mais facilitadora de mudanças do estilo de vida, já que «realizar pequenas alterações é mais fácil do que modificar hábitos já fortemente enraizados».
Estes profissionais promovem a educação e motivação do doente com recurso a flyers, apresentação de imagens e uso de metáforas para explicar a problemática e gravidade do excesso de peso e obesidade, e desconstruir mitos e expectativas irrealistas. Os enfermeiros entrevistados referem ser de extrema importância o envolvimento dos familiares no processo de mudança de estilo de vida.
Os nutricionistas também mencionam ter cuidados na linguagem. Contudo, dizem estar à vontade para abordar o excesso de peso, visto que o doente que recorre a esta consulta «já sabe para o que veio». Estes profissionais preocupam‐se em avaliar expectativas quanto à forma e quantidade de perda de peso esperadas pelo doente; procuram perceber a história de evolução do peso e o contexto financeiro, laboral e familiar do indivíduo. Na sua prática, os nutricionistas recorrem a flyers informativos, imagens com a roda dos alimentos, diários alimentares para educarem e motivarem e estabelecem pequenos objetivos de perda de peso, mas somente após os primeiros registos de mudanças comportamentais. O uso de planos alimentares varia de acordo com as características e necessidades do doente, mas, tendencialmente, recorrem a este instrumento na maioria dos casos, adequando‐o ao contexto e dia‐a‐dia de cada doente. A relação que o indivíduo apresenta com a comida, a motivação para a mudança e o estado emocional do doente surgem como pontos essenciais para a prossecução da intervenção dos nutricionistas: ao constatarem a presença de perturbações, sugerem ao médico de família o encaminhamento para apoio psicológico, aquando da existência deste serviço nas instituições de saúde. Caso contrário, aconselham o doente a procurar ajuda externa. Contudo, estes profissionais reconhecem que a sugestão deste tipo de apoio representa um assunto sensível, que poderá comprometer a relação terapêutica. Salientam, assim, a necessidade de se efetuar uma abordagem cuidada e delicada, por forma a evitar prejuízos na relação profissional/doente.
Conhecimentos e competências: os MCGF, independentemente da idade ou dos anos de experiência profissional, referem não ter recebido formação académica específica sobre a obesidade, e mencionam que as suas competências foram sendo adquiridas através da prática e de formações adicionais e/ou leituras que realizaram voluntariamente. Contudo, referem sentir‐se preparados para efetuarem intervenções neste domínio, pois enquadram a obesidade no conjunto de doenças crónicas, como a diabetes ou a hipertensão, para as quais receberam formação adequada. Apenas 2 participantes se mostraram disponíveis para procurar esclarecimentos junto de nutricionistas. O grupo dos enfermeiros assemelha‐se aos MCGF, contudo, mostra‐se fortemente disponível e interessado em colaborar com nutricionistas. Aqueles que já realizaram trabalhos no âmbito da saúde escolar apresentam mais conhecimentos e competências para lidar com a obesidade infantil e nos adultos. Os nutricionistas elogiam a formação académica recebida, que consideram ser adequada e suficiente para lidar com as questões da perda de peso. No entanto, desejam adquirir novos conhecimentos e competências associadas à utilização de estratégias motivacionais.
Perceção do processo de mudança: os MCGF, na sua maioria, não acreditam na capacidade dos obesos em efetuar mudanças positivas no seu estilo de vida. Na sua intervenção persistem até certo ponto, mas os sucessivos fracassos dos obesos levam‐nos a sentirem‐se frustrados e impotentes, e a considerarem a intervenção uma «perda de tempo», o que se traduz numa falta de investimento no doente ou, quando possível, no encaminhamento do mesmo para o serviço de nutrição. Contrariamente, os enfermeiros e os nutricionistas, apesar de também se sentirem frustrados com os insucessos dos obesos, acreditam que a persistência das suas intervenções conduz a resultados positivos, mesmo que em pequenas proporções. Estes 2 grupos concebem a mudança como um contínumm, em que o obeso, que no ínicio do processo se encontra num pólo negativo e, portanto, está desmotivado e não adere, consegue evoluir favoravelmente no sentido mais positivo, motivando‐se e realizando as alterações comportamentais necessárias para a perda de peso e a adoção de um estilo de vida saudável. No entanto, este processo evolutivo é descrito como uma luta constante com o doente, na qual é repetidamente necessário negociar expectativas, objetivos e alterações a realizar, por forma a manter ou aumentar a motivação do obeso. Esta perceção também ocorre nos nutricionistas que trabalham no setor privado; contudo, estes mencionam que o nível de motivação e adesão dos obesos é um pouco mais elevado, o que «facilita» as negociações e aumenta as probabilidades de sucesso. Para alguns nutricionistas, os fracassos são percebidos como desafios, que os obrigam a analisar os erros, a procurar novas estratégias e novas abordagens, acreditando sempre nas suas competências e no sucesso como algo passível de ser alcançado. Salienta‐se que, dos nutricionistas entrevistados, 4 (2 no setor privado e 2 no setor público) se opõem a esta forma de trabalho, aconselhando o obeso a abandonar a consulta quando observam falta de adesão.
