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Inicio Revista Portuguesa de Saúde Pública Papéis profissionais de médicos e enfermeiros em Portugal: limites normativos ...
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Vol. 32. Núm. 1.
Páginas 45-54 (enero - junio 2014)
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Vol. 32. Núm. 1.
Páginas 45-54 (enero - junio 2014)
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Papéis profissionais de médicos e enfermeiros em Portugal: limites normativos à mudança
Skill mix between physicians and nurses in Portugal: Legal barriers to change
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Marta Temido
Autor para correspondencia
, Gilles Dussault
Unidade de Ensino e Investigação em Saúde Internacional e Bioestatística, Instituto de Higiene e Medicina Tropical, Centro Colaborador da Organização Mundial da Saúde para Política e Planeamento em Saúde, Centro de Malária e outras Doenças Tropicais, Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, Portugal
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Resumo
Introdução

Em Portugal, a análise da composição da força de trabalho em saúde indicia uma combinação ineficiente de papéis de médicos e enfermeiros. Uma das respostas possíveis para o problema pode ser encontrada no alargamento de funções da profissão de enfermagem, visto que a evidência demonstra que esta é uma opção que pode contribuir para melhorar o desempenho dos sistemas de saúde em termos de eficiência e acesso. Sabendo‐se que o quadro normativo que sustenta cada uma das profissões pode representar um limite à revisão do respetivo campo de exercício, avalia‐se a necessidade de mudanças no ordenamento jurídico português para um alargamento das fronteiras da enfermagem.

Métodos

Revisão da literatura publicada e não publicada e análise documental.

Resultados

Constatou‐se que no ordenamento jurídico português não há uma definição de ato médico, mas existe uma reserva de exercício sobre os atos de diagnóstico médico, de prescrição terapêutica e de gestão autónoma do doente. Constatou‐se também que outros atos, funcionalmente considerados como da profissão médica, podem ser delegados; e que muitos outros são considerados exclusivos da profissão médica apenas por força da norma social que resulta das práticas instituídas.

Conclusão

Apenas a intenção de atribuir aos enfermeiros funções nos domínios sob reserva médica absoluta exigirá prévias alterações legais e regulamentares. Existe espaço normativo para uma utilização mais efetiva das competências dos enfermeiros, suscetível de contribuir para um melhor desempenho do sistema de saúde português. A exequibilidade legal da mudança não deve fazer perder de vista que o sucesso de uma opção política depende do consenso social que reúne, e que, em Portugal, alguns parceiros manifestam reserva quanto à expansão do campo de atuação da profissão de enfermagem.

Palavras‐chave:
Combinação de papéis profissionais
Médicos
Enfermeiros
Limites legais e regulamentares
Mudança
Conteúdo funcional
Abstract
Introduction

The healthcare workforce composition in Portugal indicates an inefficient combination of doctors’ and nurses’ roles. One of the possible answers to this problem could be the expansion of nursing staff responsibilities. Evidence shows that this option can improve the performance of healthcare systems, in terms of efficiency and access. Knowing that the legal framework that regulates each of these professions can hinder the review of their respective scope of practice, we assessed the need to change the Portuguese law in order to allow adjustments in nursing staff tasks’ boundaries.

Methods

Review of publish and non‐published literature and document analysis.

Results

We found that in the Portuguese law there is no definition of the medical act. There is, however, a regulatory protection on the exercise of medical diagnosis acts, drugs prescription and autonomous management of patients. We also observed that other actions considered unique to the medical profession, and many are so considered merely because of social conventions, can be delegated.

Conclusions

The intent of attributing to the nursing staff tasks previously held solely by medical doctors will need prior legal changes. There is still normative framework for a more effective use of nursing staff skills in order to attain a better performance by the Portuguese health care system. But the success or failure of a political strategy does not depend only on its legal feasibility; social acceptability also must be considered and some Portuguese stakeholders expressed reservations in supporting a nurse's scope of practice enhancement.

Keywords:
Skill mix
Physicians
Nurses
Legal and regulatory barriers
Change
Practice
Texto completo
Introdução

Encontrar a combinação adequada de recursos humanos constitui um dos desafios que se colocam a todos os sistemas de saúde1,2, justificando uma importante área de investigação em torno da divisão do trabalho entre os vários provedores de serviços e da mescla de tarefas que compõem um papel profissional3–5. São vários os países em que se tem assistido a experiências de revisão da combinação de tarefas (skill mix) entre médicos e enfermeiros2, face à perceção de que a resposta para alguns problemas de eficiência e acesso pode ser encontrada numa redistribuição racional do trabalho, inclusivamente, suscetível de se traduzir em delegação de tarefas (task shifting)6. Ao nível da Europa, a Inglaterra regista a mais longa tradição de políticas de expansão do campo de exercício profissional da enfermagem, de início dirigida para os cuidados de saúde primários e depois alargada a outros níveis assistenciais, num processo justificado na estratégia governamental de conferir maior eficiência à utilização dos recursos disponíveis e alicerçado na introdução de curricula e treino diferenciados, bem como na definição de algoritmos de trabalho7. Mas também a Suécia8,9 e, mais recentemente, a Espanha desencadearam a implementação de novas estratégias nesta matéria, designadamente, atribuindo ao enfermeiro o papel de primeiro contacto com o sistema de saúde, no caso sueco, e legalizando a prescrição de alguns fármacos por enfermeiros, tanto no caso sueco como no espanhol. Embora as implicações deste tipo de opção em termos de análise custo‐benefício e de impacto no longo prazo não sejam claras10,11, estudos referem que, em áreas e condições específicas, os enfermeiros podem prestar cuidados equivalentes aos dos médicos7,11.

