A evolução na especialidade de angiologia e cirurgia vascular foi acompanhada de diferenças na formação durante o internato. O principal objetivo deste estudo foi mostrar as diferentes tendências na formação no internato de angiologia e cirurgia vascular ao longo do tempo, nomeadamente na exposição cirúrgica e atividade científica.
MétodosApós identificação dos médicos que terminaram o internato de angiologia e cirurgia vascular entre janeiro de 2001 e março de 2014, inclusive, na instituição, todos os dados foram colhidos retrospetivamente, através da consulta dos currículos para a prova final do internato. Os resultados foram obtidos através do coeficiente de correlação de Spearman.
ResultadosDe 2001‐2014 concluíram o internato de angiologia e cirurgia vascular na instituição 13 sujeitos, com idade média 35±5,7, sendo 4 sujeitos (31%) do sexo feminino. A exposição média a procedimentos cirúrgicos foi 2.518±310, dos quais 2.026±291 foram procedimentos vasculares. A média de trabalhos científicos apresentados como primeiro autor foi 9,7±5,7 e a média de publicações como primeiro autor foi 4,5±5,9. Apesar da exposição a intervenções cirúrgicas se ter mantido aproximadamente constante, verificou‐se uma marcada variabilidade na proporção de procedimentos endovasculares. Constatou‐se uma marcada correlação entre o número de procedimentos endovasculares e o período de tempo (rho=0,869, p<0,001). Não existiu correlação entre o número de procedimentos ou proporção endovascular no que respeita a idade ou género. Relativamente à atividade científica, a variabilidade também foi grande, tendo‐se verificado igualmente uma associação entre o período de tempo e o número de publicações (rho=0,879, p<0,001) e apresentações (rho=0,753, p<0,001). De igual forma, não se identificou correlação entre a atividade científica e a idade ou sexo.
ConclusãoCom estes resultados pode afirmar‐se que a exposição cirúrgica durante o internato se tem mantido estável, que houve uma evolução da proporção dos procedimentos endovasculares, uma crescente preocupação com a vertente científica na formação e que género ou idade não afetaram exposição cirúrgica, adoção de novas técnicas ou atividade científica.
The constant advances in Angiology and Vascular Surgery specialty has brought to us a great variety in the training during the residency. The main purpose of this study was to show the distinct trends in training during Angiology and Vascular Surgery residency over time, particularly in the field of surgical exposure and scientific activity.
MethodsAfter identifying the physicians who completed the Angiology and Vascular Surgery residency between January 2001 and March 2014 in the institution, a retrospective analysis was performed and all data collected from the final curriculum was reviewed. The results were obtained using the Spearman correlation coefficient.
ResultsFrom 2001 to 2014, 13 subjects concluded Angiology and Vascular Surgery residency in the Institution, with a mean age 35±5.7 and 4 subjects (31%) were female. The average exposure to surgical procedures was 2518±310, which 2026±291 were vascular procedures. The mean of scientific presentations as first author was 9.7±5.7 and the mean of publications as first author was 4.5±5.9. Although surgical exposure has remained approximately constant, there was a marked variability in the proportion of endovascular procedures. It was observed a marked correlation between the number of endovascular procedures and time (rho=0.869, p<0.001). There was no correlation between the number of endovascular procedures in respect to age or gender. Regarding scientific activity, variability was also large, there has also been an association between time and number of publications (rho=0.879, p<0.001) and presentations (rho=0.753, p<0.001). In a similar way, no correlation was found between the scientific activity and age or gender.
ConclusionIn overall the surgical exposure during the residency has remained stable; there was an evolution of the proportion of endovascular procedures, a growing concern with the scientific activity; also the gender or age did not affect surgical exposure and adoption of new technical or scientific activity.
A especialidade de angiologia e cirurgia vascular sofreu uma profunda alteração com a introdução e generalização das técnicas endoluminais. Com a cirurgia endovascular a ocupar uma proporção crescente entre os procedimentos1–3 deduz‐se que esta mudança na abordagem terapêutica da especialidade tenha também repercussões na formação dos internos. Para além disto, os próprios programas de formação do internato de angiologia e cirurgia vascular, bem como a visão do internato, mudaram, havendo uma preocupação crescente pela atividade científica, para além da atividade assistencial4. Esta preocupação e necessidade de uma maior dedicação à atividade científica durante o internato estão implícitas na atual grelha de avaliação final no exame nacional para o grau de especialista5.
Por isto, os autores propõem‐se a fazer um estudo retrospetivo da atividade realizada durante o internato nos últimos 15 anos na instituição, com o objetivo de mostrar as tendências na formação durante o internato complementar de angiologia e cirurgia vascular ao longo do tempo, nomeadamente quanto à exposição a procedimentos cirúrgicos e atividade científica.