Papel percebido: apesar de todos os profissionais colocarem a responsabilidade do tratamento no obeso – «Eu não posso fazer as mudanças por ele! Ele é que tem que se esforçar por modificar os seus hábitos» –, os MCGF tendem a adotar um papel passivo, perspetivando‐se como orientadores externos no processo de mudança comportamental, sentindo, portanto,que nada podem fazer perante a não adesão do doente. Os nutricionistas e os enfermeiros tendem a assumir um papel ativo ao acreditarem no sucesso das suas intervenções, percecionando‐se como educadores e agentes capazes de potenciar e promover alterações positivas no estilo de vida dos obesos, possuindo um papel decisivo na evolução positiva no contínumm da mudança descrito anteriormente.
Esta discrepância de papéis parece contribuir para dificuldades de articulação e comunicação com os médicos de família, os quais, na perspetiva dos nutricionistas e enfermeiros, não estão devidamente sensibilizados para a problemática da obesidade.
Exemplos das diferenças nos discursos dos 3 grupos de profissionais podem ser encontrados na tabela 4.
Diferenças no discurso dos 3 grupos de profissionais de saúde
MCGF | Enfermeiros | Nutricionistas | |
---|---|---|---|
Práticas | «Eu vou avaliando e chamando a atenção à pessoa. Se vir então que ela, de consulta para consulta, continua a aumentar de peso, então aí penso em enviar para nutrição.» MCGF 2 (57 anos, sexo masculino)«(…) Sempre que há, principalmente complicações cardiovasculares, nós tentamos que esses sejam vistos pela nutricionista para que realmente possam seguir um plano alimentar mais equilibrado… Mas normalmente faço eu uma primeira abordagem» MCGF 7 (35 anos, sexo feminino) | «Eu até uso muito o computador e coloco imagens de artérias obstruídas e recorro muito a flyers e imagens, porque acho que resulta muito bem.» Enf 8 (26 anos, sexo masculino)«Uma coisa que nós aqui temos muita atenção é o controlo do peso, no sentido de evitar aumentos. Damos muita importância à prevenção e é por isso que procuramos evitar aumentos e tentar incluir o maior número de elementos da família, para que todos possam aprender e manter ou mudar.» Enf 11 (45 anos, sexo feminino) | «Lamento que os doentes que nos cheguem já venham com peso tão elevado… Perde‐se muito do caráter preventivo que poderíamos ter e, assim, é mais difícil para nós e para os doentes.» Nut 2 (30 anos, sexo feminino)«Eu uso sempre plano. É o meu instrumento de trabalho, é um guia para a pessoa.» Nut 4 (24 anos, sexo feminino)«Comecei a perceber que nem todas as pessoas se davam bem com planos. Por isso, nem sempre uso. Já os diários esses são obrigatórios!» Nut 7 (33 anos, sexo feminino) |
Conhecimentos e competências | « (…) Falava‐se, fala‐se disso mas … Em termos práticos, não existe (…) No meu tempo não havia nada. Porque era assunto que praticamente passava despercebido.» MCGF 2 (57 anos, sexo feminino)« (…) Eu não tive formação nenhuma nessa área. Portanto, não fazia parte dos nossos currículos na altura em que eu acabei o curso… Não fazia parte.» MCGF 4 (57 anos, sexo feminino)« (…) Eu, pessoalmente, sinto alguma falta dessa formação (…) Em termos, por exemplo, académicos, durante a licenciatura… Quando eu tirei o curso, era um assunto que era assim abordado um bocadinho por alto, não havia nada específico.» MCGF 8 (33 anos, sexo feminino) | « (…) Para mim é um problemas que se tem que abordar com mais, hum… Digamos, com mais… De uma forma mais visível para ter um bom resultado depois, não é?» Enf 2 (39 anos, sexo feminino)« (…) É uma área em que infelizmente não há tanta formação como deveria haver. Porque eu pessoalmente sinto alguma falta dessa formação… E sempre que tenho oportunidade e se proporciona gosto muito de tentar…» Enf 3 (26 anos, sexo feminino)« (…) Nós felizmente aqui podemos contar com a ajuda preciosa da nossa nutricionista e é com ela que vamos aprendendo imenso, e tirando algumas dúvidas.» Enf 5 (52 anos, sexo masculino) | «Nós temos uma formação excelente! Em termos académicos saímos muito bem preparados… Mas ainda há muito a fazer…» Nut 3 (41 anos, sexo feminino)«Eu acho que a formação é muito boa… Acho é que peca por não abordar áreas fora da nutrição… Seria importante aprendermos mais sobre, por exemplo, psicologia e formas de chegarmos aos doentes, e de os motivarmos melhor.» Nut 8 (29 anos, sexo feminino)«Acho que falta é ensinar muita coisa aos médicos e enfermeiros, para que eles tenham mais noção do nosso trabalho, acreditem no que podemos fazer e começem a fazer encaminhamentos mais preventivos. » Nut 11 (30 anos, sexo feminino) |
