A torção do cordão espermático consiste na rotação do testículo sobre o seu eixo vascular, com consequente repercussão no aporte sanguíneo. A incidência anual é de 1 em cada 4000 indivíduos com menos de 25 anos1. Trata-se de uma emergência cirúrgica, dado que o atraso no diagnóstico e na instituição da terapêutica apropriada podem ter, como consequência, a perda do testiculo.
Assim sendo, para além das implicações clínicas decorrentes de um diagnóstico incorrecto, existem também questões médico-legais que não podem ser ignoradas.
EPIDEMIOLOGIAÉ uma patologia que pode ocorrer em qualquer faixa etária, sendo, no entanto, mais frequente durante a adolescência. Representa 40% de todas as causas de escroto agudo nas crianças2.
São observados dois picos na maior incidência de episódios de torção do testículo: um durante, durante o primeiro ano de vida; outro na puberdade, coincidente com o aumento rápido da massa testicular.
A partir da adolescência a incidência diminui, progressivamente, e a frequência da torção é muito baixa.
FISIOPATOLOGIAO testículo encontra-se fixo às túnicas escrotais por 3 pontos fundamentais:
– O gubernáculo testis: insere e fixa o pólo inferiordo testículo.
– O cordão espermático: inicia-se no pólo superiordo bloco epididimo –testicular.
– O mesórquio ou hilo testicular: localizado nobordo posterior, fixa esta face do testículo.
As torções podem ser extra ou intra-vaginais consoante há rotação do testículo acima ou abaixo da linha de reflexão da vaginal.
A torção extra-vaginal ocorre, quase exclusivamente, nos recém-nascidos, mas pode ser observada excepcionalmente em adultos. Resulta de um defeito de adesão da vaginal às restantes túnicas escrotais, com a rotação ‘em bloco’ da vaginal e testículo no interior da bolsa escrotal. É tipico o testículo atingido estar necrosado já ao nascer.
A torção intra-vaginal é a forma mais frequentemente encontrada durante a puberdade. Resulta de um defeito de fixação do testículo, existem duas condições que predipõem para que ocorra:
– Ausência de gubernáculo ou do mesórquio, peloque o testículo fica apenas ‘suspenso’ pelo cordão espermático (anomalia em ‘badalo de sino’) (fig. 1).
– Desproporção entre o volume testicular e os seussistemas de fixação.
Figura 1. Deformidade em ‘badalo de sino’.
A torção ocorre, geralmente, sem qualquer evento precipitante. Parece, contudo, haver um aumento da incidência de episódios de torção quando há diminuição da temperatura e da humidade do ar, sugerindo serem um possível factor desencadeante3.
Inicialmente há obstrução do retorno venoso. Contudo, com o evoluir do quadro clínico há compromisso do fluxo arterial e consequente isquemia testicular.
As lesões isquémicas observam-se logo nas 4 h após o início da torção, estando presentes ao fim de 24 h. A viabilidade testicular está intimamente relacionada com o tempo de isquemia (90% se <6 h, 50% após 12 h e <10% se superior a 24 h)1.
O evento primário de lesão é a isquemia, sendo responsável pelas alterações morfológicas e bioquímicas a nível testicular. Há hiper-produção de radicais livres de oxigénio e de azoto, num processo semelhante aquele que ocorre noutros órgãos como o cérebro ou o coração4.
CONSEQUÊNCIAS DA TORÇÃOOs efeitos da torção do cordão espermático atingem não só o testículo envolvido, como também o do lado oposto. O prognóstico depende da gravidade da isquemia aguda:
– Se completa e prolongada a evolução vai no senti-do da atrofia testicular.
– Se incompleta e com restabelecimento rápido daperfusão pode haver recuperação de parte do parênquima testicular; contudo, pode também haver atrofia secundária.
Quanto à função testicular, os túbulos seminíferos são particularmente sensíveis à isquémia, pelo que surgem precocemente lesões irreversíveis. As células intersticiais são mais resistentes à isquémia. Assim sendo, apesar de haver compromisso da função exócrina do testículo, a sua função endócrina fica quase sempre preservada, mesmo após isquémias prolongadas5.
