A doença celíaca representa uma enteropatia inflamatória crônica do intestino delgado, imunomediada, que ocorre como resposta a uma intolerância permanente ao glúten em pessoas geneticamente predispostas. Essa doença tem várias manifestações clínicas, pode ser assintomática, e em gestantes celíacas não diagnosticadas tem sido associada a risco aumentado de recém‐nascidos com baixo peso ao nascer. Esta revisão tem como objetivo fornecer uma melhor compreensão dos mecanismos fisiopatológicos envolvidos na associação entre doença celíaca materna e baixo peso ao nascer por meio de uma revisão bibliográfica das publicações mais relevantes no tema nos últimos 20 anos.
Celiac disease is a chronic, immune‐mediated, inflammatory disorder of the small intestine, that occurs in response to a permanent intolerance to gluten in genetically predisposed individuals. Its clinical manifestations may vary significantly, including an asymptomatic presentation. In undiagnosed celiac pregnant women, it has been associated with increased risk of low birth weight newborns. This review aims to provide a better understanding of the pathophysiological mechanisms involved in the association between maternal celiac disease and low birth weight through a literature review of the most relevant publications on the subject in the last 20 years.
A doença celíaca (DC) é a expressão clínica de uma intolerância permanente ao glúten.1 Nos indivíduos geneticamente susceptíveis, os peptídeos do glúten parcialmente digeridos pelas enzimas do suco gástrico, pancreático e do lúmen intestinal atravessam a barreira epitelial da mucosa e chegam à lâmina própria, onde são expostos à transglutaminase tecidual.2–5 Essa enzima modifica peptídeos específicos do glúten por deaminação que, por sua vez, ligam‐se com maior afinidade às moléculas de HLA‐DQ2 ou HLA‐DQ8 das células apresentadoras de antígenos e desencadeiam reações inflamatórias mediadas pelo sistema imune inato e adaptativo.1 Tal processo inflamatório envolve a liberação de mediadores que resulta em hiperplasia das criptas, infiltração de linfócitos intraepiteliais e atrofia das vilosidades intestinais.1,6 Essas alterações, a depender da extensão, podem ser responsáveis por síndrome de má absorção, caracterizada pela perda de peso, desnutrição, distensão abdominal, diarreia e/ou esteatorreia, ou, ainda, desencadear respostas imunológicas alteradas em vários sítios do organismo.7
O diagnóstico da DC é histopatológico e requer biópsia do intestino delgado.6,8,9 A triagem pode ser feita por meio da dosagem sorológica dos anticorpos antiendomísio (EMA) e antitransglutaminase (anti‐TTG), ambos, preferencialmente, da classe IgA.6,8,9 Estudos têm demonstrado que pacientes com DC têm maior risco de deficiência de IgA. Dessa forma, a fim de se evitar resultados falso negativos, a triagem sorológica para DC inclui a dosagem concomitante de imunoglobulina A.9
O quadro clínico da DC é bastante heterogêneo. Quando não tratada, está associada a manifestações sistêmicas, como anemia, osteoporose, alterações neurológicas e neoplasias.6 Em mulheres celíacas não tratadas, a associação entre DC e disfunção do aparelho reprodutor, como abortos de repetição, menarca tardia e infertilidade sem causa aparente, tem sido apontada por vários autores, além de maior ocorrência de recém‐nascidos com baixo peso ao nascer e/ou pequenos para idade gestacional e prematuridade naquelas que conseguem conceber.10–13
Associação entre doença celíaca e baixo peso ao nascerO peso ao nascer é um importante marcador das condições intrauterinas em que a criança foi submetida durante o período gestacional e é, também, o fator individual de maior influência na saúde e sobrevivência da criança recém‐nascida.14 O baixo peso ao nascer, definido como peso ao nascer menor do que 2.500g, pode decorrer de parto prematuro ou de crescimento intrauterino restrito.15 Os recém‐nascidos com baixo peso ao nascer têm mortalidade aumentada no primeiro ano de vida, em geral requerem maior tempo de hospitalização após o nascimento e desenvolvem comorbidades na idade adulta mais frequentemente do que os neonatos com melhor peso.16 Em uma recente metanálise, o risco para mortalidade perinatal relacionado à prematuridade e o baixo peso ao nascer foram, respectivamente, 7,9 e 9,6 vezes maiores que o da população de recém‐nascidos saudáveis.17
Em mulheres celíacas não tratadas, estudos clínicos e epidemiológicos têm demonstrado maior ocorrência de recém‐nascidos com baixo peso ao nascer, prematuros e natimortos.10,12,18–21
No estudo de Ciacci et al.,18 os autores compararam 94 mulheres celíacas não tratadas com 31 pacientes celíacas em tratamento e indicaram que as mulheres celíacas sem tratamento tinham risco 5,84 vezes maior do que as mulheres celíacas em uso de dieta isenta de glúten de ter recém‐nascidos com baixo peso ao nascimento.