Perceção do processo de mudança | «É uma perda de tempo.» MCGF 3 (57 anos, sexo masculino)«Eles não ouvem nada do que dizemos… É claro que há casos de sucesso… Mas é raro.» MCGF 7 (35 anos, sexo feminino) | «É difícil, mas nós tentamos dali, tentamos dacolá e devagarinho a mensagem começa a entrar e os resultados começam a surgir. É difícil, leva tempo, mas consegue‐se.» Enf 2 (39 anos, sexo feminino)«Temos que ser capazes de motivar o doente (…) Mesmo naqueles casos em que a pessoa desvaloriza completamente o seu problema, ou nem sequer percebe que se tem uma diabetes ou HTA é porque tem excesso de peso.» Enf 10 (30 anos, sexo feminino) | « (…) Parece que estou num ringue, numa luta constante… Tenho que negociar constantemente estratégias com aquela pessoa até ela conseguir e eu lhe mostrar que, de facto, é possível.» Nut 2 (30 anos, sexo feminino)«Há pessoas que vêm contrariadas e que mudam de opinião… A ideia que têm do nutricionista é que ele os vai pôr a passar fome. As tais crenças. E quando saem dizem ‘Ah, afinal não vai ser assim tão difícil.’ Adequo as estratégias às pessoas e assim elas até aderem e vão mudando! … Consigo cativá‐los e, e, e fidelizá‐los ao plano o mais possível.» Nut 10 (34 anos, sexo feminino) |
Papel percebido | «Honestamente, sinto que não adianta muito, não adianta muito.» MCGF 13 (56 anos, sexo feminino)«Não posso fazer nada por eles, se tento e tento e eles não mudam.» MCGF 11 (56 anos, sexo feminino)«O nosso papel é motivar e ajudar a pessoa a efetuar as mudanças […] mas, sinceramente, eu não acredito… É muito frustrante.» MCGF 7 (35 anos, sexo feminino)«Eu não faço milagres, não sou eu que vou fazer as mudanças por ele.» MCGF 10 (64 anos, sexo masculino) | «Nós somos educadores, mas, acima de tudo, um suporte… Um apoio para aquela pessoa e por isso temos que insistir. Explicar a importância… Levá‐la a modificar o seu estilo de vida.» Enf 4 (48 anos, sexo feminino)«É claro que a mudança depende dela [da pessoa obesa] mas, em certa medida, também depende de nós e do nosso investimento.» Enf 5 (52 anos, sexo masculino) | « (…) Eu estou aqui a tentar, estou aqui a lutar, estou aqui a tentar fazer tudo por tudo, e esta senhora ou este senhor…» Nut 2 (30 anos, sexo feminino)« (…) Mas eu acho que quem é o ator principal é o utente. Ele tem que perceber que nós estamos aqui para ajudar e apoiar, ensinar. Nós somos o despoletador da corrida, somos quem 2… Mas a luta é dos 2, mas mais dele que nossa.» Nut 5 (36 anos, sexo feminino)«Eu sou uma gestora do tempo das pessoas. Tento mediar, chegar a consensos, para facilitar a adesão e ver a pessoa a obter resultados.» Nut 11 (30 anos, sexo feminino) |
Reconhecendo que o conhecimento produzido depende grandemente das metodologias, técnicas e fundamentação teórica inerente, considerou‐se que a metodologia qualitativa seria a mais indicada para a execução deste estudo, por permitir obter, de forma rigorosa e sistemática, uma compreensão aprofundada e alargada das perceções e dos significados atribuídos pelos PS à obesidade, o que dificilmente seria alcançado através de outros métodos de investigação20. A entrevista semiestruturada, pela sua versatilidade e facilidade de adaptação às características do participante e das circunstâncias do contexto, emergiu como o instrumento de eleição para a obtenção, de forma aprofundada, de grandes quantidades de informação, possibilitando, assim, o desenvolvimento de novas ideias e de teorias acerca do fenómeno em observação20. Desta forma, o nosso estudo inova por explorar e comparar as crenças, atitudes e práticas de 3 grupos diferentes de PS diretamente implicados no tratamento da obesidade, nomeadamente, MCGF, enfermeiros e nutricionistas, em contexto dos cuidados de saúde primários, tendo‐se verificado a existência de semelhanças e diferenças nos discursos dos 3 grupos de participantes.