Em Portugal, o número de médicos/1.000 habitantes (3,8 em 2010)12 é superior ao da média dos países da União Europeia (3,4)12, enquanto o número de enfermeiros/1.000 habitantes (5,7)12 é inferior (7,9)12 e o rácio de enfermeiros/médico (1,5)12 é também muito inferior ao do grupo (2,5)12, indiciando‐se uma combinação ineficiente de recursos13.

Mas o tema da expansão de papéis dos enfermeiros apenas recentemente emergiu na agenda política nacional14–18. Ora, apesar de se reconhecer que muitas das alterações nos papéis dos profissionais de saúde ocorrem incrementalmente2, uma revisão do skill mix entre médicos e enfermeiros deve ser precedida, não só da avaliação da sua mais‐valia técnica, em termos de eficiência e qualidade2,19, mas também da ponderação da sua exequibilidade política, organizacional e económica20. Ao nível da exequibilidade política coloca‐se, entre outros aspetos, a questão da avaliação da necessidade de introdução de alterações normativas. É reconhecido que os limites do quadro legal e regulamentar que sustenta as profissões de saúde podem ser constrangimentos à revisão da definição do respetivo campo de exercício2,6,11. Assim, utilizando como referencial de abordagem a teoria da divisão do trabalho especializado nas sociedades modernas e, particularmente, os conceitos de «jurisdição»21 – ligação entre uma profissão e o seu trabalho – e de «disputa de jurisdição»21 – competição entre grupos profissionais e/ou grupos ocupacionais pelo controlo de determinada(s) tarefa(s) – este estudo procura: (i) compreender o quadro normativo do exercício da profissão de enfermagem em Portugal para, por referência à profissão médica, conhecer as competências partilhadas e proibidas; (ii) identificar, no contexto do país, situações em que o papel dos enfermeiros se modificou por via de um processo de evolução incremental; (iii) e perceber a necessidade de mudanças nos normativos portugueses para uma alteração da combinação de papéis entre médicos e enfermeiros.

Métodos

A pesquisa é de natureza exploratória e descritiva22. Recorreu‐se à análise documental para construir o quadro de competências normativamente atribuídas às profissões médica e de enfermagem e para compreender a eventual necessidade de lhe introduzir alterações, tendo em vista uma revisão da combinação dos respetivos papéis. Os materiais utilizados foram textos normativos23. Foram analisados os diplomas (Lei de Bases da Saúde, Estatuto da Ordem dos Enfermeiros, Regulamento do Exercício Profissional dos Enfermeiros, Estatuto da Ordem dos Médicos, Código Deontológico dos Médicos, Lei n.° 9/2009, de 4 de março) e os projetos de diplomas (Decreto registado na Presidência do Conselho de Ministros n.° 389/98/MS e Projeto de Lei n.° 91/VIII de 1999) relacionados com o quadro normativo das competências da profissão de enfermagem e médica em Portugal. Os documentos foram sujeitos a uma análise de conteúdo de natureza qualitativa22,23; como unidade de registo considerou‐se o tema – «Ato médico», «Ato de enfermagem», «Diagnóstico, tratamento e prescrição», «Autonomia, interdependência e trabalho em equipa», «Delegação» – e como unidade de enumeração a presença/ausência das unidades de registo.

Complementarmente, para identificar situações de evolução incremental do papel dos enfermeiros, realizou‐se uma pesquisa eletrónica na base Google Scholar orientada por palavras‐chave.

ResultadosO quadro normativo do exercício das profissões médica e de enfermagem em Portugal

Em Portugal, o enquadramento do exercício profissional dos médicos e dos enfermeiros está, maioritariamente, cometido às ordens profissionais. Refira‐se, a este propósito, que as ordens profissionais atualmente existentes no campo das profissões da saúde são, na sua maioria, criações normativas recentes. Efetivamente, depois de a Revolução Francesa ter decretado, juntamente com a liberdade de comércio, indústria e profissão, a abolição das corporações, no período entre as 2 Grandes Guerras, o modelo de Estado corporativo recuperou o papel dos corpos profissionais na regulação das profissões liberais. E ainda que, entretanto, o corporativismo tenha sido, também ele, derrotado, mantém‐se, generalizadamente, a sujeição das designadas profissões liberais a um sistema de regulação pública. No país, as ordens sobreviveram ao fim da organização corporativa, ainda que a falta de referência às ordens, na Constituição da República de 1976, tenha conduzido à contestação da sua legitimidade, designadamente no que se referia ao aspeto da filiação obrigatória, por ofensa da liberdade negativa de associação e da liberdade de profissão24. Mas esta controvérsia veio a ser definitivamente superada na revisão constitucional de 1982 que consagrou, expressamente, as associações públicas; e mais de 20 anos depois, a Lei n.° 6/2008, de 13 de fevereiro, enquadrou a criação, organização e funcionamento de novas associações públicas profissionais. Recentemente, a Lei n.° 2/2013, de 10 de janeiro, veio trazer uma nova disciplina à matéria, no contexto dos objetivos de harmonização do reconhecimento das qualificações no espaço europeu e de eliminação dos requisitos injustificados ou desproporcionais ao acesso e exercício das profissões regulamentadas. No exercício das suas funções, as ordens dispõem, pois, de diversos poderes públicos, destacando‐se, para o que aqui importa, o poder regulamentar, cujo grau de autonomia está, naturalmente, vinculado pela lei.