Materiais e métodosApós identificação dos médicos que terminaram o Internato Complementar de Angiologia e Cirurgia Vascular entre janeiro de 2001 e março de 2014, inclusive, no Hospital de Santa Marta, os currículos submetidos para realização do exame nacional para o grau de especialista foram consultados. A consulta e a colheita de dados foram realizadas após aprovação da Direção de Serviço.
Foi criada uma base de dados onde foram introduzidos dados dos diferentes currículos, nomeadamente os procedimentos realizados dos principais grupos de patologias vasculares (doença cerebrovascular, doença arterial obstrutiva periférica [DAOP] aorto‐ilíaca e infrainguinal, aneurismas aorto‐ilíacos [AAA] e periféricos, acessos vasculares, traumatismos vasculares e doença venosa crónica), sendo diferenciados em cirurgia convencional e endovascular. A classificação dos procedimentos em convencional e endovascular baseou‐se no European Board of Vascular Surgery (EBVS)6:
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Um procedimento vascular via cirurgia convencional é aquele que requer a exposição cirúrgica de uma ou mais artérias e/ou veias para a correção de doenças arteriais/venosas, reparação de lesões arteriais/venosas e tratamento de outras doenças que exigem a reconstrução arterial e/ou venosa.
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Um procedimento via endovascular é aquele em que se utilizam fios guia e/ou cateteres em uma ou mais artérias ou veias, guiados por fluoroscopia, para os mesmos fins atrás referidos.
Todos os procedimentos foram diferenciados, quanto à realização, como cirurgião principal ou cirurgião ajudante.
Os procedimentos realizados como cirurgião principal foram ainda divididos em básicos, intermédios e avançados relativamente à diferenciação técnica exigida ao cirurgião, tendo como base a classificação do EBVS6 (tabela 1). Todos os procedimentos endovasculares por DAOP foram considerados como intermédios devido à dificuldade em determinar em cada procedimento o tipo de lesão (estenose vs. oclusão). As arteriografias diagnósticas, apesar de classificadas no EBVS como um procedimento endovascular de grau básico, foram excluídas da classificação no estudo, pois não são consideradas como intervenções cirúrgicas.
Classificação dos procedimentos quanto ao grau de diferenciação da técnica cirúrgica
Grau de diferenciação técnica | Cirurgia convencional | Procedimentos endovasculares |
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Básico | Tromboembolectomia, cirurgia de varizes, amputações | Colocação de filtro na veia cava inferior |
Intermédio | Pontagem, interposição e/ou endarterectomia do setor iliofemoropoplíteo, construção de acessos vasculares | Angioplastia com ou sem stent do setor íliofemoropoplíteodistal, ablação endovenosa |
Avançado | Pontagem, interposição e/ou endarterectomia do setor aortoilíaco, pontagens femorodistais, traumatismos vasculares, endarterectomia carotídea. | Angioplastia com stent da carótida, EndoVascular Aneurysm Repair (EVAR) e Thoracic EndoVascular Aneurysm Repair (TEVAR) |
Para além dos procedimentos, foi consultada a atividade científica realizada durante o internato, incluindo resumos apresentados em reuniões ou congressos e publicações como primeiro e coautor.
Os endpoints deste estudo foram: número total de intervenções cirúrgicas, número de procedimentos endovasculares, diferenciação da atividade como cirurgião principal, número de procedimentos para correção (convencional vs. endovascular) de AAA e atividade científica (publicações e comunicações) realizada.
Análise estatísticaForam apresentados números absolutos dos endpoints (N) ou média +− desvio padrão em anos com mais do que um candidato. Os totais foram expressos como média +/− desvio padrão. A correlação entre os endpoints e o ano de conclusão do internato complementar foi testada usando o coeficiente de correlação de Spearman. Adicionalmente, a correlação entre os diferentes endpoints e a idade e o género dos candidatos foi testada. Valores de correlação (rho) entre 0,7‐0,9 foram considerados como uma forte correlação, entre 0,5‐0,7 como moderada correlação e abaixo de 0,5 como fraca correlação. Todos os testes foram realizados de forma bilateral e foi considerado significado estatístico se o valor p<0,05. Para a análise estatística foi utilizado o software SPSS para Windows (versão 20).
ResultadosDe 2001‐2014 concluíram o internato de angiologia e cirurgia vascular na instituição 13 sujeitos, com idade média 35±5,9, sendo 4 sujeitos (31%) do sexo feminino. A exposição média a procedimentos cirúrgicos foi 2.518±310, dos quais 2.026±291 foram procedimentos vasculares. A média de trabalhos científicos apresentados como primeiro autor foi 9,7±5,7 e a média de publicações como primeiro autor foi 4,5±5,9.
