Não existem investigações científicas suficientes, sobretudo com população normativa, que evidenciem a associação entre a qualidade do sono e o funcionamento sexual.
MétodoParticiparam deste estudo 945 indivíduos saudáveis, 62% mulheres, 38% homens, média de 34,27 anos (desvio‐padrão=15,82), que preencheram um questionário sociodemográfico, a versão portuguesa do Questionário de Sono de Oviedo e a versão portuguesa do Questionário de Funcionamento Sexual do Massachusetts General Health Hospital.
ResultadosVerificaram‐se níveis moderados de satisfação subjetiva com o sono e níveis baixos de insónia e hipersónia. No entanto, as mulheres sofrem mais deste tipo de perturbações do sono. A satisfação subjetiva com qualidade do sono está positivamente correlacionada com o funcionamento sexual geral e todas as suas respetivas dimensões e a insónia está negativamente correlacionada com o funcionamento sexual e todas as suas respetivas dimensões. Da submissão dos itens à análise de regressão linear, testou‐se o modelo de predição do funcionamento sexual geral em função das variáveis da qualidade do sono, tendo‐se obtido um modelo estatisticamente significativo (p<0,001), sendo que as variáveis em questão explicam 7% do funcionamento sexual geral, com valores β para a satisfação subjetiva com o sono de 0,189 e para a insónia de ‐0,140.
DiscussãoCom base nos resultados obtidos, é possível comprovar que quanto maior a qualidade do sono, maior é o funcionamento sexual e que o mesmo é influenciado negativamente sobretudo pela insónia.
There are not enough scientific investigations, especially with a normative population, that show the association between sleep quality and sexual functioning.
Method945 healthy individuals, 62% female, 38% male, mean age 34.27 years (standard deviation=15.82), who completed a sociodemographic questionnaire, the Portuguese version of the Oviedo Sleep Questionnaire and the Portuguese version of the Massachusetts General Health Hospital‐Sexual Functioning Questionnaire entered this study.
ResultsModerate levels of subjective satisfaction with sleep and low levels of insomnia and hypersomnia were observed. However, women suffer more from these forms of sleep disorders. Subjective satisfaction with sleep quality is positively correlated with overall sexual functioning and all of its dimensions, and insomnia is negatively correlated with sexual functioning and all of its dimensions. From the linear regression analysis, the model of prediction of general sexual functioning was tested according to sleep quality variables, and a statistically significant model was obtained (p <0.001), with the variables in question explaining 7% of general sexual functioning, with β values ??for subjective satisfaction with sleep of 0.189 and for insomnia of ‐0.140.
DiscussionBased on the results obtained, it is possible to demonstrate that the higher the quality of sleep, the greater the sexual functioning, and that it is negatively influenced mainly by insomnia.
Tendo em conta as características atuais do estilo de vida no mundo ocidental, com as rotinas e o stress, uma das áreas de vida mais vulnerável atualmente é, precisamente, a falta de qualidade do sono. Atualmente, as horas de sono competem com um número cada vez maior de distrações, quer sejam laborais, sociais ou de lazer, o que faz com que hoje em dia durmamos menos cerca de 25% do que há 100 anos1. A qualidade do sono é um dos pré‐requisitos de uma boa saúde física e mental2. No entanto, as perturbações do sono estão associadas a resultados adversos para a saúde como a obesidade, a diabetes 3, a hipertensão, as doenças cardíacas, a depressão, entre outros4. Ter problemas de sono interfere também com aspetos do funcionamento cognitivo como a memória, a atenção, os registos sensoriais e o raciocínio, que relaciona o indivíduo ao seu ambiente e que determinam a qualidade do seu desempenho, a sua saúde e qualidade de vida em geral 5. A boa saúde do sono é caracterizada por satisfação subjetiva, tempo apropriado, duração adequada, alta eficiência e alerta constante durante as horas de vigília6, resultando a sua a qualidade num padrão multidimensional de sono‐vigília, adaptado às circunstâncias individuais, sociais e ambientais, que promovem o bem‐estar físico e mental, podendo afetar, também, a qualidade do funcionamento sexual.
Muitas investigações evidenciam que a qualidade do sono tem um grande impacto na vida quotidiana, existindo pouca informação no que concerne à sua influência no funcionamento sexual. Ainda assim, alguns estudos demonstraram que durações de sono mais curtas e níveis de insónia mais elevados estão associados a uma diminuição do funcionamento sexual7, mesmo após o ajuste para potenciais fatores de interferência, condicionando o desejo, a excitação, a lubrificação nas mulheres, o orgasmo e a satisfação sexual em geral8,9, ainda que esta interação não possa ser generalizada10.