Da análise do Estatuto da Ordem dos Enfermeiros25 sobressai o artigo 91.° relativo aos deveres do enfermeiro para com outras profissões, que refere, designadamente, o dever do enfermeiro de «atuar responsavelmente na sua área de competência e reconhecer as especificidades das outras profissões de saúde, respeitando os limites impostos pela área de competência de cada uma» e de «integrar a equipa de saúde, em qualquer serviço em que trabalhe, colaborando, com a responsabilidade que lhe é própria, nas decisões sobre a promoção da saúde, a prevenção da doença, o tratamento e recuperação», vincando, com nitidez, o carácter de interdependência das atuações de enfermagem, sem prejuízo da autonomia que, no limite das suas competências, também lhe reconhece.

No Código Deontológico da Ordem dos Médicos26, a natureza não subordinada do exercício médico, bem como o domínio exclusivo sobre certo tipo de atos, são os primeiros traços indeléveis. Sob a epígrafe «Independência dos médicos», o artigo 3.°, n.° 2 do Código dispõe, desde logo, que «em caso algum o médico pode ser subordinado à orientação técnica (…) de estranhos à profissão médica no exercício das funções clínicas». E o artigo 36.°, n.° 6 do mesmo normativo refere que «não é permitida a delegação de atos médicos quando se transfira para não médicos as competências de estabelecimento do diagnóstico, prescrição ou gestão clínica autónoma de doentes», consagrando expressamente o ato de diagnóstico, de prescrição e de gestão clínica autónoma de doentes como reserva de exercício. Ainda assim, e dado que este mesmo artigo 36.°, no seu n.° 4, refere que «quando delegar competências noutros profissionais de saúde, médicos ou não médicos devidamente habilitados, é dever do médico não ultrapassar nesta delegação as competências destes profissionais» parece concluir‐se que a delegação de atos médicos não é um interdito absoluto. Indelegáveis serão apenas os atos de diagnóstico, prescrição ou gestão clínica autónoma de doentes. De resto, nesta mesma linha vai o artigo 147.° do citado Código que, ao vedar ao médico «delegar atos médicos noutros profissionais de saúde, sem prévio conhecimento e autorização da Ordem dos Médicos», salvaguarda a possibilidade de, cumprido este requisito, poder haver lugar a delegação. O mesmo sucedendo relativamente ao artigo 151.° do Código que, ao referir que «o médico não deve permitir que os seus colaboradores não médicos prestem aos doentes serviços da sua competência que não tenha prescrito», baliza a respetiva margem de atuação por uma prescrição médica inicial. Portanto, certos atos médicos – que não os atos de diagnóstico, prescrição ou gestão clínica autónoma de doentes – poderão, em certos casos, ser delegados em enfermeiros como em outros profissionais de saúde.

Ultrapassada a análise normativa com fonte nas associações públicas profissionais, considere‐se a análise do Regulamento do Exercício Profissional dos Enfermeiros27, de onde também resulta que há papéis vedados aos enfermeiros. Referindo a enfermagem como a «(…) profissão que, na área da saúde, tem como objetivo prestar cuidados de enfermagem (…)» (artigo 4.°, n.° 1), o Regulamento define, depois, cuidados de enfermagem como «(…) intervenções autónomas e interdependentes a realizar pelo enfermeiros no âmbito das suas qualificações profissionais (…)» (artigo 4.°, n.° 4), considerando «(…) autónomas as ações realizadas pelos enfermeiros, sob a sua única e exclusiva iniciativa e responsabilidade, de acordo com as respetivas qualificações profissionais (…), com os contributos na investigação em enfermagem (…)» (artigo 9.°, n.° 2) e «(…) interdependentes as ações realizadas pelos enfermeiros de acordo com as respetivas qualificações profissionais, em conjunto com outros técnicos, para atingir um objetivo comum, decorrentes de planos de ação previamente definidos pelas equipas multidisciplinares em que estão integrados e das prescrições ou orientações previamente formalizadas (…)» (artigo 9.°, n.° 3). Daqui decorre, novamente, que a noção de cuidados de enfermagem é encontrada no contexto da atuação da equipa de saúde, emergindo das diferentes responsabilidades sobre iniciativas tomadas no seio dessa equipa. Na verdade, se há ações cuja iniciativa radica na exclusiva responsabilidade do enfermeiro, outras há, também, que decorrem de prescrições ou orientações formuladas por outros técnicos, designadamente, e para o que aqui interessa, de prescrições e orientações médicas. Portanto, há intervenções que os enfermeiros não podem, autonomamente, desenvolver e que constituem atos que, por lhes estarem vedados, consubstanciam competências proibidas. Este é, desde logo, o caso do ato de diagnóstico, que não se confunde com o diagnóstico de enfermagem que o Regulamento do Exercício Profissional dos Enfermeiros inclui nos cuidados de enfermagem. Mas é sobretudo o caso do ato de prescrição terapêutica que o próprio Regulamento, no seu artigo 9.°, n.° 4, alínea e), descreve com as características de intervenção interdependente, ao referir que os enfermeiros «(…) procedem à administração da terapêutica prescrita, detetando os seus efeitos e atuando em conformidade, devendo, em situação de emergência, agir de acordo com a qualificação e os conhecimentos que detêm, tendo como finalidade a manutenção ou recuperação das funções vitais (…)». Ou seja, aos enfermeiros compete apenas a administração terapêutica subsequente à prescrição, salvaguardadas as situações de emergência, para além dos casos óbvios de medicamentos não sujeitos a receita médica. Isto, aliás, em coerência com a já referida disposição do artigo 36.°, n.° 6 do Código Deontológico dos Médicos, que se refere aos atos de diagnóstico e prescrição como insuscetíveis de delegação.