À semelhança do que se verifica em outros estudos, também os MCGF, enfermeiros e nutricionistas portugueses não só consideram a obesidade um grave problema de saúde pública, como também apresentam crenças e atitudes negativas face à obesidade e aos obesos, salientando‐se o pessimismo manifestado quanto à falta de adesão dos obesos, à sua desmotivação para efetuarem mudanças no estilo de vida e, por sua vez, à incapacidade destes doentes em perder peso9–11. Tal como é referido por alguns autores, denota‐se um discurso de responsabilização dos obesos, o qual parece advir das crenças manifestadas quanto às causas da obesidade. Ou seja, ao atribuírem aos obesos a responsabilidade pelo desenvolvimento da sua condição, consideram, de igual modo, que cabe a estes a solução do problema e a realização de mudanças do estilo de vida para a perda de peso, destacando a necessidade destes doentes assumirem um papel ativo no tratamento da sua obesidade12,16,21. No entanto, apesar da semelhança de crenças e atitudes entre os 3 grupos de profissionais face aos obesos, verificam‐se diferenças na forma como estas influenciam as práticas destes técnicos e a forma como percecionam o seu papel no tratamento desta doença.
Alguns autores têm procurado explicar o comportamento dos PS tendo por base as dimensões de alguns dos modelos de saúde, como, por exemplo, o modelo de crenças de saúde de Beker e Rosenstock ou a teoria do comportamento planeado de Ajzen15,22. No que diz respeito aos MCGF, a atribuição da responsabilidade, em termos de causas e resolução do problema, aos obesos e a crença na incapacidade destes doentes modificarem o seu comportamento conduzem à perceção de ausência de controlo sobre os resultados das intervenções efetuadas. Esta perceção associada às crenças e atitudes negativas face aos obesos e à perceção de baixa eficácia, a qual é reforçada pela ausência de sucesso das intervenções, fazem com que estes profissionais demonstrem relutância em abordar a questão da obesidade e em investir esforços no tratamento da mesma. No entanto, os MCGF parecem enfrentar um dilema ético: se por um lado, os fracassos repetidos e a falta de adesão dos obesos contribuem para o desenvolvimento de baixas expectativas de sucesso e de eficácia e de sentimentos de frustração e de impotência, que conduzem a uma vontade de desistir; pelo outro, a perceção da intervenção na obesidade como parte integrante das suas funções, compele‐os a atuar, mesmo que seja «uma perda de tempo». À semelhança dos resultados do estudo de Sonntag et al.12, em que os MCGF adotam um papel passivo na abordagem da obesidade, percecionando‐se como meros orientadores no apoio à perda de peso, também os participantes do nosso estudo tendem a adotar a mesma postura quanto ao seu papel na gestão e tratamento da obesidade. Nomeadamente, a resignação surge como uma forma de resolução deste conflito, na qual estes profissionais fornecem informações gerais e vagas acerca da perda de peso – que se revelam muitas vezes ineficazes10 – mas não investem os devidos esforços para incentivarem os doentes a efeturarem mudanças no seu estilo de vida. Outras explicações podem também contribuir para a compreensão do discurso e resignação dos médicos de família. O aumento do número de obesos, a perceção da ausência de manutenção a longo prazo do peso perdido e a ausência de conhecimentos e competências adequadas para lidar com a problemática da obesidade, parecem contribuir para a perceção da intervenção como algo difícil de realizar e parece reforçar as atitudes negativas destes profissionais. Note‐se que estudos indicam que quanto maiores forem os conhecimentos, maiores são as crenças no sucesso das intervenções, assim como se verificam atitudes mais positivas face aos obesos12,23,24. De igual modo, a formação destes profissionais, caracterizada pelo predomínio do modelo biomédico, não se coaduna com a intervenção em doenças de cariz comportamental, como é o caso da obesidade, e contribui para a adoção de uma prática mais curativa do que preventiva23,25,26. O focus na obesidade, principalmente aquando do desenvolvimento de morbilidades, pode dever‐se à maior preparação e experiência no domínio da cura e perceção de poucas competências quanto à prevenção22,27. Estes fatores traduzem‐se numa perda de oportunidades de intervenção particularmente preocupante, perante a existência de estudos que demonstram que os obesos tendem a valorizar mais e a sentirem‐se mais motivados para alterar os seus hábitos quando aconselhados pelo seu médico de família do que por outro profissional de saúde28,29.