Dormir suficientemente e com qualidade é importante para a promoção de um desejo sexual saudável, bem como para a probabilidade de se envolver em atividades sexuais com parceiros11, sendo a função sexual afetada pelo facto de não se ter turnos fixos, por exemplo, o que leva a uma baixa qualidade do sono, aumentando a probabilidade de disfunção sexual12. Deste modo, em termos gerais, é possível afirmar que existe uma relação significativa entre as perturbações de sono e todos os aspetos do funcionamento sexual13. Dada a falta de quantidade e diversidade de investigações científicas que evidenciem a associação entre a qualidade do sono e o funcionamento sexual, levou‐se a cabo o presente estudo, cujos principais objetivos são avaliar os níveis de associação da qualidade do sono com o funcionamento sexual. Este estudo apresenta, portanto, uma tipologia descritiva, comparativa e preditiva.
MétodoParticipantesA amostra recolhida por conveniência através da internet ficou constituída por 945 indivíduos, dos quais 62% mulheres e 38% homens. As idades variaram entre 18 e 89 anos, sendo a média de 34,27 (desvio‐padrão=15,82), a mediana de 28 e a moda de 22. Referente ao estado marital do grupo, 43% eram solteiros, 23,5% casados, 22,7% disseram ter um namoro/compromisso afetivo, 6,8% unidos de facto, 5,4% divorciados/separados e 1,9% viúvos. Em relação ao local de residência, 54,2% dos inquiridos disseram viver numa pequena cidade, 21,4% numa grande cidade, 17,5% num pequeno meio rural e 7,1% num grande meio rural. Quanto ao nível de escolaridade, 39,6% disseram ter formação universitária (licenciatura ou bacharelato), 33,3% escolaridade até ao 12° ano, 19,4% formação universitária ao nível pós‐graduado (mestrado ou doutoramento) e 7,5% até ao nono ano de escolaridade. No que respeita à situação profissional, 33,1% disseram ser estudantes, 29,6% disseram trabalhar por conta de outrem, 10,3% disseram estar desempregados, 9,1% disseram trabalhar por conta própria, 7,4% disseram ser trabalhadores‐estudantes, 5,6% disseram ser reformados e 4,8% disseram encontrar‐se noutra situação. No que concerne ao estatuto socioeconómico dos participantes, 46,9% afirmaram pertencer a um estatuto médio, 34,2% a um estatuto baixo‐médio, 10,5% ao médio‐alto, 7,7% ao baixo e 0,7% ao alto. Relativamente à orientação sexual, 77% identificaram‐se como heterossexuais, 14,2% como homossexuais e 8,8% como bissexuais.
InstrumentosNesta investigação foram utilizados três instrumentos, o Questionário Sociodemográfico, com o objetivo de reunir características sociodemográficas da amostra, e as versões portuguesas do Questionário de Sono de Oviedo (QSO) e do Questionário de Funcionamento Sexual do Massachusetts General Hospital.
O Questionário Sociodemográfico foi elaborado propositadamente para este estudo, com o objetivo de obter informação sobre as características sociodemográficas dos participantes integrantes da amostra. Os itens sociodemográficos presentes no questionário foram: “A sua idade?”; “O seu género sexual?”; “O seu estado marital atual?”; “O seu local de residência?”; “O seu nível de escolaridade?”; “A sua situação profissional?”; “O seu estatuto socioeconómico?” e “Como se identifica relativamente à sua orientação sexual?”. Alguns destes itens foram formulados em questões abertas (“A sua idade?”), de forma a recolher informação mais detalhada e tornar este estudo mais preciso, e outros em questões fechadas, sendo apresentadas respostas dicotómicas de “sim/não” ou respostas de uma única opção.
O Questionário de Sono de Oviedo14 é um inquérito das perturbações do sono do tipo insónia e hipersónia, tendo sido utilizada neste estudo a versão validada para a população portuguesa15. A sua versão final é constituída por 15 itens, em que 13 dos quais se agrupam em três escalas categoriais (satisfação subjetiva do sono ‐ um item; insónia ‐ nove itens e hipersónia ‐ três itens). Para além disto, a escala de insónia é também dimensional e proporciona informação sobre a gravidade desta em caso de estar presente. A pontuação em cada escala oscila entre 9 e 45 e quanto maior a pontuação, maior é a gravidade. Os dois itens restantes proporcionam informação adicional sobre a possível existência de perturbações de tipo orgânico e sobre o tipo e frequência do uso de qualquer tipo de substância para dormir (eg. fármacos e chás). Todos os itens são respondidos mediante uma escala tipo Likert. O primeiro item (satisfação com o sono) é medido por 7 valores (de 1 a 7), ao passo que as restantes escalas são medidas por 5 valores (de 1 a 5) referindo‐se à frequência, tempo e percentagens.
