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Inicio Revista Portuguesa de Saúde Pública Pesquisa qualitativa, saúde e uso de drogas: desdobramentos e implicações teÃ...
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Vol. 32. Núm. 1.
Páginas 37-44 (enero - junio 2014)
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Vol. 32. Núm. 1.
Páginas 37-44 (enero - junio 2014)
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Pesquisa qualitativa, saúde e uso de drogas: desdobramentos e implicações teóricas, analíticas e epistemológicas da utilização da técnica da entrevista de fala aberta
Qualitative research, health and drugs use: Outcomes and theorotical, analytical and espistemological implications of using the open talking interview technique
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Alberto Groismana,
Autor para correspondencia
groisman.a@gmail.com

Autor para correspondência.
, Jacqueline Schneiderb
a Departamento Antropologia, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Brasil
b Universidade Católica de Santa Catarina, Jaraguá do Sul, Brasil
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Resumo

Este artigo discute procedimentos de um projeto de investigação qualitativa sobre saúde e uso de drogas em Santa Catarina, Brasil. A coleta de dados buscava estimular os sujeitos da pesquisa à formulação de enunciados sobre a sua experiência. A técnica principal de coleta de dados chamada entrevista de fala aberta, que desloca a agenda de relevâncias, para priorizar percepção, perspectivas e preocupações dos próprios sujeitos. A análise centrou-se nas categorias-baliza «saúde» e «drogas: noções sobre», selecionadas, entre outras, para indicar a relevância e o conteúdo de sua incidência na análise da relação entre «modelos» de percepção, particularmente pessoais e institucionais.

Palavras-chave:
Pesquisa qualitativa
Saúde
Uso de drogas
Ética
Abstract

This article discusses procedures of qualitative research project on health and drugs use in Santa Catarina, Brazil. The data collection sought to encourage the subjects to the formulation of statements about their experiences. The main technique of data collection was called open talking interview, it shifts the agenda of relevance to prioritize perceptions, perspectives and concerns of the subjects. The analysis focused on the categories-wedges «health» and «drugs: notions about», selected among others to indicate the relevance and contents of their incidence on the analysis of the relationship between «models» of perception, particularly personal and institutional.

Keywords:
Qualitative inquiry
Health
Methodology
Drugs use
Ethics
Texto completo
Introdução

Uma das principais repercussões das iniciativas de articular os estudos da área de saúde com os da área das ciências humanas e sociais foi a emergência de um interesse significativo por parte dos pesquisadores da área de saúde em relação ao que se chama «pesquisa qualitativa», entre os anos 20-40 do século XX. Neste período, médicos passaram a circular em expedições entre culturas remotas em relação à Europa e Estados Unidos. Um dos pioneiros – e um dos exemplos mais significativos desta tendência – foi Erwin Ackerknecht, que reconheceu a existência de uma «medicina primitiva». A descrição desta medicina foi considerada relevante para pensar a medicina praticada em sociedades chamadas complexas.

Por sua vez, a procura por conhecer melhor a pesquisa qualitativa repercutiu em termos epistemológicos. Isto se deu fundamentalmente porque o desenvolvimento de projetos de pesquisa quantitativa serviam bem para levantar tendências nas populações, mas dificilmente conseguiam retratar variações possíveis e relevantes. Criava-se a necessidade de reconhecimento de «exceções à regra» que dificultavam as generalizações, portanto, frequentemente «escondidas debaixo de tapetes metodológicos». Um exemplo recente está representado pelo que se tem chamado de «necessidades básicas das populações», cânone de muitas políticas públicas e agendas acadêmicas quando associadas à saúde. Em geral o conteúdo destas «necessidades» serve para a definição de políticas de saúde que atenderiam à «maioria da população». Formular políticas com este fundamento não seria indesejável se não criasse situações de omissão e descaso, particularmente no cuidado das ocorrências que não se enquadram nestas «necessidades das maiorias», e assim, acabam também não se enquadrando na programação das políticas públicas. Ou, por outro lado, passou-se a considerar somente programações e prioridades que formulam, no sentido weberiano, «tipos ideais de problemas». Para refletir acerca da pesquisa qualitativa na área da saúde, este trabalho discute aspectos levantados durante o desenvolvimento de projeto de pesquisa «Trajetórias e itinerários no contexto do uso de drogas em Santa Catarina», financiado pelo pool CNPq/FAPESC/MS/SES e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa de protocolo 0004.0.242.000-07. Na fase de preparação e desenvolvimento da coleta de dados foram organizados seminários buscando desconstruir ou fazer desaprender os densos e deletérios condicionamentos aos quais todos estamos e mesmo somos sujeitos, ao sermos colocados diante dos discursos hegemônicos sobre uso e abuso de drogas. Nesta preparação problematizamos junto a uma ideia corrente na antropologia contemporânea o estatuto da relação assimétrica que se estabelece no trabalho de campo. Nesta perspectiva buscamos torná-lo menos um «evento administrativo de recurso de pesquisa» e mais o que de Oliveira1 chamou de «encontro etnográfico» cuja atividade central e motivadora do encontro é a interlocução. Para promover este encontro deveríamos ponderar, relativizar as ideias e preconceitos que todos construímos sobre o que estamos pesquisando. Ou seja, olhar para os dados buscando conhecer o conteúdo e talvez a forma da «agenda» com a qual nossos interlocutores de pesquisa orientam pensamento-ação, ou sua práxis.

