O artigo analisa a demanda dos usuários quanto ao cuidado humanizado na atenção primária à saúde. Estudo descritivo com 345 usuários de um serviço de saúde em um município do nordeste do Brasil. A procura por serviços e o cuidado humanizado (respeito e educação, atenção, interesse, rapidez no atendimento e repasse de informação) foram estudados. O cuidado humanizado e a satisfação do usuário estão diretamente relacionados ao acolhimento recebido por funcionários e profissionais de saúde. A perspectiva do usuário sobre a qualidade da atenção e o respeito e educação constituem fatores necessários a um relacionamento médico/paciente sensível e humano.
The paper analyzes the users’ demand concerning humanized care in the primary healthcare. Descriptive study was held with 345 users of a service in a city of the Northeast, Brazil. The service demanded on the day of the interview, waiting time for attendance and humanized care (respect and education, care, interest, fast attendance and distribution of information) are examined. The humanized care and the satisfaction of the user are directly related to the reception by the staff and health professionals. The user's perspective over the care quality and the respect and education constitute necessary factors to a human and sensitive doctor/patient relationship.
Humanização constitui relevante tema para a saúde pública, seja em termos filosóficos1, seja relativo a aspectos práticos dos cuidados sanitários2. Em um sentido, humanizar implica reduzir as inequidades em saúde1, o que implica, entre alguns aspectos, compreender o significado da saúde relacionado à esfera do bem‐estar subjetivo e à qualidade de vida. Tal entendimento sugere uma articulação entre dimensões da saúde (estar livre de doenças, funcionamento normal do organismo) com componentes da qualidade de vida (integração em redes sociais, visão positiva sobre a vida)3. Na esfera da atenção em saúde, humanização implica também na qualidade dos cuidados, a partir dos serviços públicos disponíveis aos cidadãos, sendo relevante indicador para a satisfação dos pacientes, conforme diversos estudos apontam4,5.
O termo humanização compreende a capacidade de oferecer atendimento de qualidade, combinando domínio tecnológico (dos processos, comunicação e equipamentos) e esfera subjetiva (relacionamento interpessoal)6. Enquanto cuidado situa‐se no campo da atenção integral, propiciando ao indivíduo o desenvolvimento de sua capacidade de superar os efeitos da doença como fenômeno social, existencial e cultural7.
No início dos anos 1990, o termo «humanização» foi empregado no âmbito da saúde no Brasil, como princípio em 2 programas de assistência à saúde: Programa de Humanização no Pré‐Natal e Nascimento8 e Programa de Humanização da Assistência Hospitalar9. Sendo legitimado quando o Ministério da Saúde regulamentou a Política Nacional de Humanização, em 20049. Esta política tem como objetivo desenvolver a humanização nas práticas da saúde coletiva. Considera‐se que grande parcela dos serviços de saúde demanda um atendimento sempre muito maior do que o número de profissionais de saúde que executa tal serviço, podendo ocasionar um atendimento deficitário9. Além disso, este cenário revela um modelo tradicional de organização da demanda por meio da entrega de fichas e marcação no balcão, gerando filas para o atendimento10.
O Ministério da Saúde desenvolveu a Política Nacional de Humanização em sintonia com os princípios gerais do Sistema Único de Saúde (SUS), entre os quais se destacam a integralidade, a universalidade, a equidade e a descentralização da atenção e da gestão. Assim sendo, o próprio Governo reconhece que, para o avanço do SUS, e de conformidade com suas diretrizes, é forçoso pôr em desenvolvimento essa política e que reconheça, entre diversos itens, a fragmentação do processo de trabalho, a precária interação das equipes de saúde, o desrespeito aos direitos dos usuários, o baixo investimento em qualificação e a burocratização dos sistemas de gestão11.
A atenção primária à saúde no Brasil consolida‐se por meio da estratégia saúde da família (ESF), expandindo os serviços à população em geral, particularmente nas camadas mais pobres12. A ESF desenvolve densa penetração social, considerando os fatores socioeconômicos, epidemiológicos e culturais, cobrindo grandes áreas, o que o torna um campo rico para a implementação e avaliação continuada do Humaniza SUS.