Resulta, portanto, que o diagnóstico médico e a prescrição terapêutica consubstanciam competências proibidas para a profissão de enfermagem. Mas a prescrição não se esgota na prescrição terapêutica. Com efeito, a prescrição pode referir‐se, também e por exemplo, a meios complementares de diagnóstico e a ajudas técnicas. E se a prescrição de ajudas técnicas, seja por enfermeiros ou por outros técnicos de saúde, parece limitada normativamente (v.g., segundo os formulários em vigor, para efeitos de benefício do subsídio aprovado pelos secretários de Estado do Emprego, adjunto do ministro da Saúde e da Solidariedade e Segurança Social, a prescrição de ajudas técnicas tem de ser realizada no âmbito de consulta externa realizada por médico), a prescrição de alguns meios complementares de diagnóstico por enfermeiros tem, em alguns domínios, um claro enquadramento legal. É o caso da prescrição dos exames necessários para acompanhar a gravidez fisiológica por enfermeiros especialistas em saúde materna e obstétrica28.

Na ausência de qualquer alteração, os atos praticados com desrespeito por aquelas fronteiras são, inclusivamente, suscetíveis de preencher o tipo de crime de usurpação de funções, tal como se encontra previsto e punido no artigo 358.°, n.° 2 do Código Penal29.

Finalmente, apesar de a Lei de Bases da Saúde referir que o conceito de ato médico é definido na lei30, até à data, Portugal não aprovou legislação neste domínio, o que não permitiu encontrar, nesta sede, apoios para identificar quais as competências que – por consubstanciarem reserva legal exclusiva da profissão médica – são competências interditas à profissão de enfermagem. Em 1997, a Ordem dos Médicos apresentou ao Ministério da Saúde as designadas «Bases para a legislação do Ato Médico», que vieram a consubstanciar uma proposta legislativa que foi aprovada pelo Governo31. O diploma referia que «(…) constitui ato médico a atividade de avaliação diagnóstica, prognóstica e de prescrição e execução de medidas terapêuticas relativa à saúde das pessoas, grupos ou comunidades (…)»31, ao mesmo tempo que reservava a competência para a sua prática aos «(…) licenciados em medicina regularmente inscritos na Ordem dos Médicos (…)»31. E definia, ainda, as condições da participação de outros profissionais de saúde no ato médico, limitando‐as à prática «(…) sob orientação ou mediante prescrição médica (…)»31. Contra este projeto de definição de ato médico pronunciaram‐se vários sectores da sociedade portuguesa. Desde logo, as associações de medicinas não convencionais32; depois, a Ordem dos Enfermeiros, então em fase de instalação: «(…) Porque no projeto de decreto‐lei em apreço o conceito de ato médico envolve a esfera de competência de outros profissionais, a Comissão Instaladora da Ordem dos Enfermeiros entendeu ser indispensável assumir uma posição relativamente a esta matéria (…).»33 Por fim, o presidente da República decidiu vetar o decreto governamental34, suscitando acesa reação da Ordem dos Médicos: «(…) Sua excelência o presidente da República, que pela elevação do cargo que ocupa nos obriga a merecer o maior respeito, prestou uma mau serviços aos portugueses, prejudicou a saúde e ofendeu os médicos (…)»35, escrevia em comunicado a Ordem dos Médicos. Mas uma nova tentativa de fazer aprovar legislação sobre esta matéria ocorreu quando, em 2000, pela mão de alguns deputados do Partido Social‐Democrata, foi apresentado à Assembleia da República um segundo projeto de lei sobre o ato médico. Na sua exposição de motivos referia‐se: «(…) Em nosso entender, o ato médico só diz respeito à atividade exercida por licenciados em medicina regularmente inscritos na Ordem dos Médicos e segundo os conhecimentos da ciência médica. Não se trata, portanto, da definição de todo o ato terapêutico, nem bem assim estão abrangidas outras intervenções autónomas que igualmente participam dos cuidados de saúde. Em sentido estrito define‐se assim que a atividade de avaliação diagnóstica, prognóstica, de prescrição e execução de medidas terapêuticas relativa à saúde das pessoas, grupos ou comunidades caracteriza o ato médico, como a prática clínica médica claramente comprova (…).»36 Este projeto de lei não chegou a ser agendado para discussão em plenário. E, em 2005, após referendo, a Secção Regional do Norte da Ordem dos Médicos encabeçou, sem sucesso, uma nova tentativa de definição de ato médico com base em projeto de conteúdo semelhante ao das anteriores iniciativas. Recentemente, os órgãos de comunicação interna da Ordem dos Médicos noticiaram a alegada abertura do presidente da República para aprovar um projeto de lei de definição de ato médico, caso a proposta encontrasse um consenso entre os diferentes parceiros na área da saúde, demonstrando que, apesar de tudo, esta é uma controvérsia que está longe de ser encerrada, mesmo que um determinado entendimento jurídico considere que «(…) a espessura e a densidade do conceito de ato médico saem reforçadas pela inexistência de uma sua definição material (…)»37.