Em termos histológicos, a torção induz, no testículo contralateral, lesão focal dos túbulos seminíferos, caracterizada por apoptose e descamação das células germinativas, possivelmente mediada pela resposta imunitária celular e humoral6.
A fertilidade do indivíduo pode ficar comprometida após um episódio de torção do cordão, mesmo que tenham sido instituídas medidas terapêuticas em tempo útil.
Existem várias teorias que poderão explicar essa diminuição da fertilidade:
– Teoria auto-imune. Com a isquémia poderiaocorrer uma quebra da barreira hemato-testicular, com consequente elevação da quantidade de anticorpos anti-espermatozóides; o testículo não atingido poderia sofrer a acção imunológica nociva destes auto-anticorpos. Fu e colaboradores demonstraram que a lesão testicular induz um aumento do título de anticorpos anti-espermatozóides7.
– Teoria congénita. A incidência elevada de alte-rações histológicas nos testículos contra-laterais será indicadora de anomalias prévias ao episódio de torção, nomeadamente no sistema de fixação e no próprio tecido testicular
– Teoria vascular. Após a torção, há aumento daamplitude da vaso-motricidade e redução da microcirculação do testículo contra-lateral, resultante da activação do sistema simpático8.
Estas diferentes teorias podem ser complementares, e não exclusivas, uma vez que nenhuma delas, isoladamente, justifica a redução da fertilidade observada nestes indivíduos.
DIAGNÓSTICOClínicaA forma típica de apresentação (em 90% dos casos de torção) é duma dor escrotal súbita, unilateral, sem factor desencadeante, frequentemente precedida por outros episódios dolorosos com características semelhantes mas com resolução espontânea.
A dor pode ter irradiação inguinal, ou para a coxa, sendo também observados náuseas, vómitos ou sintomatologia do aparelho urinário inferior (disúria ou imperiosidade miccional). Nos testículos criptorquídicos a forma de apresentação pode simular um abdómen agudo. É importante ter cuidado na colheita da história, os pequenos traumatismos, evocados frequentemente por doentes ou pais para justificarem o episódio, são os responsáveis por um grande número de erros, e/ou atrasos, no diagnóstico.
A idade do doente é um factor importante dado que a torção do cordão é mais comum nos recémnascidos e após a puberdade, apesar de poder ocorrer em qualquer idade. A torção do apêndice testicular tipicamente ocorre na pré-puberdade, enquanto a epididimite desenvolve-se mais frequentemente na póspuberdade e relacionada com infecções anteriores do aparelho urinário.
O exame objectivo deve ser realizado em decúbito dorsal e com o cuidado, de iniciar a observação, pelo testículo indolor para avaliar a possivel existência de mobilidade excessiva do testículo na bolsa (sinal de Angell). O testículo atingido está, frequentemente, subido, repuxado em direcção ao anel inguinal superficial, e numa posição horizontal. O epidídimo pode estar localizado medial, lateral ou anteriormente, consoante o grau de rotação. Pode existir aumento do volume testicular e, ao contrário do que se observa nos casos de epididimite, a elevação do escroto pela mão do examinador exacerba as queixas dolorosas (sinal de Prehn). Durante o exame objectivo pode ser difícil diferenciar o testículo dos seus anexos devido ao edema do escroto. O desaparecimento do reflexo cremastérico é um sinal com elevada sensibilidade de torção do cordão espermático9.
Contudo, toda a semiologia tem apenas um valor de orientação, não deve ser refutado o diagnóstico no caso de dúvida.
EXAMES COMPLEMENTARES DE DIAGNÓSTICODado o elevado número de escrototomias exploradoras ‘brancas’, há uma tendência para recorrer a alguns exames auxiliares que ajudem a confirmar o diagnóstico. Contudo, a realização de qualquer exame não deve causar atraso na intervenção cirúrgica e apenas deve ser realizado nos casos equívocos.
Ultrassonografia com DopplerÉ um exame rápido e facilmente disponível. Permite objectivar a interrupção da vascularização testicular, devendo haver o cuidado de analisar o sinal Doppler sobre o parênquima testicular.