Após esta fase, entramos em contato com instituições e organizações governamentais e não governamentais em todo o estado. Foram abarcadas secretarias municipais de saúde, conselhos antidrogas municipais, centros de atendimento psicossocial (CAP), associações de alcoólicos anônimos, narcóticos anônimos e afins, comunidades terapêuticas e outras. Depois de contato preliminar via telefone ou e-mail, membros da equipe realizavam visitas preliminares às organizações durante um período aproximado de permanência entre 2-3 dias. Após encontro inicial com os dirigentes os pesquisadores, participavam de reuniões e solicitavam voluntários ou indicações de potenciais entrevistados. Apesar de questionarmos o fato de que este procedimento levaria a uma setorização dos resultados, já que abordaríamos apenas um segmento do «universo» de usuários de drogas, considerou-se relevante e consistente a noção de «carreira» de uso de drogas, e seu desdobramento em um saber específico, constituído na trajetória destes usuários, que provavelmente teriam passado por processos críticos em relação aos eventos que enfrentaram ao longo de sua vida, incluindo aqui processo e desenrolar da própria institucionalização.

A principal técnica utilizada na coleta de dados – associada a anotações gerais e diário de campo – foi denominada entrevista de fala aberta. Como vimos, este procedimento tinha como objetivo central obter depoimentos que refletissem um deslocamento do registro da pesquisa, para que o enfoque da problemática tivesse como perspectiva a agenda de relevâncias e interrogações – priorizando e enfatizando percepção, estruturação de ideias e preocupações emergentes – dos interlocutores entrevistados. Em outras palavras, as técnicas de coleta de dados buscaram em grande parte do período de cada encontro, a mínima interferência do entrevistador no estímulo à formulação das falas sobre as experiências. Enfatizando, procurava-se dar prioridade à elaboração do conteúdo dos próprios sujeitos da pesquisa, abrindo a possibilidade da emergência dos saberes locais. Procurávamos relativizar a relevância de obscurecimentos que poderiam eventualmente ser provocados pela agenda e pelos vieses e ideários dos próprios pesquisadores. Em suma, em nome de explorar a técnica, corremos o risco, sempre enfatizado na preparação da equipe, de abordar ingenuamente os dados como sendo a «verdade» empiricamente obtida. Entretanto, aqui o princípio metodológico e epistemológico envolvido é que o procedimento procura de fato suspender os efeitos do condicionamento clássico da expectativa à qual os participantes de uma entrevista em geral estão submetidos: há uma lista de interrogações previamente formuladas que devem ser respondidas ou satisfeitas pelo «informante». Ter buscado explorar a tensão de modificar esta expectativa já foi considerado pela equipe um passo e uma conquista importante do ponto de vista metodológico e epistemológico.

Assim, procurando provocar mas «não conduzir» o encontro etnográfico, o entrevistador dizia para a pessoa a ser entrevistada «fale o que quiser». Esta frase desencadeava a fala dos entrevistados, já estimulada inicialmente pela leitura em voz alta do próprio Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Acabamos por considerá-lo e convertê-lo em instrumento de pesquisa propriamente dito, na medida em que sua leitura servia como dispositivo de estímulo à fala.

O procedimento analítico, entretanto, não se absteve de formatos mais clássicos. Paralelamente à coleta do material empírico, os entrevistadores foram selecionando e propondo «balizas» para análise. O termo baliza já demarcava seu caráter de localização e enquadramento dos segmentos dos depoimentos que articulavam os conteúdos relevantes abrigados sob determinada «rubrica». A ideia de chamar «baliza» a expressão que reconhecia estes temas centrais, evoca também uma concepção de que a estruturação da fala reflete a organização e constituição do discurso a partir de conceitos que articulam evento, espaço, tempo de experiência. As balizas selecionadas para análise foram: narrativas de mal-estar/doença; itinerários terapêuticos; serviços de saúde; saúde; autocuidado; drogas: noções sobre. Ao todo, foram realizadas 46 entrevistas que foram integralmente transcritas e objeto de análise.

O objetivo deste trabalho, por sua vez, é levantar e problematizar questões de método e suas implicações éticas, políticas e epistemológicas, através de discussão de balizas que emergiram na análise dos dados e com a aplicação da técnica da fala aberta. Para refletir sobre a abordagem selecionamos para a reflexão as balizas «saúde» e «drogas: noções sobre». Realizamos esta escolha devido à centralidade e à relevância destes conteúdos tanto nas interrogações que foram emergindo na análise dos depoimentos, quanto na importância atribuída pelos participantes da pesquisa nas questões relacionadas a estes temas. Os relatórios de análise constaram densidade e pertinência dos hiatos e tensões entre a formulação dos modelos e discursos «terapêuticos», e a forma com que os interlocutores elaboram suas experiências, na articulação entre a formulação das teorias sobre e dos modelos pessoais de avaliação da própria experiência, e os «modelos-processos» de busca de resolução.

Aspectos preliminares: sobre modelos, leis e métodos

A elaboração do projeto de pesquisa considerava preliminarmente a escassez, a invisibilidade ou a indisponibilidade de dados na literatura e na mídia que retratassem: (a) com densidade, as experiências e os contextos socioculturais locais associados à temática da atenção ao «uso de drogas» no estado de Santa Catarina; (b) as relações sociais que são estabelecidas nestes contextos no que se refere a aspectos ligados à saúde; (c) os padrões de motivação e ação utilizados pelos usuários de drogas na avaliação de sua saúde; (d) o conhecimento sobre procedimentos e estratégias associadas à busca do bem-estar e da manutenção da saúde das pessoas inseridas nestes contextos.