A adaptação da versão portuguesa para o Questionário de Funcionamento Sexual do Massachusetts General Hospital16 consiste em 5 itens que avaliam o interesse sexual, a capacidade para atingir o orgasmo, a excitação, a capacidade para atingir e manter uma ereção, no caso dos homens, ou a lubrificação em relação às mulheres e a satisfação sexual geral. A atribuição das pontuações é feita de acordo com uma escala de tipo Likert de sete pontos em que 1 corresponde a “totalmente ausente”, 2 “marcadamente diminuída”, 3 “quase normal”, 4 “normal”, 5 “algo acima do normal”, 6 “marcadamente acima do normal” e 7 “completamente acima do normal”. O alfa de Cronbach obtido foi de 0,91 e as propriedades psicométricas da escala foram adequadas.
ProcedimentosO presente estudo foi implantado através de um inquérito online, constituído pelos instrumentos de medida, disseminado através de mailing lists e redes sociais e dirigido à população normativa. Os critérios de inclusão incluíram não ter doença física ou mental diagnosticada, não tomar medicação que pudesse afetar o funcionamento mental e a qualidade do sono e saber ler português. É de salientar que este questionário tinha um carácter voluntário e que os participantes, todos com idade igual ou superior a 18 anos, responderam conforme as instruções disponíveis no início do mesmo, que incluía um termo de consentimento informado. Este termo continha informações acerca dos objetivos do estudo e das questões éticas, garantindo, desta forma, a confidencialidade e o anonimato. Este estudo foi aprovado pela Comissão de Ética da Universidade da Beira Interior (CE‐UBI‐Pj‐2017‐031).
Análise de dadosFoi utilizada a plataforma IBM® SPSS® versão 25 para a análise dos dados das variáveis deste estudo. Para além das medidas descritivas básicas (média, desvio‐padrão, frequências) foram calculados os coeficientes de correlação de Pearson (dado que os pressupostos da normalidade e da homogeneidade foram verificados) e a regressão linear simples para avaliar as relações preditivas entre os fatores de qualidade de sono e o funcionamento sexual.
ResultadosNa tabela 1 podem ser observados os resultados relativos à avaliação da qualidade do sono, entre homens e mulheres, para cada uma das dimensões identificadas (satisfação subjetiva com o sono, insónia e hipersónia). Verificaram‐se níveis moderados de satisfação subjetiva com o sono e níveis baixos de insónia e hipersónia. No entanto, verificaram‐se diferenças estatisticamente significativas quando comparados os níveis de insónia e hipersónia entre homens e mulheres, que indicaram que são as mulheres quem mais sofrem deste tipo de perturbação do sono.
Resultados para a avaliação da qualidade do sono entre géneros (n=945)
Relativamente aos resultados para as correlações entre as dimensões da qualidade do sono e do funcionamento sexual, obtiveram‐se valores de associação estatisticamente significativos (p<0,001) para a satisfação subjetiva com o sono e com a insónia. Conforme se pode verificar na tabela 2, a satisfação subjetiva com qualidade do sono está positivamente correlacionada com o funcionamento sexual geral e todas as suas respetivas dimensões e a insónia está negativamente correlacionada com o funcionamento sexual e todas as suas respetivas dimensões.
Resultados para as correlações entre a qualidade do sono e o funcionamento sexual
1 | 2 | 3 | 4 | 5 | 6 | 7 | 8 | 9 | |
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
1 ‐ Satisfação subjetiva | ‐ | ||||||||
2 ‐ Insónia | ‐0,620** | ‐ | |||||||
3 ‐ Hipersónia | ‐0,270** | ‐0,484** | ‐ | ||||||
4 ‐ Interesse sexual | 0,202** | ‐0,173** | ‐0,021 | ‐ | |||||
5 ‐ Excitação | 0,239** | ‐0,218** | ‐0,033 | 0,831** | ‐ | ||||
6 ‐ Orgasmo | 0,245** | ‐0,170** | ‐0,013 | 0,690** | 0,803** | ‐ | |||
7 ‐ Ereção/ Lubrificação | 0,201** | ‐0,173** | ‐0,014 | 0,696** | 0,803** | 0,766** | ‐ | ||
8 ‐ Satisfação sexual | 0,198** | ‐0,178** | ‐0,003 | 0,549** | 0,625** | 0,585** | 0,611** | ‐ | |
9 ‐ Funcionamento sexual geral | 0,245** | ‐0,215** | ‐0,029 | 0,864** | 0,930** | 0,884** | 0,888** | 0,792** | ‐ |
* <0,05.