Nas crianças, o Power Doppler é mais sensível que o Doppler colorido para a detecção de fluxo intratesticular. Se este estiver ausente confirma a torção do cordão espemático10. Os achados ecográficos variam em função do tempo de instalação da torção e do grau de rotação do testículo. Nas primeiras 4 a 6 h apenas se observa edema testicular e uma diminuição da ecogenicidade do testículo. Às 24 h observa-se uma ecoestrutura heterogénea, secundária à congestão vascular, hemorragia e enfarte.
A sonografia com Power Doppler é particularmente valiosa a nível escrotal dada a sua elevada sensibilidade em estados de baixo fluxo. Segundo alguns autores, a ultrassonografia com Doppler é um exame indispensável na avaliação de um doente com escroto agudo, podendo constituir um elemento fundamental em termos médico-legais quando se exclui a abordagem cirúrgica. É, contudo, um exame cuja fiabilidade é muito dependente da experiência do executante. Como tal, na presença de suspeita clínica, mesmo que a ecografia pareça normal, recomenda-se a exploração cirúrgica11.
Cintigrafia testicularO exame realizado com 99mTC permite confirmar a diminuição de perfusão da gónada. Nos casos de inflamação ou infecção há um aumento da perfusão testicular. Trata-se de um método complementar de elevada sensibilidade (aproximadamente 100%), mas muito pouco disponível nos hospitais.
DIAGNÓSTICO DIFERENCIALO diagnóstico diferencial de um episódio de torção do cordão deve ser feito com as seguintes entidade clínicas:
Torção de apêndice testicular. Tem predomínio numa idade mais precoce (entre os 6 e 12 anos), apresenta-se como um quadro de dor muito semelhante embora, inicialmente, com menor intensidade mas de predomínio no pólo superior. Pode existir uma massa palpável no pólo superior ou o “sinal da mancha azul” (fig. 2). Estes doentes raramente têm sintomas digestivos e costumam ter reflexo cremastérico normal. A ecografia com Doppler pode mostrar uma massa polar superior ou no epidídimo, com fluxo testicular normal ou até aumentado. O tratamento pode ser cirúrgico ou conservador (repouso e anti-inflamatórios não esteróides), com resolução das queixas ao fim de aproximadamente 10 dias.
Figura 2. Torção de apêndice testicular.
Epididimite aguda. Epididimite, com ou sem orquite, é a causa mais comum de dor testicular, estando frequentemente associada a doenças sexualmente transmitidas. O pico de incidência ocorre pelos 25 anos. A dor da epididimite aguda, habitualmente, é menos aguda que a da torção testicular, e pode existir disúria e escorrência uretral (fig. 3).
Figura 3. Epididimite.
O exame físico revela um epidídimo edemaciado, doloroso, quente e eritematoso. O testículo e a pros-tata podem também estar dolorosos. O reflexo cremastérico geralmente está intacto, mas nos casos severos pode estar ausente. O sinal de Prehn é positivo. Pode co-existir febre e leucocitose.
A ecografia mostra aumento do epidídimo, edema escrotal e sinais de orquite. No Doppler há aumento de fluxo sanguíneo no testículo, epidídimo e bolsa escrotal. A cintigrafia mostra acumulação do marcador na gónada.
Traumatismo. O traumatismo escrotal (especialmente na queda em sela) é causa pouco comum de lesão do testículo pré-pubertal embora, seja frequentemente, evocado como uma justificação para tal. A lesão pode ocorrer se o testículo é comprimido contra os ossos do púbis, e causar uma epididimite pós-traumática, hematoma, laceração testicular e hematocele. Em geral, as consequências são perceptíveis no decurso da realização da ecografia.
Edema escrotal idiopático. O edema escrotal idiopático apresenta-se sob a forma de um quadro de des-conforto escrotal leve e edema do escroto com eventual extensão para a virilha. Os testículos surgem normais e indolores durante o exame.
O diagnóstico diferencial deve ser feito, embora por vezes difícil, com processos alérgico e infeccioso das partes moles.