O presente estudo analisa a visão dos usuários quanto à demanda e atuação profissional na perspectiva do cuidado humanizado nos serviços de saúde da atenção primária à saúde.
MétodoEstudo descritivo com usuários da atenção primária à saúde de um município de região metropolitana no nordeste brasileiro. Estudo realizado no período de janeiro a março de 2007.
O estado do Ceará está localizado no nordeste do Brasil, com área total de 148.825,6 km2, sendo a quarta extensão territorial da região. É composto atualmente por 184 municípios e 2 regiões metropolitanas segundo a Secretaria do Planejamento e Gestão (SEPLAG)13. Estima‐se uma população de mais de 8 milhões de pessoas, 75% delas residindo em áreas urbanas, sendo que mais de 99% dessa população vivem em áreas urbanas e mais de 96% da população têm acesso à energia elétrica em seus domicílios e 92% têm acesso à água tratada. A cobertura das unidades de atenção primária à saúde (UAPS) no estado é de 71,4%14.
O município de Fortaleza localiza‐se em uma dessas regiões metropolitanas e é capital do Ceará, onde vivem mais de 2,4 milhões de habitantes e a taxa de escolarização é de 89,4%15. A rede de saúde pública de Fortaleza é composta de 92 UAPS, um centro de especialidade médica, um hospital de alta complexidade e 10 hospitais de média complexidade15. Foram selecionadas 5 UAPS distribuídas em 5 Secretarias Executivas Regionais (SER). O cálculo da amostra estratificada de usuários com idade acima de 18 anos que procuravam atendimento nas UAPS considerou uma proporção de 50% de usuários satisfeitos com a humanização, erro amostral de 5% e intervalo de confiança de 95%, totalizando 345 usuários.
Para a coleta de dados, aplicou‐se um formulário pré‐codificado, testado e dividido em 3 partes: dados socioeconômicos (sexo, idade, estado conjugal, escolaridade, renda familiar, número de pessoas por residência); caracterização da demanda pelo serviço de saúde (procura por 3 serviços, serviço que procura no dia da entrevista, tempo de espera para atendimento e preparação dos profissionais da UAPS); cuidado humanizado (respeito e educação, atenção, interesse, rapidez no atendimento e repasse de informação) (Anexo 1). Este instrumento foi aplicado por acadêmicos de medicina e de ciências sociais da Universidade Estadual do Ceará (UECE), quando os usuários aguardavam atendimento nas UAPS.
Os dados foram analisados no programa de computação SPSS 15.0 for Windows. Realizou‐se uma análise de estatística descritiva das variáveis. O cuidado humanizado foi classificado em «respeito e educação», «atenção», «interesse», «rapidez no atendimento» e «repasse de informação», sendo que sua avaliação baseou‐se em conceitos: muito satisfeito, satisfeito, insatisfeito e muito insatisfeito, atribuídos pelos usuários.
A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UECE, sendo conduzida de acordo com a Resolução n.o 196/9616.
ResultadosEm relação às características socioeconômicas dos 345 usuários, observamos uma média de idade de 37,4 anos (±14,6), variando entre 18‐86 anos e 80,9% na faixa etária entre 20‐59 anos; o sexo feminino predominante (85,5%) e 54,3% eram casados. Quanto à escolaridade, a maioria (51,3%) informou que concluiu o ensino médio fundamental e apenas 3,1% dos usuários completaram o ensino superior. A renda média da família foi de 1,3 salários mínimos, variando de 0‐7,3 salários mínimos. Cerca de 60% dos usuários moravam com mais de 4 pessoas (tabela 1).
Distribuição dos usuários da atenção primária à saúde, segundo as variáveis socioeconômicas
Variáveis | n | % |
Idade (anos) | ||
Abaixo de 20 | 30 | 8,7 |
20‐39 | 176 | 51,0 |
40‐59 | 103 | 29,9 |
Acima de 60 | 36 | 10,4 |
Sexo | ||
Feminino | 295 | 85,5 |
Masculino | 50 | 14,5 |
Estado conjugal | ||
Solteiro | 111 | 32,2 |
Casado | 122 | 35,4 |
Separado/divorciado | 20 | 5,8 |
Vive c/companheiro | 71 | 20,6 |
Viúvo | 21 | 6,1 |
Escolaridade | ||
Ensino fundamental | ||
Incompleto | 53 | 15,4 |
Completo | 124 | 36,2 |
Ensino médio completo | 138 | 40,4 |
Ensino superior completo | 11 | 3,2 |
Renda familiar* | ||
0‐1 | 268 | 77,7 |
1‐2 | 51 | 14,8 |
>2 | 18 | 5,2 |
Número de pessoas por residência | ||
1‐3 | 133 | 38,6 |
4‐6 | 172 | 49,9 |
>7 | 40 | 11,5 |
Fonte:13. (n=345).