Finalmente, da submissão dos itens à análise de regressão linear, testou‐se o modelo de predição do funcionamento sexual geral em função das variáveis da qualidade do sono, tendo‐se obtido um modelo estatisticamente significativo (p<0,001), sendo que as variáveis em questão explicam 7% do funcionamento sexual geral, com valores β para a satisfação subjetiva com o sono de 0,189 e para a insónia de ‐0,140 (ver tabela 3).
DiscussãoA presente investigação é original e inovadora, na medida em que existe uma falta de pesquisa e de resultados concretos relativamente à tentativa de compreender as interações entre a qualidade do sono e o funcionamento sexual dos indivíduos, especificamente na população normativa, ou seja, que não constituam amostras clínicas com perturbações ou comorbilidades relevantes e identificadas. O objetivo deste estudo foi avaliar os níveis de associação de qualidade do sono e os parâmetros do funcionamento sexual e, com base nos resultados obtidos, é possível comprovar que quanto maior a qualidade do sono, maior é o funcionamento sexual e que o mesmo é influenciado negativamente sobretudo pela insónia.
O sono é um estado comportamental complexo de natureza cíclica e recorrente, onde existe uma redução fisiológica do nível de consciência no qual o individuo pode despertar através de vários estímulos, sendo os mais importantes os sensoriais17. Trata‐se de um processo biológico natural do organismo e essencial à reparação e manutenção do equilíbrio biopsicossocial do ser humano. Assim, cada fase do sono tem uma função específica, sendo comprovado pelas evidências da sua importância para os processos de recuperação e repouso do organismo. Em cada momento do sono NREM e REM as respostas do organismo serão diferentes nos vários sistemas do ser humano, entre eles o sexual. Pode‐se, então, concluir que existe alteração nas funções do corpo quando uma pessoa é privada do sono, podendo assim levar ao disfuncionamento de certos sistemas.
As perturbações do sono são um problema clínico relevante18. O stress e as exigências do trabalho fazem, também, com que os ritmos humanos sejam alterados, tendo consequências diretas nos sistemas orgânicos e no ciclo do sono‐vigília, verificando‐se também alterações físicas e psicológicas que, consequentemente, condicionam o funcionamento sexual. Os nossos resultados são congruentes com os de outras investigações que demonstram que a qualidade do sono interfere na saúde sexual8,19,20,21,22,23,24,25,26, apesar de estes estudos apresentarem amostras relativamente pequenas e terem sido realizados com populações clínicas que apresentaram algum tipo de diagnóstico (por exemplo, diabetes ou depressão).
Assim, o nosso estudo tem duas grandes contribuições: primeiro, apresenta uma dimensão amostral elevada, quando comparada com outros estudos, e, segundo, foi realizado na população normativa, sem doenças ou comorbilidades associadas. Neste sentido, os resultados poderão acercar‐se mais da realidade da vida das pessoas, ainda que não sejam generalizáveis. Neste sentido, não foi isento de limitações. O facto de ter incidido numa amostra de grande dimensão, mas de conveniência, de fazer depender as medidas ao autorrelato pode estar sujeito a algumas interferências, nomeadamente o efeito da desejabilidade social, mas também à possibilidade de enviesamentos decorrentes da avaliação subjetiva da qualidade do sono. No futuro, estas limitações poderão ser ultrapassadas ao realizarmos estudos com medidas da qualidade do sono controladas em laboratório. Adicionalmente, outros estudos, em particular comparativos com dados de amostras não normativas, poderão constituir também uma mais valia para a compreensão destes fenómenos.
Os resultados obtidos poderão ter implicações para os técnicos de saúde que trabalham na área da qualidade do sono e do funcionamento sexual. Dado que a qualidade do sono e a funcionalidade sexual são dois aspetos centrais da qualidade de vida, entender as relações entre estas duas variáveis é, sem dúvida, uma mais valia para a intervenção clínica, mas também para o estabelecimento de programas de prevenção que alertem para a necessidade de compreender que a qualidade do sono influencia a funcionalidade sexual.
Responsabilidades éticasProteção de pessoas e animaisOs autores declaram que nesta investigação não se fizeram experiências em seres humanos e/ou animais.
Confidencialidade dos dadosOs autores declaram ter seguido os protocolos do seu centro de trabalho acerca da publicação dos dados de pacientes.
Direito à privacidade e consentimento escritoOs autores declaram ter recebido consentimento escrito dos pacientes e/ou sujeitos mencionados no artigo e que estão de posse desse documento.
Conflicto de interesesOs autores declaram não ter nenhum conflito de intereses.