Assim, questionou-se também a premissa controversa e socialmente hegemônica que a pessoa que faz uso de «drogas ilícitas» é necessariamente «doente» ou «dependente químico». Procurou-se transcender estes estereótipos, considerando a variedade de situações possíveis, tendo como fundamento que a imagem construída dos usuários junto aos serviços de saúde é aquela produzida por situações de crise. Esta imagem de certa maneira passou a orientar as políticas de saúde ao considerar que usar drogas é sempre problemático. Esta tendência contribuiu para se pensar que há somente 2 abordagens possíveis: uma absenteísta, ou seja, que a intervenção deve ser no sentido de eliminar genericamente o uso de drogas ilícitas, e outra que volta suas iniciativas à «prevenção», considerando o uso de drogas ainda algo epidêmico, mas que distingue o uso do abuso de drogas. Para esta última, as políticas deveriam ser voltadas prioritariamente à mitigação de riscos e prejuízos, e ficou conhecida pela noção de «redução de danos» ou reducionista.

Por outro lado, a partir de 2006, com a promulgação da Lei n.°. 11.343, de 22 de agosto de 2006, os usuários que forem processados legalmente passam a receber penas socioeducativas, aplicadas por juizados especiais criminais, como prestação de serviços à comunidade ou inscrição em programas de tratamento. A situação e os processos desencadeados pela nova legislação passaram a exigir um conhecimento apurado sobre a complexidade e a variabilidade de situações de uso de drogas, para que os programas e serviços designados para os chamados «usuários»/«dependentes» fossem realmente adequados e eficazes. Isso vale tanto para a área da saúde, quanto para a da justiça e da segurança pública, que ficam responsáveis pelos encaminhamentos e procedimentos para viabilizar a prestação de serviços associados à aplicação de penalidades.

O dilema moral no qual vivemos2 em relação às drogas denuncia que ao mesmo tempo em que proibimos e tornamos algumas delas ilegais, somos paralelamente estimulados a consumi-las através da profusão das drogas lícitas oriundas da indústria farmacêutica Por isso, parece que o «alarmante problema das drogas» é em última análise uma construção sociocultural que condiciona a imagem pública dos usuários de drogas, impelindo-os à clandestinidade e à exclusão social. Isto colabora para constituir a «crise» e torna inacessível ou irrelevante o conhecimento produzido por esses sujeitos em suas trajetórias. Para resgatar este conhecimento e inseri-lo no campo de reflexões, a pesquisa qualitativa é de grande importância.

Sumariamente, o que enfocamos na coleta de depoimentos foram ideias práticas, estratégias e itinerários associados a questões de saúde, de pessoas vinculadas direta ou indiretamente com o contexto do uso de substâncias psicoativas, através da técnica principal da entrevista de fala aberta. Do ponto de vista das abordagens metodológica e analítica, podemos chamar genericamente a elaboração resultante de «fala», que por não ser espontânea e sim estimulada, reflete um referencial digamos factual. Este referencial factual é elaborado e constitui-se em «discurso», no sentido que seleciona conteúdos a serem comunicados verbalmente. É também narrativo, na medida em que suscita sempre uma rememoração da experiência vivida. O princípio que estamos adotando é que este discurso rememora e «narra» densamente, tanto a experiência quanto a «percepção» estabelecida pela vivência, e a reflexão sobre sua ocorrência.

Quanto à contribuição desta reflexão, esperamos subsidiar o debate sobre a fundamentação empírica no campo de estudos sobre uso de drogas. Para isso, utilizamos uma metodologia de pesquisa qualitativa que até então foi ainda pouco aplicada no campo de pesquisa sobre saúde e uso de drogas no Brasil. Interessa-nos também disseminar a reflexão sobre o conhecimento produzido por pesquisa qualitativa entre profissionais de saúde, particularmente entre pessoas que atuam no atendimento de usuários de drogas e na formulação de políticas públicas no campo de intervenção.

Neste sentido, consideramos que (1) a ampliação do conhecimento sobre a temática em investigação poderia contribuir significativamente para tornar mais consistente e eficaz a abordagem e a intervenção relacionadas aos problemas ocasionados no campo da saúde que envolvem uso de drogas e recurso aos serviços resolutivos disponíveis, e (2) que o levantamento de dados empíricos, a reflexão e a divulgação ampla do conhecimento qualitativamente produzido reflete na formação dos recursos humanos, preparando melhor profissionais, outras pessoas envolvidas e os serviços disponíveis em geral, diante às ocorrências e decorrências de eventuais problemas. Confere também melhor atenção aos desdobramentos que se referem à resolutividade, à gestão dos recursos e às questões ligadas aos direitos humanos.