Os 3 serviços mais procurados foram os serviços médicos, sala de preparo (verificação da pressão, curativos) e o serviço de farmácia (dispensação de medicamentos) em ambos os sexos e na faixa etária de 20‐39 anos. O atendimento médico foi o serviço mais procurado no dia da entrevista, com tempo médio de espera de 105,1 minutos e o atendimento de enfermagem apresentou menor demanda, com tempo médio de espera de 53,2 minutos. Os exames complementares foram os mais demandados por usuários com menos de 20 anos e adultos acima de 40 anos (tabela 2).
Distribuição dos usuários da atenção primária à saúde, segundo variáveis relativas à demanda
Variáveis | n | % |
Três serviços que mais procura | ||
Atendimento médico+sala de preparo+farmácia | 77 | 22,3 |
Atendimento médico+dentista+farmácia | 50 | 14,5 |
Atendimento médico+farmácia+exames complementares | 42 | 12,2 |
Atendimento médico+farmácia | 43 | 12,5 |
Atendimento médico+dentista | 17 | 4,9 |
Atendimento médico+sala de preparo | 12 | 3,5 |
Atendimento médico (isolado) | 62 | 18,0 |
Outros | 42 | 12,1 |
Serviço que procura no dia da entrevista | ||
Atendimento médico | 219 | 63,5 |
Dentista | 37 | 10,7 |
Sala de preparo | 20 | 5,8 |
Farmácia | 16 | 4,6 |
Encaminhamento e recebimento de exame | 16 | 4,6 |
Atendimento de enfermagem | 10 | 2,9 |
Outros | 27 | 7,9 |
Tempo de espera (em minutos) | ||
1‐5 | 14 | 4,1 |
6‐15 | 27 | 7,8 |
Acima de 15 | 241 | 69,9 |
Não souberam estimar o tempo | 63 | 18,2 |
Preparação dos profissionais de saúde | ||
Muito preparados | 28 | 8,1 |
Preparados | 202 | 58,6 |
Pouco preparados | 99 | 28,7 |
Não são preparados | 15 | 4,3 |
Não respondeu | 1 | 3,0 |
Fonte:13 (n=345).
Observou‐se um tempo médio de espera para qualquer atendimento das UAPS de 93,4 minutos, variando entre um minuto e 7 horas de espera. Quase todos os serviços oferecidos nas UAPS eram realizados por agendamento prévio. A maioria (70%) dos usuários considera que os profissionais estão preparados para desempenhar suas funções (tabela 2).
Na análise sobre o cuidado humanizado dos usuários em relação aos funcionários evidenciou‐se que a maioria está satisfeita com o atendimento desses funcionários, sendo que «respeito e educação» é o aspecto mais importante nesta avaliação. Um terço deles considera que foi bem acolhido. Verificou‐se uma insatisfação dos usuários quanto à «rapidez no atendimento» (34,5%). Na análise dos usuários em relação aos profissionais de saúde, observou‐se uma proporção de «muito satisfeito» para «respeito e educação» (27,5%) e «atenção» (25,5%). Também se verificou uma proporção menor de usuários insatisfeitos quanto à «rapidez no atendimento» (19,9%), conforme a tabela 3.