Em um outro estudo, Norgard et al.13 avaliaram a prole de 127 mulheres celíacas e encontraram que a média de peso ao nascimento dos recém‐nascidos dessas mães foi 238g menor do que a média de peso ao nascimento dos recém‐nascidos de mulheres não celíacas, o que determina um risco aumentado para recém‐nascidos com baixo peso ao nascimento de 2,6 vezes em mulheres com doença celíaca não tratada. Após introdução da dieta isenta de glúten, a média de peso ao nascimento dos recém‐nascidos de mulheres celíacas em tratamento foi 67g maior do que a dos recém‐nascidos de mães não celíacas.
Por sua vez, Martinelli et al.21 estudaram 845 grávidas e identificaram 12 pacientes com sorologia positiva para a doença celíaca. Em sete dessas 12 pacientes (58,3%) ocorreram eventos adversos na gestação. Cinco delas tiveram bebês pequenos para a idade gestacional (41%), três evoluíram para parto prematuro (25%) e quatro tinham história de abortos recorrentes (33,3%). No estudo de Salvatore et al.,12 os autores demonstraram aumento do risco de recém‐nascidos pequenos para a idade gestacional em mulheres celíacas não diagnosticadas que foi 2,25 vezes maior do que o esperado para a população feminina italiana. Khashan et al.10 também demonstraram que mulheres celíacas não tratadas tinham maior risco para recém‐nascidos prematuros, pequenos e muito pequenos para a idade gestacional (1,33, 1,31 e 1,54 vez, respectivamente) quando comparadas com as mulheres celíacas em tratamento. Recentemente, em uma metanálise, Tersigni et al.,22 demonstraram que pacientes celíacas têm maior risco de abortamentos ou de ter recém‐nascidos com baixo peso ao nascer, prematuros ou com crescimento intrauterino restrito do que a população feminina geral, com risco relativo (RR) de 1,39, 1,75, 1,37 e 1,54 vez, respectivamente.
Patogênese do baixo peso ao nascer na doença celíaca maternaA patogênese do baixo peso ao nascer associado à doença celíaca materna ainda é controversa. Sabe‐se que a nutrição fetal insuficiente é um fator decisivo, já foi demonstrado que mulheres com doença celíaca não diagnosticada apresentam peso placentário menor do que mulheres não expostas à doença.11,23 Estudos demonstraram que gestantes celíacas podem apresentar níveis reduzidos de vitamina B12, ferritina sérica, folato e, frequentemente, apresentam anemia.24 Recentemente, foi demonstrado que a ocorrência de anemia durante o primeiro trimestre da gravidez é fator preditor independente de prematuridade e de baixo peso ao nascer.11 Entretanto, a má absorção ou a má nutrição não tem sido um achado consistente nas gestantes celíacas, o que sugere uma interação entre deficiências nutricionais específicas, desequilíbrios endócrinos e distúrbio imunológico.
Considerada o principal autoantígeno envolvido na patogênese da doença celíaca, a transglutaminase tecidual (TG2) é uma enzima de múltiplas funções com participação em diversos eventos fisiológicos celulares, inclusive crescimento e diferenciação celular, estabilização da matriz extracelular, cicatrização de feridas, endocitose mediada por receptor, apoptose e angiogênese.