O que nos disse a análiseSobre as balizas «saúde» e «drogas: noções sobre»: implicações teórico-metodológicas, éticas e políticas

Consideramos agora as repercussões e implicações teórico-metodológicas, éticas e políticas da análise de dados obtidos com a técnica da entrevista de fala aberta. Nas entrevistas, destaca-se a articulação entre os depoimentos pessoais que configuram narrativas acerca das próprias histórias de vida dos entrevistados e os discursos institucionais de mais amplo espectro, particularmente aqueles que emergem das vivências nos processos de «tratamento». Visto que a maioria dos depoimentos foram obtidos através de indicação de pessoas que estavam envolvidas com prestação de serviços, as balizas trouxeram à tona, explícita ou implicitamente, o que se poderia considerar como um «discurso hegemônico» que se constitui diante das perspectivas que condicionam as diversas dimensões da percepção do processo. Neste sentido ainda, este discurso tem como registro gerador a noção de «doença da dependência química» e conteúdos semânticos centrais a ela associados, por exemplo, (1) a noção que a «dependência química» é uma «doença incurável», que só poderia ser controlada através da interrupção imediata e definitiva do uso de drogas (2) ou que usuários contumazes seriam todos considerados «dependentes químicos». A constatação de que subjaz este registro nos diversos depoimentos foi central ao considerarmos as implicações éticas e políticas, as questões metodológicas e, particularmente, os procedimentos de análise.

A demarcação dos relatórios separadamente evoca a estratégia de definir os eixos analíticos a partir também da consideração das categorias centrais estabelecidas a priori, mas que serviam para desencadear os depoimentos. Como primeira consequência, na medida em que o título do projeto era descritivo de uma das dimensões da agenda de pesquisa e era apresentado aos depoentes, familiarizava os entrevistados com o tema geral, que era «saúde e uso de drogas». Entretanto, ao não apresentar perguntas direcionadas, a partir da técnica da fala aberta reservava ao entrevistado a prerrogativa de definir qual seria sua abordagem sobre o assunto. Permitia também o acesso a conteúdos que eventualmente se colocariam mais sutilmente na malha discursiva emergente e destacaria a relevância e a possibilidade desta abertura da análise para proporcionar a indicação de parâmetros para a reorganização de um olhar sobre as experiências pessoais. Assim como proporcionava uma oportunidade de indicar como repercutiam no campo semântico as noções disseminadas pela produção de sentido no contexto de sua formulação. Particularmente, percebeu-se a influência deste olhar em relação à ambiguidade e às tensões que existem entre este discurso como um parâmetro identitário, como uma fonte de interpretações gerais sobre drogas, de um lado, e as próprias noções «nativas» que não reproduziam o discurso hegemônico, explicitando, assim, muitas vezes, o entrecruzamento tenso entre as noções nativas e os discursos hegemônicos constituídos nas instituições.

Passemos agora a abordar os conteúdos específicos que emergiram da análise de cada baliza:

Saúde

As noções sobre «saúde» que emergem dos discursos podem ser sistematizadas nas seguintes chaves analíticas desdobradas a partir dos conteúdos dos depoimentos: noção de saúde de uma forma genérica, noção de saúde envolvendo particularmente «doenças do corpo», «sensações» de doença e noção de bem-estar.

Considerando que a temática da saúde é uma das entradas da pesquisa, o primeiro fato notável que desponta na análise é um aspecto propriamente quantitativo: saúde é a baliza que possui um número significativamente pequeno de trechos nos quais é mencionada. De um universo de 46 entrevistas, apenas 13 foram marcadas com esta baliza. Este fato sugere pelo menos 2 razões possíveis: a temática da «saúde» em geral, tal como era compreendida pelos interlocutores na apresentação da pesquisa, não era questão relevante (1); ou o próprio modo como foi compreendida pelos interlocutores, no que concerne a sua conceituação de saúde para a marcação das entrevistas, era restrita a expressar-se sobre doenças, diagnóstico, tratamento (2).

Contudo, nas análises realizadas como as balizas «drogas: noções sobre» e «uso de drogas», a questão da saúde, tal como a entendemos a partir da síntese teórica da revisão bibliográfica, e os termos a ela correlacionados, como corpo, institucionalização, cura e recuperação, adquiriram centralidade na análise constarem significativamente nos depoimentos. Estes temas despontaram na vinculação com a noção de «doença» e de seu campo semântico na perspectiva nativa, no desenrolar da narrativa como um todo, e, assim, não eram decorrentes – maioritariamente – do estímulo específico que despontava com a temática da saúde.

A noção de «saúde», desta forma, poderia ser sistematizada como ambivalente e polifônica. Categoria, portanto, cujos contornos não podem ser traçados por linhas firmes. Com as próximas descrições vamos acompanhar os conteúdos dos depoimentos que levaram a esta conceituação ampla de «saúde»:

Sempre fui uma pessoa saudável (Ari)

De saúde minha acho que não tenho o que falar (André)

«Saúde tá ótima. Única preocupação era a falta de uso de preservativos» (Aline)

«Doença de garganta, pneumonia, não tenho problemas maiores assim»

«Não tenho doenças, sempre faço exames»

Doença que eu ouvi falar é com drogas injetáveis, as pessoas pegam AIDS, pegam como é que é, hepatite, pegam diversas doenças. Eu já não, porque eu nunca tive contato com doenças injetáveis, essas coisas assim (Fernando)

Percebe-se um desencontro entre a visão biomédica hegemônica de saúde e a noção de «doença da dependência química», que circula entre os informantes. Portanto, não encontra-se de forma representativa o reconhecimento de que o uso de drogas e as drogas por si só são causas de/ou problemas de saúde propriamente ditos. Se consideramos ainda a relevância da noção de dependência química, que veremos na análise adiante, isto se torna muito significativo na medida em que indica registros diferentes onde operam as noções.