Outros diagnósticos a ter presentes são a hérnia inguinal estrangulada, o tumor do testículo ou a cólica renal.
TRATAMENTOO tratamento de eleição da torção do cordão espermático é cirúrgico - a escrototomia. Em alguns casos podemos recorrer a outros métodos como a Destorção manual.
A destorção manual pode ser tentada mas apenas com o objectivo de reduzir a duração de isquemia aguda, sem atrasar a cirurgia. Mesmo que pareça coroada de sucesso (desaparecimento da dor ou recuperação do fluxo comprovado com Doppler), não dispensa a exploração cirúrgica urgente.
O movimento deve ser feito, no caso do testículo direito, no sentido inverso ao dos ponteiros do relógio e, no caso do esquerdo, no sentido dos ponteiros do relógio, ou seja, um movimento em ‘abertura de livro’.
CirurgiaA via preferencial de abordagem é a escrotal mediana, para permitir o acesso rápido aos dois hemi-escrotos. No primeiro tempo, para confirmar o diagnóstico, o tipo de torção e a viabilidade do testículo atingido. Na presença de irreversibilidade da lesão testicular, deve ser realizada a orquidectomia, com colocação de prótese, se não existirem sinais de inflamação ou infecção que possam comprometer o resultado cirúrgico.
A fixação do testículo contralateral é mandatória em todos os doentes, para prevenir a sua torção. Existem, contudo, vários casos descritos de torção testicular após orquidopexia, parecendo haver uma relação com o uso de material de sutura absorvível12.
PROGNÓSTICOO tratamento adequado tem por objectivo a preservação do testículo e assegurar a fertilidade.
Os factores de prognóstico para a conservação da gónada são, além do tempo entre o início da torção e a resolução cirúrgica, o número de voltas do cordão13. Quando o tratamento é realizado nas primeiras 6 h após o início da dor, é de esperar uma taxa de sucesso de 90%. A taxa de viabilidade diminui para 50% se a destorção ocorrer após as 12 h e para <10% se este período for superior a 24 h.
Também a ecoestrutura do parênquima testicular antes do tratamento parece ter valor prognóstico. Assim, no contexto de torção comprovada por estudo Doppler, a heterogeneidade testicular indicia a presença de lesão com várias horas de evolução e inviabilidade testicular. A ecoestrutura homogéna associa-se a boa viabilidade, devendo ser efectuada, de forma urgente, a exploração cirúrgica do testículo14.
Quanto ao assegurar a fertilidade, aproximadamente, 1/3 dos doentes terá, a longo prazo, uma oligo-asteno-teratospermia.
O prognóstico desta patologia pode ser melhorado em duas vertentes: a instituição de tratamento médico para preservar o parênquima testicular após o trata-mento cirúrgico e a adopção de medidas de informação junto dos adolescentes, alertando-os para a necessidade de procurar assistência médica, rápida, após o aparecimento de dor escrotal súbita.
Existem vários estudos em modelo animal que realçam o possível efeito protector de diversos compostos contra as lesões decorrente dos fenómenos de isque-mia/reperfusão testicular com consequente libertação de radicais livres de oxigénio, nos episódios de torção. São disso exemplo o ácido alfa-lipóico15, a L-car-nitina16, a eritropoietina17,18, os inibidores da enzima de conversão da angiotensina e os antagonistas dos receptores da angiotensina II tipo 119, o sildenafil20 ou o ibuprofeno21.
CONCLUSÃOA torção do cordão espermático é uma patologia frequente e constitui uma verdadeira emergência urológica.
Os achados clínicos podem ser complementados pela ecografia com Doppler ou cintigrafia testicular se a sua realização não adiar a intervenção cirúrgica.
A viabilidade do testículo depende do tempo de evolução e da gravidade (número de voltas) da torção.
A atrofia testicular secundária e a diminuição da fertilidade são consequências tardias possíveis.
Correspondência: Dr. V.H. Nogueira. Rua Luís Ramos de Azevedo, 8. Gualtar. 4710-168 Braga. Portugal. Correio electrónico: vitorhugonogueira@sapo.pt