Apesar da exposição a intervenções cirúrgicas se ter mantido constante, verificou‐se um gradual incremento na proporção de procedimentos endovasculares (fig. 1). Constatou‐se uma forte correlação entre o número de procedimentos endovasculares e o ano de conclusão do internato complementar (rho=0,869, p<0,001). Não existiu correlação entre o número de procedimentos ou proporção endovascular no que respeita a idade ou género.
Relativamente à atividade científica, verificou‐se uma forte correlação entre o período de tempo e o número de publicações, tanto quanto ao número total de publicações (rho=0,879, p<0,001) como publicações como primeiro autor (rho=0,885, p<0,001), e entre o período de tempo e o número total de resumos apresentados (primeiro e coautor) (rho=0,753, p<0,001) (fig. 2). Não se verificou uma correlação entre o período de tempo e o número de abstracts apresentados como primeiro autor (rho=0,526, p=0,065).
De igual forma, em relação à atividade científica, não se identificou correlação entre a atividade científica e a idade ou sexo.
Quanto à realização de cirurgias com diferentes graus de diferenciação, verificou‐se uma correlação positiva entre o ano de conclusão de internato e os procedimentos endovasculares de grau avançado (rho=0,839, p<0,001), os procedimentos endovasculares de grau intermédio (rho=0,857, p<0,001) e as cirurgias convencionais de grau avançado (rho=0,573, p=0,041) (figs. 3 e 4). Não houve correlação com a idade de conclusão do internato e sexo, com exceção de uma correlação negativa entre a idade e as cirurgias convencionais de grau avançado (rho=−0,742, p<0,001) e intermédio (rho=−0,604, p=0,029).
Dentro dos procedimentos mais diferenciados, como cirurgião principal, na patologia aneurismática da aorta abdominal verificou‐se um incremento da correção endovascular desta (de 2007‐2014 um aumento de cerca de 257%, até 2007 não foram realizados EVAR como cirurgião principal). O número de procedimentos endovasculares para correção desta patologia foi sempre inferior à cirurgia convencional, com exceção do ano de 2014 (fig. 5).
Verificou‐se uma forte correlação entre o ano de conclusão do internato e os procedimentos de EVAR (rho=0,821, p=0,001). Não se identificou correlação entre estes procedimentos e a idade ou sexo.
Tendo em conta os procedimentos vasculares de diferenciação avançada, convencionais e endovasculares, verificou‐se uma correlação fortemente positiva entre estes e o total de abstracts apresentados e publicados (rho=0,839 e rho=0,856, p<0,001), bem como com os abstracts apresentados e publicados como primeiro autor (rho=0,858, p<0,001 e rho=0,846, p<0,001, respetivamente).
DiscussãoO presente estudo revela uma interessante evolução na formação em angiologia e cirurgia vascular nos últimos 15 anos de um serviço terciário de volume elevado. Verificou‐se uma exposição cirúrgica total relativamente constante, com uma proporção crescente de procedimentos endovasculares, bem como de procedimentos mais diferenciados. A atividade científica teve uma evolução tendencialmente crescente e ainda uma correlação positiva com a realização de procedimentos mais diferenciados. No geral, verificou‐se que o género ou idade de conclusão de internato não influenciam a atividade assistencial e científica.
Apesar da exposição total a intervenções cirúrgicas se ter mantido estável, verificou‐se um incremento exponencial no número de procedimentos endovasculares e um correspondente decréscimo na cirurgia convencional. Dentro destes procedimentos, tendo em conta o grau de diferenciação técnica exigida ao cirurgião, houve um aumento significativo no número de procedimentos de elevado grau de diferenciação realizados como cirurgião principal, quer por cirurgia convencional quer endovascular. Não se verificou correlação entre a idade de conclusão do internato ou sexo e estes endpoints, com exceção de uma correlação negativa entre a idade de conclusão do internato e as cirurgias convencionais realizadas como cirurgião principal de diferenciação intermédia e avançada.
Schanzer et al.7 avaliaram a exposição cirúrgica entre 2001‐2007 num serviço terciário nos Estados Unidos da América e encontraram uma exposição crescente a procedimentos cirúrgicos, à custa principalmente dos procedimentos endovasculares. Concluíram que este aumento do número total de procedimentos estava relacionado com a menor invasibilidade dos procedimentos endoluminais e, consequentemente, um número maior de doentes com elevado risco operados. O número de cirurgias convencionais manteve‐se relativamente estável, sendo o tipo de cirurgia realizado mais complexo. Os resultados de Schanzer et al.7 estão de acordo com os encontrados neste estudo, com exceção do número de procedimentos via cirurgia convencional se ter mantido constante nesse estudo. Apesar de não estar especificado por Schanzer et al.7, o que se entende por cirurgias mais complexas subentende‐se que corresponderão na maioria dos casos aos procedimentos classificados neste estudo, como de maior diferenciação técnica, estando assim em concordância com os resultados deste estudo.