Portanto, a institucionalização e as instituições assumiriam a característica de agentes da disseminação de um entendimento amplo quanto à existência e a constituição do chamado «problema das drogas». Este aspecto da atuação destes agentes tem como uma de suas consequências a disseminação circular e condicionadora da noção de doença da dependência química. Isto ocorre tanto no campo semântico de produção de sua legitimidade como instrumento de categorização e negociação de sentido, quanto em sua dimensão de motivação das formas de intervenção. Esta noção parece ser apreendida e incorporada no discurso pelos entrevistados, apenas parcialmente e ainda de forma ambígua.

Esboça-se um modelo para compreensão da significativa ineficácia das instituições voltadas ao «tratamento de dependentes químicos». Ou seja, o conhecimento trazido pelos usuários dos serviços a partir de, e sobre, suas próprias experiências parece não ser considerado. Em outras palavras, a atuação institucional em geral procura modificar simplista e mecanicamente as noções dos usuários, enfatizando implicitamente uma forma de convencimento que parece se desdobrar numa noção de «dependência química» como «doença moral» que, conforme Schneider3 apurou, se desdobra em termos de «tratamento» para uma transformação de «conduta pessoal».

Assim, como já mencionamos, a noção de saúde entre os interlocutores emerge de um modo significativamente ambivalente. Por um lado, temos uma representação de saúde bastante restrita e vinculada a classes de doenças que «afetam o corpo», repercutindo uma noção «biologicista». Contudo, não foi referenciada a noção de «dependência de drogas» como «doença mental», como muitas vezes é concebido o «abuso de drogas» no campo da biomedicina. Em todos os relatos sob análise, a noção de dependência foi mencionada em apenas um fragmento e como um tema secundário, não incluído em uma malha discursiva que o sujeito estivesse tecendo sobre saúde. Neste sentido, «saúde» é compreendida em uma outra classe de fenômenos que não se encontra diretamente com a noção tão corrente e disseminada, institucionalmente da dependência química como uma doença.

A noção de saúde entre os usuários de drogas institucionalizados pode estar substancialmente desvinculada da prática de uso e assim às expensas do senso comum, que em geral trata o uso de drogas – cuja institucionalização do usuário seria a rigor o caso limite de uma patologia – como um «problema de saúde». Portanto, embora em muitos sentidos influenciados pelo paradigma biomédico, a abordagem que encontramos nos depoimentos, digamos espontaneamente, não menciona o uso de drogas como «doença».

Drogas: noções sobre

O outro quesito que consideramos central para compreender a lógica que podíamos encontrar nos depoimentos era associado às noções sobre as drogas e que converteu-se na baliza: «Drogas: noções sobre». Com esta categorização, descrevemos o que se chama em antropologia de «teorias nativas», em relação às drogas em geral e de um modo amplo, mas mais particularmente relacionadas à experiência pessoal e a uma visão um pouco mais desprendida destas experiências; «sobre a sociedade» e «sobre as drogas na sociedade».

As noções sobre drogas neste sentido se apresentam de modo polifônico e ambíguo. A noção de droga enquanto «substância química» produz depoimentos condicionados pela institucionalização: efeitos, sensações e prazeres são vinculados à «fuga da realidade», ou a «engajamentos numa vida ilusória». Concomitantemente, porém, referem-se à possibilidade de ampliar a existência no mundo. De modo relevante e denso despontaram conteúdos acerca da droga como uma «aliada» importante na deflagração e na manutenção da «doença da dependência química». Revela-se novamente uma tensão entre o uso de drogas como acesso ao prazer ou como modo de estar e viver no mundo:

Ela dá um prazer muito forte, um prazer que euforia, um prazer de calmaria, um prazer as vezes como eu usava o sexo ativa, a sexualidade ativa, é... (Philippe)

A droga te dá uns pontos de adrenalina muito forte, altos, mas quando desce é muito baixo. Temos que achar um equilíbrio. Então nós vamos ter que buscar novas formas de preencher nosso corpo [...] O que eu vou buscar, o que vai me dar prazer novamente? (Júnior)

Não sei o que dizer... todo mundo diz usa droga pra escapar da realidade, nunca usei droga por minha vida tá ruim, ou por eu tá triste, eu uso só pra quando eu tô bem, vou usar pra ter o a mais né, mais prá isso, não porque quero fugir da minha vida, não sei o que, isso não. Dá uma banda, queimar um beckzinho, aí cada coisa que tu vai usar tu sabe, eu sei pelo menos qual o efeito que vai me dar. Por exemplo eu tô assim, ah, se eu fizer isso eu vou ter tal satisfação de usar tal coisa, eu vou ficar nesse estado, ou então não vou usar isso porque eu não vou ficar legal, vou ficar assim, depende do dia, mais durante a noite nas festas, durante o dia o máximo fumar assim, mas a noite fuma, bebe também, bastante, mas é isso. (Joyce)

E a droga como fonte de dor, sofrimento e como modo de se associar de forma doentia com a vida e o mundo:

O fundo do poço é quando tu perde então a família, tu perde teu trabalho, tu perde o domínio da tua vida e vive só pra droga [...]Ela não escolhe classe social, ela não escolhe cor, ela não escolhe nada, o final é igual pra todo mundo: vai morar na rua, sem dinheiro, sem família, passando fome, e por último a morte. O final da droga é isso. (Juliana)

A droga te tira a tua responsabilidade, tua dignidade, teu caráter, a tua fidelidade, ela te tira a tua moral, no geral, ela tira. Eu tive oficina, eu comecei trabalhar com onze anos de idade (Philippe)

* * *

Apesar dos discursos terem expressado a articulação entre as narrativas pessoais e os discursos institucionais, a perspectiva metodológica do projeto revelou ambiguidades e tensões em torno desta articulação. Ou seja, a localização institucional dos sujeitos apresentou relevância densa nas reflexões e conclusões da investigação. Percebemos a partir da análise dos conteúdos das falas que, se por um lado a entrevista de fala aberta e sua posterior análise revelou discursos condicionados pelas interpretações hegemônicas, que reproduzem e difundem a dependência química no interior da noção de doença moral, revelou também, por outro, que os conteúdos dos depoimentos traziam lógicas diferentes que resistiam aos significantes institucionais.