Relativamente aos enfermeiros e nutricionistas, apesar de também descreverem negativamente os obesos, de colocarem a ênfase do tratamento nestes doentes e de considerarem a sua falta de motivação e adesão como umas das principais barreiras à intervenção nesta problemática, persistem e manifestam crenças positivas quanto ao alcance de resultados sucedidos, o que se traduz na adoção de um papel ativo e de compromisso no apoio à modificação comportamental. Utilizando também nestes profissionais os modelos de saúde, parece‐nos que uma das diferenças entre estes 2 grupos de profissionais e os médicos de família reside na perceção de eficácia: à semelhança de resultados de outros estudos, os enfermeiros e nutricionistas entrevistados consideram‐se competentes e eficazes quanto ao tratamento da obesidade, o que contribui para crenças e expectativas de resultados mais positivas, as quais são reforçadas por um maior número de experiência de sucessos, principalmente no caso dos nutricionistas. Possuir mais conhecimentos na área da alimentação, como no caso dos enfermeiros ligados à saúde escolar, ou dos nutricionistas que se consideram líderes neste domínio, ter mais tempo na consulta para abordar a questão da obesidade, assim como a adoção de uma abordagem centrada no paciente, com avaliação do contexto biopsicossocial do doente e envolvimento da família no tratamento, poderão também explicar as diferenças encontradas entre estes 2 grupos e os médicos de família9,15.
No entanto, verificam‐se incongruências no discurso dos enfermeiros e nutricionistas, o que corrobora as ambivalências encontradas na literatura. Nomeadamente, apesar destes técnicos se sentirem competentes e eficazes, de adotarem um papel ativo e de acreditarem no sucesso das suas intervenções, manifestam crenças e expectativas negativas quanto aos resultados obtidos e à capacidade dos obesos serem bem‐sucedidos. Esta discrepância parece advir do facto de estes profissionais atribuírem os fracassos ao comportamento dos obesos, e não às suas características pessoais ou competências profissionais, e de se sentirem impotentes face à incapacidade destes doentes assumirem o papel ativo que lhes é exigido para o alcance do sucesso desejado15,16,27. Este último fator parece igualmente explicar os sentimentos de frustração mencionados por estes 2 grupos, sendo que alguns autores acrescentam também a existência de expectativas de resultados demasiado elevadas perante os esforços e investimentos desenvolvidos16. No caso dos nutricionistas, esta discrepância resulta numa perceção do tratamento da obesidade como uma luta constante. Corroborando os dados de Chapman et al.30, estes técnicos negoceiam objetivos e estratégias com os obesos de modo a estar de acordo com as suas expectativas e crenças, procurando promover a adesão e motivação destes doentes. Esta perceção do tratamento como uma luta parece ser exacerbada pela falta de conhecimentos adequados em termos de estratégias motivacionais, bem como pela ausência de psicólogos nas instituições de saúde que pudessem colaborar não só neste domínio, como também na gestão de perturbações alimentares, de humor e de ansiedade30. De igual modo, os encaminhamentos realizados pelos médicos de família parecem aumentar o desafio e as tarefas dos nutricionistas. Estudos indicam que estes tendem a ser feitos de forma aleatória e subjetiva por parte dos MCGF, ou perante IMC já muito elevados, a existência de morbilidades associadas ou tentativas de perda de peso repetidamente fracassadas. No entanto, a ausência de técnicos desta especialidade nas instituições de saúde e as longas listas de espera parecem explicar o comportamento dos MCGF27,31.