No presente estudo constatou‐se uma exposição decrescente à cirurgia convencional (embora sem significado estatístico), mas claramente predominante à cirurgia endovascular. Apesar da preocupação expressa em outros trabalhos relativa a uma menor aquisição de competências para a cirurgia convencional durante o internato de angiologia e cirurgia vascular8,9, o presente estudo não suporta esse ponto de vista ao demonstrar que a formação em cirurgia convencional continua a ser predominante e com gradual incremento na diferenciação dos procedimentos.
No caso específico da patologia aneurismática da aorta abdominal, Choi et al.8 concluíram que, durante o internato, a exposição a correção endovascular de AAA está a aumentar ao contrário da cirurgia convencional. Dado o risco na cirurgia convencional eletiva do AAA estar diretamente relacionado com a experiência do cirurgião10,11, a menor exposição a cirurgias convencionais durante o internato pode ter implicações no futuro. No presente estudo verificou‐se também um aumento da proporção de procedimentos endovasculares para exclusão de AAA ao longo do tempo. Contudo, o número absoluto de cirurgias convencionais foi sempre superior ao número de procedimentos endovasculares, com exceção do último ano analisado. Apesar de se ter verificado uma prática crescente de cirurgia convencional de maior diferenciação, o que traduz, em princípio, uma maior aquisição de competências técnicas, e não se verificar um decréscimo do número de correções de AAA por cirurgia convencional, a patologia aneurismática da aorta abdominal em concreto, pelo desafio técnico que impõe, chama a atenção para a questão atrás referida da preocupação da menor aquisição de competências técnicas para a cirurgia convencional. Uma vez que a tendência evolutiva da especialidade é para a correção endovascular desta patologia, quando tecnicamente possível, faz sentido uma maior diferenciação nesta área durante o internato, para que se torne uma prática global. Assim, para que os melhores resultados na cirurgia convencional sejam atingidos talvez deva haver uma subespecialização desta num centro. Uma limitação inerente a este sistema e de difícil contorno seria a intervenção urgente/emergente nesta patologia.
Quanto à atividade científica, verificou‐se um aumento gradual e constante no número total de publicações científicas e apresentações de resumos em congressos e/ou reuniões científicas. Este incremento está associado a uma tendência global para elevar o padrão científico dos médicos‐cirurgiões, com maior envolvimento em investigação básica e clínica como complemento da sua atividade assistencial. Esta tendência é bem expressa nas grelhas de avaliação nacionais e europeias, que servem como estímulo adicional à publicação e comunicação científica. Estas variações não se correlacionaram com a idade ou o género do candidato.
Relacionando a atividade científica e assistencial, constatou‐se que os sujeitos que mais realizaram procedimentos de diferenciação avançada, como cirurgião principal, também foram os que mais realizaram atividade científica, havendo uma forte correlação entre estes 2 endpoints. Este resultado sugere que os mais interessados em ter um bom currículo cirúrgico assistencial são também aqueles que mais procuram atividade científica. Contudo, não foram encontrados dados na literatura relativamente a variações temporais na atividade científica durante o internato médico, não sendo assim possível confirmar se esta observação é um fenómeno local ou se pelo contrário espelha uma tendência global.
Este estudo está limitado pelo desenho retrospetivo, pela pequena amostragem e por tratar‐se de uma série de uma única instituição. Estes fatores limitam a generalização dos resultados. No entanto, é expectável que, apesar das diferenças inerentes às características de diferentes serviços, estes resultados sejam reprodutíveis em contexto de instituições terciárias com elevado volume cirúrgico.
ConclusãoEste estudo espelha a evolução da especialidade de angiologia e cirurgia vascular, com o desenvolvimento das técnicas percutâneas, sendo estas uma prática crescente e que reflete as preocupações formativas atuais, com uma maior procura de atividade científica e realização de procedimentos mais diferenciados. Vem também demonstrar que o advento endovascular passou de exclusivo a especialistas altamente diferenciados para influenciar fortemente a formação cirúrgica durante o internato complementar.
Responsabilidades éticasProteção de pessoas e animaisOs autores declaram que para esta investigação não se realizaram experiências em seres humanos e/ou animais.
Confidencialidade dos dadosOs autores declaram que não aparecem dados de pacientes neste artigo.
Direito à privacidade e consentimento escritoOs autores declaram que não aparecem dados de pacientes neste artigo.
Conflito de interessesOs autores declaram não haver conflito de interesses.