Isto aponta para a necessidade de considerar sistematicamente o conhecimento e a lógica dos próprios usuários dos serviços do ponto de vista da eficácia das terapêuticas e do ponto de vista do respeito e da valorização dos sujeitos. Estes, de fato, trazem e vivem as experiências, neste sentido ampliam e ao mesmo tempo enfocam o nosso olhar, bastante condicionado acerca deste universo complexo que envolve o uso de drogas. Estas conclusões apontam também para a necessidade de explorar a forma e o conteúdo que os sujeitos se referem às próprias experiências, após «processamento» pessoal e coletivo e, sobretudo, as possibilidades e mesmo os limites da investigação qualitativa em contextos institucionais.

Em suma, o que parece ocorrer é que o discurso institucional hegemônico tem como desdobramento uma ambiguidade na forma como os depoentes elaboram sua visão. Neste sentido sugere que a disseminação sistemática das noções presentes no discurso institucional parece obrigar os depoentes a reelaborar artificialmente estas noções, mas mantendo no discurso subjacente uma perspectiva contrastante.

Implicações analíticas e outros desdobramentosSobre aspectos empíricos preliminares

Do ponto de vista empírico, buscamos o discurso narrativo sobre a experiência, que produz tanto a dialogia implícita na situação de entrevista quanto o que chamamos de diálogo a posteriori, quando na análise procuramos levantar o léxico recorrido e a articulação semântica dos conteúdos relevantes sincrônica e diacronicamente. E mais, na busca de compreender o léxico a que recorre o entrevistado para constituir suas referências e elaborar a fala, e na captura da constituição sincrônica da articulação semântica que lhe dá sentido e que associa sua experiência com as experiências dos outros entrevistados, esperamos poder compreender as vias de significação e relevância recorrentes. Assim, procuramos ter acesso ao que se poderia chamar de fundamentos dos pontos de vista expressos na sua inserção no universo das falas.

Como um princípio que podemos categorizar como político, procuramos implementar a convicção de que a oportunidade da dialogia proposta implica também no reconhecimento da relevância do saber organizado na fala. E espera-se: confere estatuto de conhecimento pertinente e relevante para a constituição da ação, seja ela o estabelecimento da abordagem analítica, seja ela a adoção de medidas de intervenção, neste caso, das políticas públicas, particularmente de saúde. Desta forma, partimos da hipótese de que, mesmo quando vivendo em condições sociais adversas, estas pessoas elaboram e colocam em prática estratégias para fazer frente aos problemas de saúde, decorrentes de suas vivências de situações sociais problemáticas ou tensionadas, e presume-se que inclusive não necessariamente estejam em situação precária de saúde ou de «dependência».

Por outro lado, ainda na reflexão sobre a abordagem empírica, é importante observar que dividido entre chamados absenteístas e reducionistas, o campo dos estudos e da intervenção sobre o uso de drogas tem demonstrado estar carente de reconhecer as dicotomias e complexidades que obstaculizam um tratamento epistemologicamente mais adequado. Neste sentido, parecem os esforços classificatórios ainda por demais inspirados por esta dicotomia, que parece servir emblematicamente para definir o «perfil da demanda». E que particularmente parece condicionar a concorrência pelos bens materiais e simbólicos que condicionam o fluxo dos recursos que viabilizam a busca de conhecimento.

Vargas propõe que é preciso passar da abordagem «epistemologicamente negativa» que considera compulsoriamente qualquer uso de drogas como problemático, para uma outra, «positiva», no sentido de que é contraproducente partir de um ponto de vista que desqualifica a experiência do uso de drogas. Repercutindo esta proposta, mas procurando dar um enfoque diverso do «epistemologicamente positivo» ou «negativo», propomos um tratamento epistemologicamente consistente. A ideia desta abordagem implica em considerar ambiguidades, tensões, dicotomias ou dualidades, adesões, rupturas, agenciamentos e outros aspectos associados – que em geral são tratados a partir de categorizações padronizadoras – mas ampliando o interesse pelas singularidades, pelas pluralidades, pelos processos, mas também pelas articulações circunstanciais, pela abordagem nativa da experiência, enfim, menos como geradora de «efeitos», mas sim desencadeadora de interlocução legítima, relevante e produtiva.

Um dos aspectos que os dados empíricos indicaram foi a apropriação nos relatos do que poderíamos chamar genericamente de «caminho das drogas», para distinguir trajetórias de vida nas quais as pessoas podiam fazer escolhas, daquelas em que a pessoa passa a engajar-se sem a possibilidade de escolha. No conteúdo das falas-narrativas encontramos de forma recorrente a ideia que usar drogas representa inserir-se numa trajetória crescentemente exclusiva e inescapável. Ou seja, que todas as vivências passam a ser condicionadas pelo uso.