A evolução incremental da profissão de enfermagem em Portugal

Muito embora uma revisão da literatura permita identificar algumas tentativas de classificação e de sistematização das formas de mudança da combinação de competências das profissões médica e de enfermagem – de que é exemplo a taxonomia proposta por Sibbald et al. enhancement, substitution, delegation e inovation10 – é importante sublinhar que muitas das alterações nos papéis dos profissionais de saúde ocorrem incrementalmente2, isto é, as mudanças dos papéis profissionais desenvolvem‐se, espontaneamente, como resposta à dinâmica das necessidades sociais, na medida em que alguns grupos começam a desempenhar certos papéis e outros a abandoná‐los.

Uma pesquisa orientada pelas palavras‐chave «encaminhamento de doentes por enfermeiros», «avaliação de doentes por enfermeiros» permitiu encontrar, para Portugal, 2 exemplos que se crê poderem configurar casos de modificação social do conteúdo da profissão de enfermagem: o papel dos enfermeiros no «Sistema de Triagem de Manchester» e na «Linha de Saúde 24».

Com efeito, o «Sistema de Triagem de Manchester» – sistema de triagem hospitalar, baseado num algoritmo clínico, que permite identificar o critério de gravidade inerente à queixa apresentada pelo utente, indicando a prioridade com que o seu estado deve ser atendido – e a «Linha de Saúde 24» – sistema de triagem telefónica, também baseado num algoritmo clínico, que permite percecionar o grau de severidade de cada caso e adequar o encaminhamento do utente para um determinado serviço de saúde à sua efetiva condição – constituem modelos de organização da atividade assistencial que encontram forte respaldo no trabalho dos enfermeiros triadores.

O facto de o sistema de triagem de Manchester ser, hoje, utilizado na generalidade dos serviços de urgência dos hospitais portugueses, não pode fazer esquecer que este modelo continua a ser alvo de importantes desconfianças por defensores da reserva do ato médico, destacando‐se, a este propósito, o recente alerta da Ordem dos Médicos sobre os riscos deste task shifting, face à incapacidade técnica dos enfermeiros para detetarem e resolverem quadros clínicos que ultrapassam os descritivos dos protocolos38. O mesmo se tendo passado, aliás, no quadro do início do funcionamento da Linha de Saúde 24, serviço de aconselhamento terapêutico, em termos de crítica da Ordem dos Farmacêuticos. De resto, o mesmo posicionamento foi registado da parte da Associação Portuguesa de Enfermeiros de Emergência Pré‐Hospitalar, numa outra situação de evolução de conteúdos profissionais que se pode considerar semelhante às que se vêm descrevendo, relativa ao desempenho pelos técnicos de operações de telecomunicações de emergência de funções anteriormente atribuídas a enfermeiros, no âmbito do Centro de Orientação de Doentes Urgentes.

Discussão

Face a uma análise do sistema de saúde português, a revisão da combinação de papéis profissionais, designadamente de médicos e enfermeiros, surge como um dos grandes desafios para a próxima década14,15.

Na verdade, o tema da expansão de papéis dos enfermeiros é relativamente recente no contexto do país, tendo começado a ser objeto de debate, principalmente, por iniciativa da Ordem dos Enfermeiros, emergindo na agenda política por influência do Ministério da Saúde no âmbito de um conjunto de iniciativas estratégicas para reforçar a eficiência do sistema. Com efeito, em meados de 2011, no âmbito do III Congresso Nacional da Ordem dos enfermeiros, subordinado ao tema «Desafios em saúde: o valor dos cuidados de enfermagem», foi apresentado um estudo em que se referia que «(…) num contexto de múltiplos fatores que afetam custos, um maior rácio enfermeiros/médicos traduz‐se em menores custos (…)»16, efeito que vai no mesmo sentido em centros de saúde e em hospitais e que constitui evidência preliminar, para Portugal, dos mesmos efeitos que se encontram na literatura internacional, concluindo‐se que: «(…) Se enfermeiros realizarem atividades em casos que decorrem de cuidados de enfermagem e que são atualmente feitos pelos médicos, estes podem, com esse tempo liberto, realizar outras atividades.»16 Uns meses depois, tendo como pressupostos os compromissos assumidos pelo país no Memorando de Entendimento entre Portugal e a Comissão Tripartida CE/BCE/FMI e por solicitação do ministro da Saúde, a Entidade Reguladora da Saúde publicava um relatório designado «Análise da Sustentabilidade Financeira do Serviço Nacional de Saúde» no qual inscrevia a «(…) combinação eficiente das profissões de saúde(…)»17 como um dos aspetos nucleares para a obtenção de ganhos de eficiência; nele se referia expressamente que: «(…) Existem atos mais básicos que ainda hoje são praticados por médicos, mas que podem ser exercidos, com ou sem supervisão por médico consoante a situação concreta, por outros profissionais de saúde, por exemplo enfermeiros ou técnicos de diagnóstico e terapêutica, desde que se encontrem incluídos no leque de competências adquiridas nas suas formações específicas.»17 De igual modo, na sequência dos trabalhos desenvolvidos pelo Grupo Técnico para a Reforma Hospitalar, no final de 2011, foi publicado o relatório «Os cidadãos no centro do sistema. Os profissionais no centro da mudança», no âmbito do qual se considerava a «(…) atribuição de novas atividades aos enfermeiros (…)»18 como uma das medidas para melhorar a eficiência dos hospitais, recomendando‐se que «(…) deverá ser definido um programa de implementação até ao final de 2012 (…). Em 2013, a transferência de tarefas deverá estar concluída e implementada.»18 Numa análise recente sobre a reforma do Estado e a promoção do crescimento económico, a própria OCDE veio recomendar a Portugal a revisão do skill mix das profissões de saúde de modo a garantir uma melhor resposta às novas necessidades assistenciais39.