A necessidade de entrevistar nutricionistas no setor privado derivou da procura de diferenças na perceção do processo de intervenção e das funções deste profissional no tratamento da obesidade, uma vez que as características do contexto de trabalho, os recursos disponíveis e a forma de acesso aos doentes são diferentes. Além do mais, para os doentes com mais recursos económicos, este serviço surge como uma alternativa às listas de espera no setor público. No entanto, não se verificaram diferenças nestas dimensões. Salienta‐se apenas a maior disponibilidade quanto à frequência e tempo dispensado para as consultas, e a descrição um pouco mais positiva da motivação dos obesos. Carecem, contudo, estudos que permitam perceber se estes fatores se traduzem em resultados mais eficazes e que motivos o poderão explicar, uma vez que a perceção dos nutricionistas entrevistados não é unânime e os dados na literatura são igualmente controversos30,32.
No que diz respeito aos enfermeiros e à relação com os MCGF, a sua persistência, as crenças de sucesso, a perceção de eficácia e a abordagem de cariz preventivo parecem contribuir para as dificuldades de comunicação e perceção de falta de sensibilidade dos médicos de família. À semelhança dos nossos dados, há estudos que demonstram que os enfermeiros sentem‐se mais à vontade para introduzir o tema do excesso de peso do que os MCGF, embora ambos os grupos de profissionais considerem ser um assunto sensível, que pode ferir a suscetibilidade dos doentes e comprometer a relação terapêutica22. Estes obstáculos contribuem para uma quebra de confiança destes doentes nos membros da equipa assistente, diminuindo as suas probabilidades de procura de ajuda ou de adesão, diminuindo assim as hipóteses de intervenção junto deste grupo7,33,34.
Os dados obtidos com o presente estudo retratam as experiências e vivências de 3 grupos de PS, as quais refletem a complexidade de uma doença que necessita de uma solução igualmente complexa. Por se tratar de um estudo qualitativo realizado na zona norte do país, a generalização dos dados fica comprometida. Todavia, o detalhe fornecido relativamente aos procedimentos utilizados para a realização do estudo permite suplantar este obstáculo, fornecendo rigor e robutez ao mesmo. De igual modo, outro contributo deriva do facto de se ter alcançado a saturação teórica dos dados, conferindo, assim, consistência aos resultados alcançados. No entanto, há tipicidades do contexto português que sugerem a necessidade de uma exploração mais aprofundada. Compreender a perceção e expectativas dos obesos face ao seu médico assistente e restante equipa aquando da procura de ajuda, e qual a satisfação alcançada com a mesma e a comparação com os resultados deste estudo, poderá revelar necessidades de intervenção e ajudar os PS a compreenderem melhor os seus doentes, bem como as suas expectativas face ao atendimento prestado. De igual modo, seria relevante perceber se fatores como o género do PS, a idade, os anos de experiência profissional, bem como o seu peso e imagem corporal, influenciam o investimento e a intervenção no tratamento da obesidade e a adesão destes doentes.
Os cuidados de saúde primários constituem‐se como a primeira porta de acesso para um tratamento eficaz da obesidade. No entanto, a investigação neste contexto reflete uma situação preocupante, na qual a prevenção, o diagnóstico e o tratamento da obesidade não parecem estar a ocorrer de forma adequada, com os PS a identificarem um conjunto de barreiras que não só contribuem para a manutenção dos casos de obesidade, como também reforçam crenças, atitudes e práticas negativas face aos doentes obesos. Para uma maior eficácia no tratamento deste flagelo, torna‐se peremptório o aumento de formação e de treino dos PS neste domínio, alertando‐os para o impacto que as suas crenças poderão exercer nas suas práticas; a implementação de uma abordagem multidisciplinar nos cuidados de saúde primários, que promova a troca de conhecimentos entre PS e a melhoria da comunicação entre os mesmos; e um aumento dos incentivos e uma maior sensibilização dos dirigentes de saúde no sentido de priorizar a obesidade nas iniciativas e medidas a serem desenvolvidas futuramente.
Conflito de interessesOs autores declaram não haver conflito de interesses.