Implicações teórico-metodológicas

Nas últimas décadas, é preciso reconhecer, vem se intensificando o debate acerca do uso de técnicas qualitativas no campo dos estudos sobre saúde no Brasil. Isto decorre da constatação por parte dos profissionais das áreas da saúde da insuficiência das técnicas quantitativas para desenvolver seus estudos. Esta constatação se desdobra particularmente de situações que envolvem buscar padrões constituídos de forma mais complexa e que são efetivamente formadoras de atitude em relação à saúde. Por outro lado, também porque passaram a encarar a interlocução aberta com o(a)s pesquisado(a)s mais produtiva em termos de considerar a singularidade das experiências investigadas, como também a pluralidade de situações e condicionamentos que influenciam estas experiências. Decorre também da problemática da qualidade das interlocuções entre profissionais e pacientes que se estabelecem em situações clínicas4.

Neste sentido, tem se ampliado o interesse de cursos de enfermagem e medicina, particularmente em incluir ou expandir a inserção de disciplinas como a antropologia e sociologia em seus currículos. Ainda que se possa perceber nestes cursos uma influência densa do critério – que pode ser visto como fragmentador – de separar conteúdos chamados «básicos», dos conteúdos chamados «clínicos» e de «exilar» a antropologia e a sociologia para as primeiras fases dos cursos, a perspectiva é que não tão tardiamente teremos que alunos e alunas destes cursos abordando questões profissionais, em fases mais adiantadas, sintam que a utilização de perspectivas antropológicas e sociológicas pode ser de grande valia.

O que parece cada vez mais evidente é que os estudantes e profissionais dos cursos da área de saúde, ao se depararem em suas atuações clínicas com problemas que o modelo biomédico não dá conta, particularmente relativas à implantação do SUSb, têm sentido a necessidade e demandado o auxílio de cientistas sociais na condução e na reflexão sobre estas situações.

Repercutindo a contribuição que o modo de produzir conhecimento em antropologia pode proporcionar para a prática de profissionais de saúde, apresentamos a seguir as implicações dos desdobramentos da aplicação de técnicas de pesquisa no sentido de superar omissão ou negligência, em relação a aspectos e tensões oriundos de uma abordagem unilateral e fragmentada, que tem sido amplamente constatada por pesquisadores e usuários do sistema de saúde. E que, a nosso ver, despreza um importante elemento das interações: o conhecimento produzido pelos próprios usuários dos sistemas de saúde em geral sobre suas próprias experiências:

  • 1

    A importância da construção de modelos analíticos e metodológicos capazes de subsidiar as abordagens da articulação complexa existente entre discursos institucionais (que condicionam as narrativas) e narrativas pessoais que refletem lógicas próprias ou referentes às situações vividas em situações especificas, que não se alinham com os condicionantes e conteúdos dos discursos institucionais;

  • 2

    A importância de uma reflexão metodológica que levante o aspecto das suas próprias implicações para a constituição de modelos teóricos construídos nas análises dos dados. De forma correlata, a exposição reflexiva da metodologia de uma forma que não se reduza a um modelo de um «meio» para atingir um «fim», o que de fato proporciona e induz à aplicação de modelos mecanicistas para proceder metodologicamente;

  • 3

    A importância de analisar do ponto de vista ético e político, e particularmente autorreflexivo, as implicações dos procedimentos metodológicos que definem os rumos e os vieses das próprias abordagens teóricas, para além dos procedimentos tradicionais de apuração de evidência e prova. Enfim, refletir sobre situações e circunstâncias que condicionam a realização de pesquisa sempre são relevantes para estabelecer a autorreflexividade, condição para um bom acompanhamento da dinâmica das situações complexas que vivemos.

Considerações finais: sobre ética, política, teoria e metodologia

Se implicações e desdobramentos teóricos se articulam com implicações e desdobramentos metodológicos, implicações e desdobramentos éticos se articulam com as implicações e desdobramentos políticos. Rigorosa e epistemologicamente falando, as 4 dimensões só podem ser separadas para organizar heuristicamente a reflexão.

Em relação ao aspecto ético, é preciso lembrar que as questões e tensões em relação às exigências formais dos comitês de ética quanto ao desenvolvimento de projetos de pesquisa já é há algum tempo objeto de reflexão na antropologia (ver por exemplo Maluf, Langdon e Torquinst5). Estes procedimentos têm sido geralmente inspirados pelos cuidados com «direitos e deveres» dos pesquisadores, particularmente em relação às pessoas que participam como «informantes» de projetos de pesquisa.

Temos discutido que é fundamental o pesquisador considerar elaborar um estatuto de sua pesquisa. Este estatuto se desdobra tanto em quesitos epistemológicos quanto sociais. Estes implicam em pensar um projeto como sendo constituído por, e ao mesmo tempo constituindo, relações sociais particulares. Neste sentido, também temos levantado a importância de pensar os instrumentos de pesquisa em antropologia como «artefatos e artifícios sociais e relacionais» (Groisman6).

Na pesquisa desenvolvida procuramos problematizar o procedimento empírico quase «clássico» que toma o chamado «informante» quase como uma fonte inerte e passiva de dados. Este aspecto vem sendo relativizado por perspectivas que se desdobraram na noção de simetrização, conforme reflexão desenvolvida por Goldman7. Nesta perspectiva simetrizante é preciso implementar uma atitude com a qual os chamados «informantes» passam a ser considerados efetivamente sujeitos da pesquisa. E, se considerarmos a repercussão desta conduta nas relações estabelecidas em campo, a interação entre os chamados pesquisador e pesquisado tendem a ter o caráter de interlocução, quanto se pode de fato dissolver estes papéis, constituindo agentes e agenciamentos de pesquisa. Desta forma, a situação empírica se constitui no campo.