Mas importa não esquecer que o desenvolvimento da enfermagem pela via da partilha de alguns papéis que são reservados ao exercício médico não beneficia de um consenso generalizado, designadamente no seio da própria profissão. Efetivamente, não prescindindo de sublinhar a evolução registada em Portugal, ao longo das últimas décadas, no ensino e no exercício profissional dos enfermeiros, alguns autores discutem se a enfermagem deverá evoluir numa lógica de apropriação de competências típicas do modelo biomédico ou antes numa perspetiva de «enfermagem avançada»40, em que se aprofundam as aptidões «centradas nas respostas humanas às transições vividas pelas pessoas e famílias ao longo do ciclo vital usando o conhecimento gerado pela investigação e teoria de enfermagem»40. Argumentando que se virá a debater a capacidade de alguns enfermeiros realizarem certas tarefas médicas a um custo mais baixo, os autores reclamam‐se defensores de um desenvolvimento da profissão pelo aprofundamento da teoria de enfermagem, visto não ser «coerente a redução das prioridades políticas em saúde às atividades de diagnóstico e tratamento», à luz dos perfis demográficos e epidemiológicos que corporizam as atuais necessidades em saúde40.

E importa, finalmente, sublinhar que a opção pelo alargamento do âmbito clínico do exercício da enfermagem é, sobretudo, controvertida no seio da profissão médica. Com efeito, considerando apenas alguns exemplos recentes, a propósito da instituição da figura do enfermeiro de família, é possível constatar que, em maio de 2012, o Conselho Regional do Norte da Ordem dos Médicos recusava a possibilidade de estes enfermeiros poderem acompanhar grávidas de baixo risco e doentes crónicos e de poderem prescrever medicamentos41, posição secundada, em março de 2013, pelo Conselho Nacional Executivo ao sublinhar a necessidade de respeitar a formação e a competência próprias de cada profissão de saúde, mantendo a «liderança responsável do médico de família» e contrariando «derivas autonómicas»42. De igual modo, agora a propósito do papel dos enfermeiros na triagem de prioridades da urgência hospitalar, é possível constatar que, em julho de 2013, a Ordem dos Médicos alertava para os riscos deste task shifting, com base no entendimento de que os protocolos de trabalho fundados em algoritmos de decisão revelam óbvias limitações quando aplicados por «profissionais sem formação em diagnóstico clínico» e incapazes de se aperceberem de quadros assistenciais potencialmente mais graves, invocando a desnecessidade desta opção num contexto nacional de dotação suficiente, e a prazo excedentária, de recursos humanos médicos38. Note‐se que, também em outros países, as entidades reguladoras profissionais manifestaram antagonismos semelhantes – foi, por exemplo, o caso dos Estados Unidos da América, onde a oposição da American Medical Association, diversamente da sua homóloga britânica, foi considerada um obstáculo à expansão do âmbito de exercício da profissão de enfermagem – que, em alguns casos, permanecem visíveis7,11.

Em qualquer circunstância, sublinha‐se que uma alteração da combinação de papéis de médicos e enfermeiros se confronta, em Portugal e à data, com certos limites normativos. Mas estes limites não inibem a existência de margem para uma redistribuição de trabalho.

Assim, da análise do quadro legal e regulamentar do exercício das profissões médica e de enfermagem resultou que:

  • Os atos de enfermagem dividem‐se entre aqueles que apenas dependem da iniciativa do enfermeiro, esgotando‐se na respetiva esfera de responsabilidade (intervenções autónomas), e aqueles que dependem da iniciativa de outro profissional de saúde, assumindo o enfermeiro unicamente a responsabilidade pela sua realização técnica (intervenções interdependentes).

  • Os atos de diagnóstico médico (diferentemente do diagnóstico de enfermagem), de prescrição terapêutica (diferentemente da prescrição não terapêutica) e de gestão autónoma de doentes constituem atos de reserva absoluta da profissão médica.

  • Os outros atos, funcionalmente considerados como atos da profissão médica, afiguram‐se suscetíveis de serem delegáveis em outros profissionais de saúde, designadamente, em enfermeiros, mediante autorização da Ordem dos Médicos e com os limites definidos por uma prescrição médica inicial.

Deste modo, não se vislumbra existir qualquer impedimento normativo a que os enfermeiros possam, por exemplo, prescrever meios complementares de diagnóstico. Pelo contrário, para que possam iniciar a prescrição terapêutica, designadamente, farmacológica, será necessário que, primeiro, se realizem alterações normativas.

Este foi, de resto, o caminho recentemente percorrido em Espanha – e, anteriormente, nos Estados Unidos, Nova Zelândia, Austrália, Canadá, Reino Unido e Suécia – onde se determinou que: «(…) Os enfermeiros, de forma autónoma, poderão indicar, usar e autorizar a dispensa de todos os medicamentos não sujeitos a prescrição médica. A indicação, uso e autorização da dispensa de determinados medicamentos sujeitos a prescrição médica por enfermeiros será regulamentada pelo Governo.»43 (nossa tradução).