Visão dos usuários da atenção primária à saúde sobre o cuidado humanizado prestado por funcionários e profissionais de saúde
Cuidado humanizado | Muito satisfeito n (%) | Satisfeito n (%) | Insatisfeito n (%) | Muito insatisfeito |
Funcionários | ||||
Respeito e educação | 33 (9,6) | 216 (62,6) | 73 (21,2) | 23 (6,7) |
Atenção | 27 (7,8) | 202 (58,6) | 86 (24,9) | 30 (8,7) |
Interesse | 24 (7,0) | 176 (51,0) | 107 (31,0) | 38 (11,0) |
Rapidez no atendimento | 19 (5,5) | 142 (41,2) | 119 (34,5) | 65 (18,8) |
Repasse de informação | 28 (8,1) | 178 (51,6) | 98 (28,4) | 41 (11,9) |
Profissionais de saúde | ||||
Respeito e educação | 95 (27,5) | 219 (63,5) | 24 (7,0) | 6 (1,7) |
Atenção | 88 (25,5) | 213 (61,7) | 34 (9,9) | 10 (2,9) |
Interesse | 60 (17,4) | 210 (60,9) | 55 (15,9) | 20 (5,8) |
Rapidez no atendimento | 61 (17,7) | 195 (56,5) | 66 (19,1) | 23 (6,7) |
Repasse de informação | 64 (18,6) | 217 (62,9) | 46 (13,3) | 18 (5,2) |
Fonte:13 (n=345).
O método empregado possibilitou um estudo sobre o cuidado humanizado em UAPS, a partir de uma amostra de usuários que procuram atendimento nessas UAPS. O estudo de Viana et al.17 reconhece a ampliação da rede de atenção primária através da acessibilidade geográfica, garantindo confiabilidade das informações analisadas. Percebe‐se que o acesso e o acolhimento como construção do cuidado integral constituem‐se elementos de importância para gestão e avaliação dos serviços18.
A utilização dos serviços de saúde por mulheres pobres condiz com o descrito na literatura19. O estudo aponta que pessoas de nível socioeconômico mais baixo utilizam mais os serviços de saúde por terem mais acesso19. A faixa etária de maior proporção que utiliza os serviços de saúde foi menor quando comparada com outro autor20. Os idosos com maior idade do estudo apresentaram uma frequência baixa de utilização dos serviços.
A satisfação do usuário está diretamente ligada ao atendimento médico, independentemente da localização ou dos recursos disponíveis pela UAPS. A procura pelo atendimento médico revela que o modelo de atenção primária à saúde no Brasil ainda continua centrado na consulta médica e na abordagem da doença21, mesmo assim, reconhece‐se a existência de um novo modelo de atenção primária à saúde, voltado para a ESF, onde novas práticas de saúde podem ser desenvolvidas para aproximar o usuário do profissional de saúde.
O cuidado humanizado e a satisfação do usuário estão vinculados ao acolhimento dos funcionários e dos profissionais de saúde. Na perspectiva do usuário, qualidade da atenção, respeito e educação, da parte de funcionários administrativos e de saúde, são indicadores do desejo por um relacionamento médico/paciente sensível e humano21.
Considerações finaisComo resultado da análise feita é cabível indicar algumas recomendações, enquanto eventuais diretrizes para o aperfeiçoamento das políticas de humanização em saúde, a partir do caso estudado. O cuidado humanizado, reconhecido como relacionamento profissional sensível, atencioso e competente, deve ser objeto de incentivo através de ações e programas institucionais. A avaliação permanente da política de humanização deve ser estimulada de modo a auxiliar nos mecanismos de qualificação e eficácia da atenção e da gestão. A valorização de práticas comunitárias em saúde (rodas de conversa, grupos de acolhimento, oficinas) podem se tornar aliados na efetivação dos serviços e programas de humanização. Estratégia relevante constitui a intensificação das políticas de capacitação dos servidores, favorecendo a participação e o compromisso entre os sujeitos envolvidos.
Finalmente, a satisfação dos usuários deve considerar diversas variáveis (respeito, educação, interesse, rapidez no atendimento, disponibilidade de medicamentos, atendimento médico) que atuam na qualidade dos serviços e no aprimoramento da humanização.
FinanciamentoEste artigo é resultado de pesquisa financiada pela Rede de Observatórios de Recursos Humanos em Saúde/ObservaRH CETREDE/UFC/UECE, Ministério da Saúde e Organização Pan‐americana de Saúde (OPAS).
Conflito de interessesOs autores declaram não haver conflito de interesses.
Agradecemos à Secretária Municipal de Saúde de Fortaleza, que viabilizou a realização deste estudo.