Desta forma, incorporamos as contribuições de correntes contemporâneas da antropologia, como o argumento de Roberto Cardoso de Oliveira a favor da pesquisa de campo como «interlocução», da antropologia simétrica de Bruno Latour8, que procura desfazer as reverberações deletérias de uma ciência que separa natureza e cultura, e do perspectivismo, como proposto por Eduardo Viveiros de Castro9, que tem como procedimento fundamental levantar os conceitos, as interrogações e os problemas que os chamados nativos expressam e colocam, e ainda, inspirados pela noção de simetrização de Márcio Goldman.

Outro aspecto central de nossas preocupações éticas foi ter de lidar com a problemática de trabalhar com «usuários de drogas», pessoas além de estigmatizadas também sujeitas a iniciativas de criminalização. Este foi um elemento de tensão tanto na preparação do protocolo de pesquisa quando no desenvolvimento da coleta de dados. Tínhamos como princípio e preocupação evitar situações que pudessem ameaçar a integridade dos sujeitos da pesquisa, além de comunicar esta preocupação através dos instrumentos éticos. Neste sentido, criamos a figura do anonimato qualificado, que foi como chamamos ao procedimento que consiste em apresentar analiticamente os sujeitos de pesquisa sem mencionar referências, mesmo que indiretas, que pudessem possibilitar sua identificação. Assim, garantimos o anonimato e o qualificamos suprimindo dados que pudessem levar terceiros a localizar por informações indiretas quem eram as pessoas envolvidas na coleta de dados.

Consideramos que a aplicação da técnica da entrevista de fala aberta como a concebemos pode ser um instrumento na busca de constituir um conhecimento sobre a experiência do uso de drogas. De certa forma «militante», através do projeto que abordamos neste trabalho, procuramos explorar a ideia de que as interrogações e as reverberações analíticas mais relevantes da coleta de dados emergiam das falas abertas de nossos entrevistados. Ou seja, os agentes constituintes da coleta (o que chamamos por convenção entrevistadores) tinham como tarefa apenas provocar (do latim pro-vocare – instigar à verbalização) a fala dos agentes reconstituintes (convencionalmente, entrevistados). Consideramos fundamental que para favorecer a interlocução precisaríamos «dar voz ativa» aos entrevistados para a constituição do acervo a ser analisado. No lugar da clássica prescrição de que o pesquisador elabora uma agenda de interrogações e a coloca em atividade no campo, procuramos priorizar a agenda de interrogações do pesquisado.

Em suma, este artigo procurou sistematizar uma reflexão sobre a aplicação da técnica de pesquisa qualitativa que chamamos de entrevista de fala aberta, particularmente considerando as implicações e questões levantadas pela pesquisa com usuários de drogas, que em geral é condicionada por preocupações e interrogações a priori. Assim, foi de fundamental importância deslocar a agenda de investigação do registro do pesquisador para o registro do pesquisado, abrindo assim a possibilidade de constituir uma abordagem que se aproximasse muito mais do contexto semântico e da percepção das experiências que os próprios sujeitos de pesquisa expressaram. Esta foi uma estratégia que possibilitou inscrever as falas dos sujeitos e as categorias utilizadas, nos próprios termos da percepção que estes sujeitos construíram sobre suas experiências. Somente ao se constituir uma compreensão consistente dos significados transmitidos foi possível estabelecer uma interlocução ativa e produtiva, e assim, proporcionar uma aproximação semântica mais consequente, que pudesse fazer da pesquisa um registro e uma abordagem efetivamente dialógica, tão importante contemporaneamente para a pesquisa em ciências humanas.

Conflito de interesses

Os autores declaram não haver conflito de interesses.

Referências bibliográficas
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R.C. Oliveira.
O trabalho do antropólogo.
Unesp, (1998),
[2]
E.V. Vargas.
Entre a extensão e a intensidade: corporalidade, subjetivação e uso de drogas.
Universidade Federal de Minas Gerais, (2001),
[3]
J. Schneider.
Dos fios quotidianos à trama terapêutica: subjetividade, uso de drogas e experiência.
Universidade Federal de Santa Catarina, (2009),
[4]
A. Groisman.
Interlocuções e interlocutores no campo da saúde: considerações sobre noções, prescrições e estatutos.
Antrop Prim Mão, 93 (2007), pp. 1-11
[5]
S.W. Maluf, E.J. Langdon, C.S. Tornquist.
Ética e política na pesquisa: os métodos qualitativos e seus resultados.
Ética nas pesquisas em ciências humanas e sociais na saúde, pp. 128-147
[6]
A. Groisman.
Fotografia e fotografar: paradigmas, artefatos e artifícios sociais e relacionais.
Imagem: intervenção e pesquisa,
[7]
M. Goldman.
Os tambores do antropólogo: antropologia pós-social e etnografia.
Pontourbe, 3 (2008), pp. 1-11
[8]
Latour B. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. Rio de Janeiro: Editora 34; 1994.
[9]
E.V. Castro.
O nativo relativo.
Mana, 8 (2002), pp. 113-148

O sistema único de saúde (SUS) foi criado pela Constituição Federal de 1988, no Brasil, e regulamentado pela Lei n.° 8.080, de 19 de setembro de 1990.

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