Os exemplos de atos expressamente subtraídos ao âmbito de atuação da profissão de enfermagem, tal como os exemplos de atos suscetíveis de serem incluídos na esfera de intervenção dos enfermeiros, não devem, todavia, fazer esquecer as vastas zonas em que a norma sempre será omissa. No contexto português, os atos de referenciar doentes entre níveis de cuidados, de assinar uma carta de alta, de interpretar os resultados de exames laboratoriais, entre tantos outros, são, face às normas da prática instituída, atos que se inscrevem no âmbito de competências da profissão médica. O que tolhe o enfermeiro na sua realização? Seguramente, não a lei.

De resto, sem prejuízo da segurança jurídica que sempre será necessário acautelar, a opção por uma definição genérica de qual seja o campo de exercício das profissões de saúde e, em concreto, das profissões médica e de enfermagem – designadamente por referência à sua missão e não por escrutínio rigoroso das suas funções – parece ser a solução que melhor responde à constante evolução dos sistemas de saúde e à sua natureza complexa e adaptativa em resposta à dinâmica das necessidades assistenciais e à utilização racional dos recursos envolvidos2,11. Por exemplo, no Reino Unido os papéis profissionais incluídos no âmbito de atuação dos advanced practice nursing não estão taxativamente enunciados em nenhum normativo, o que reduz as barreiras à inovação; já em França a definição dos conteúdos funcionais de cada profissão, em termos do que lhe compete e do que lhe não compete fazer, é objeto de regulamentação nacional detalhada, o que, de alguma forma, constrange modificações dos papéis profissionais11.

Importa ter presente que a evolução dos conteúdos profissionais é um processo dinâmico, como bem descrevem as abordagens sociológicas à construção das profissões. Efetivamente, quer atribuindo o reconhecimento de uma profissão a critérios de legitimidade social – como defendiam as teorias funcionalistas44 que emergiram na década de 30 do século XX – quer recorrendo às relações de negociação e conflito através das quais uma ocupação se converte em profissão – como propunham os interaccionistas45 – ou mesmo partindo da crítica dos modelos profissionais, que classificavam como sistemas de mandarinato – como referia Gyaramati46, um dos autores nucleares das correntes antiprofissionalistas – estes modelos explicativos ajudam a compreender as profissões como realidades evolutivas, em termos históricos e sociais. Mas também permitem salientar o papel das relações de poder na construção das fronteiras entre as profissões, como resulta dos trabalhos de Freidson47, que expõem a divisão do trabalho como o resultado de um processo de negociação social em que um determinado grupo reivindica possuir particulares competências, adquiridas em instituições formais de educação, que lhe conferem, por parte do Estado, o privilégio de controlar o exercício de certas tarefas. E permitem, sobretudo, recorrer ao quadro analítico dado pelos conceitos de jurisdição e de disputa de jurisdição – introduzidos por Abbot21, um dos autores da escola sistémica – que descreve a história das profissões como a da luta de grupos ocupacionais pela reclamação de jurisdição sobre áreas de atividade que já existem e estão sob o domínio de outros grupos e apresenta o conhecimento abstrato controlado pelos grupos ocupacionais como o principal recurso na disputa jurisdicional e como a característica que melhor define uma profissão.

O conceito de profissão aparece, portanto, sempre associado ao domínio conjuntural que um determinado grupo ocupacional detém sobre um saber específico, atribuindo‐lhe o monopólio sobre o exercício de um conjunto de atividades, conferindo‐lhe autonomia de organização dessas atividades e garantindo‐lhe, por parte do Estado, legitimação de certos privilégios profissionais. Considerando, portanto, que a esfera de intervenção de cada profissão se firma ao longo da história da luta pela reserva de um saber específico, entende‐se que muitos aspetos da discussão sobre as fronteiras da profissão médica e de enfermagem, no nosso país, devem ser contextualizados a esta luz.

A constatação de que, no ordenamento jurídico português, existe espaço normativo para um alargamento do campo de exercício da profissão de enfermagem não poderá, contudo, fazer esquecer que a avaliação da exequibilidade política de uma opção deste tipo não se esgota ao nível da análise da sua exequibilidade legal. Neste sentido, a discussão sobre os resultados do presente estudo deve ser complementada pelas conclusões de uma investigação anterior48, realizada com o objetivo de conhecer o posicionamento dos stakeholders do sistema de saúde português relativamente ao diagnóstico de que uma revisão da combinação de papéis entre médicos e enfermeiros – designadamente por via do desenvolvimento de práticas avançadas de enfermagem – seria suscetível de contribuir para uma melhoria do desempenho do sistema em termos de eficiência e acesso. Neste estudo recorreu‐se à análise de conteúdo de entrevistas semiestruturadas, realizadas com interlocutores chave selecionados pela sua posição de relevo no sistema de saúde português (v.g., presidentes das secções regionais da ordem dos médicos e enfermeiros, diretores de escolas médicas e de enfermagem, diretores clínicos e de enfermagem de unidades de saúde) e à aplicação de questionário eletrónico, dirigido a conselhos executivos de agrupamentos de centros de saúde. Tendo sido possível concluir que o desenvolvimento de práticas avançadas de enfermagem beneficia, em Portugal, de um crescente consenso dos parceiros sociais – particularmente na área dos cuidados de saúde primários, onde as recentes reformas parecem ter gerado uma dinâmica de trabalho em equipa – não deixou de constatar‐se que a reserva com que certos sectores, não exclusivamente médicos, ainda consideram esta solução, mostra que há um vasto caminho a percorrer48. Como limitação deste estudo reconhece‐se que o facto de apenas uma das secções regionais da Ordem dos Médicos ter manifestado disponibilidade para a aplicação da entrevista reduziu a capacidade de efetuar uma apreensão abrangente do entendimento deste parceiro sobre a matéria; ainda assim, destaca‐se que a principal perceção colhida foi a de que esta não é considerada uma questão prioritária para o sistema de saúde português, visto não existir a carência de médicos que, noutros contextos, impulsionou a necessidade de uma diferente combinação de recursos.