Na doença celíaca, observa‐se que a transglutaminase tecidual tem pelo menos dois papéis, não necessariamente independentes: como enzima, que por desaminação pode aumentar o efeito imunoestimulante de glúten, e como alvo para os anticorpos específicos produzidos na doença ativa. Os autoanticorpos são produzidos localmente na mucosa intestinal, onde ficam depositados abaixo da membrana basal epitelial, bem como ao redor dos vasos sanguíneos da mucosa. São encontrados na mucosa intestinal e no soro de pacientes celíacos durante o consumo de glúten. A transglutaminase de vários outros tecidos também pode ser acessível aos autoanticorpos derivados do intestino.25,26
Estudos prévios, que usaram imuno‐histoquímica, demonstraram que a transglutaminase tecidual também é amplamente expressa no tecido placentário.27,28 Anjum et al.29 demonstraram que a TG2, presente em elementos da parte fetal da placenta (membrana vásculo‐sincicial, bem como citotrofoblastos e elementos vasculares e do estroma), foi acessível aos autoanticorpos antitransglutaminase da circulação materna e que esses autoanticorpos inibiram a atividade da enzima. Os autores sugeriram que a TG2 desempenha papel na estabilização de fragmentos antigênicos expelidos da membrana do sinciciotrofoblasto para o interior da circulação materna, promovem uma fagocitose mais eficiente dessas partículas, e que a inibição dessa atividade poderia levar ao reconhecimento imune do concepto pelo organismo materno.
No estudo feito por Jong et al.,30 os níveis de anticorpos antitransglutaminase apresentaram associação inversamente proporcional com o crescimento fetal. O menor crescimento fetal ocorreu em neonatos cujas mães tinham os níveis mais altos de antitransglutaminase.
Invasão trofoblástica, bem como angiogênese endometrial e descidualização, são pré‐requisitos fundamentais para a implantação do embrião e o sucesso da gestação e podem ser afetados pelos autoanticorpos presentes no soro de gestantes celíacas. Recentemente, em um estudo in vitro, Di Simone et al.31 estudaram células trofoblásticas primárias humanas, isoladas de tecido placentário e expostas a anticorpos IgG antitransglutaminase obtidos do soro de pacientes celíacas não tratadas, e demonstraram que as células trofoblásticas foram agressivamente comprometidas, o que pode representar o mecanismo principal pelo qual a implantação do embrião e o seguimento da gestação podem estar prejudicados nas gestantes celíacas não tratadas. Os autores sugeriram que, in vivo, os autoanticorpos maternos podem se ligar à transglutaminase presente em células trofoblásticas e afetar negativamente o potencial dessas células para invadir a placenta.
Aumento da apoptose e da expressão de transglutaminase tecidual em trofoblastos extravilosos e sinciciotrofoblastos de tecido placentário de mulheres com doença celíaca ativa também já foram demonstrados.32 Mais recentemente, Hadziselimovic et al.33 estudaram a placenta de 22 mulheres com doença celíaca (oito sem dieta isenta de glúten) e de 10 mulheres saudáveis e conseguiram demonstrar maior concentração de gliadina e expressão de FAS‐L em trofoblastos extravilosos das placentas de mulheres com doença celíaca não tratada. Os autores sugeriram que a maior concentração de gliadina nos trofoblastos extravilosos promove uma maior expressão de FAS‐L, que, por sua vez, leva a um aumento da apoptopse dessas células. Fato esse que também correlacionou‐se com o peso mais baixo ao nascer dos recém‐nascidos dessas mães quando comparados com os das mães celíacas em uso de dieta e/ou das parturientes saudáveis. O desenvolvimento e a função normais da placenta requerem a invasão da descídua materna pelos trofoblastos extravilosos. Os trofoblastos extravilosos também secretam grande quantidade de proteínas e hormônios envolvidos na manutenção da gravidez, de forma que um aumento da apoptose dessas células pode contribuir para complicações relacionadas à disfunção do tecido placentário.
Considerações finaisA associação entre DC materna ativa e o nascimento de neonatos com baixo peso tem sido evidenciada por vários autores e diferentes mecanismos parecem estar envolvidos em sua patogênese. De forma que parece justificável investigar mulheres em idade reprodutiva que conceberam neonatos com baixo peso ao nascer, crescimento intrauterino restrito e/ou pequenos para idade gestacional. Nas gestantes celíacas tratadas com dieta isenta de glúten, esses riscos são significativamente reduzidos e essas mulheres têm saúde reprodutiva comparada com a da população feminina sem a doença.
Conflitos de interesseOs autores declaram não haver conflitos de interesse.