De igual modo não poderá ser esquecido que a avaliação desta margem de substituibilidade de fatores de produção tem que tomar em linha de conta a necessidade de investimento na adequação das competências dos profissionais cujos papéis se opta por expandir, na revisão dos regimes remuneratórios instituídos face à atribuição de novas responsabilidades e na própria substituibilidade dos profissionais que viram a sua carga de trabalho aumentada. E, sobretudo, que a alocação de novas tarefas aos enfermeiros, libertando tempo de trabalho médico para atividades mais diferenciadas, terá de ser integrada numa estratégia de análise global da utilização da força de trabalho em saúde, cujo precário equilíbrio parece cada vez mais comprometido num contexto de crise financeira e de reestruturação da oferta em que se intensifica um êxodo preocupante.

Conclusões

Portugal, como a maioria dos países de alta renda, e muito especialmente os do continente Europeu, debate‐se com profundas alterações demográficas, resultantes do aumento da esperança média de vida, que contribuem, elas próprias, para transições epidemiológicas, com as suas conhecidas características de substituição das doenças transmissíveis por doenças não transmissíveis, de deslocação da carga de morbilidade e mortalidade dos grupos mais jovens para os grupos mais idosos e de transformação de uma situação em que predomina a mortalidade para outra na qual a morbilidade é dominante. Ora, as alterações demográficas e as transições epidemiológicas vieram despoletar um conjunto de novas necessidades de saúde. Porém, os modelos de organização tradicionais da atividade assistencial não têm conseguido satisfazer as necessidades emergentes, sendo preciso acautelar, entre outros aspetos, uma reorganização da força de trabalho em saúde que permita respostas que equilibrem um cenário de aumento da procura e de restrição da oferta.

A crise financeira mundial e os seus efeitos recessivos no crescimento económico, particularmente sentidos na zona euro e em Portugal, vieram agudizar este problema, pressionando o sector da saúde para encontrar respostas mais custo‐efetivas na utilização de orçamentos em queda.

Considerando que as políticas de recursos humanos devem posicionar as questões relativas aos profissionais de saúde no quadro da estratégia global de saúde do país e fundamentar‐se nos objetivos em saúde e em serviços, é este o contexto em que, no nosso país, surge o problema da necessidade de encontrar uma combinação mais eficiente das profissões médica e de enfermagem.

Efetivamente, no curto e médio prazo, o sistema de saúde português continuará a confrontar‐se com desequilíbrios entre oferta e procura de profissionais médicos e assimetrias geográficas na respetiva distribuição, que, provavelmente, irão aumentar em resultado da crise financeira em que o país se encontra mergulhado, com todas as suas repercussões em termos de equidade no acesso. O sistema de saúde português continuará também a debater‐se com um baixo reconhecimento social da profissão de enfermagem – de que a precariedade laboral, o nível salarial e a emigração são apenas sintomas que se vêm intensificando – que constitui uma barreira a práticas de enfermagem mais diferenciadas.

Verificou‐se que no ordenamento jurídico português não há uma definição de ato médico, mas existe uma reserva de exercício sobre os atos de diagnóstico médico, de prescrição terapêutica e de gestão autónoma do doente. Constatou‐se também que outros atos funcionalmente considerados como da profissão médica podem ser delegados e que muitos outros são considerados exclusivos da profissão médica apenas por força das normas da prática instituída.

A investigação realizada evidenciou, por um lado, que a combinação ineficiente das profissões médica e de enfermagem constitui um problema para o sistema de saúde português que, apesar de apenas recentemente inscrito na agenda política, vem conquistando as atenções de um número crescente de parceiros sociais, e, por outro, que apenas a intenção de atribuir aos enfermeiros funções indelegáveis exigirá prévias alterações normativas, havendo ainda um vasto âmbito de intervenção suscetível de ser previamente aproveitado. Assim, mesmo que prescindindo da discussão sobre os atos sob reserva médica à luz da evolução científica da profissão de enfermagem, é possível concluir que, vencida alguma inércia sistémica, existe espaço normativo para uma utilização mais efetiva das competências dos enfermeiros, suscetível de contribuir para um melhor desempenho do sistema de saúde português. A exequibilidade legal da mudança não deve fazer perder de vista que o sucesso de uma opção política depende, nomeadamente, do consenso social que reúne49, e que, em Portugal, alguns parceiros manifestam reserva quanto à expansão do campo de atuação da profissão de enfermagem.

Conflito de interesses

Os autores declaram não haver conflito de interesses.

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