INTRODUÇÃO
Há uma década atrás a única possibilidade realística de concepção para casais em que o homem apresentava azoospermia ou oligoastenoteratozoospermia grave, era o recurso a espermatozóides de dador. A introdução da ICSI por Palermo et al1 revolucionou o modo como se abordava o factor masculino. Estes autores mostraram taxas de fertilização e implantação elevadas em casais previamente não aceites para FIV ou que tiveram ciclos de FIV com falha de fertilização2,3. A ICSI tornou-se assim, o procedimento de eleição para a abordagem do factor masculino grave, tendo sido igualmente utilizada com espermatozóides provenientes do testículo, obtendo-se taxas de fertilização e taxas de implantação comparáveis às obtidas com espermatozóides provenientes do ejaculado4-6.
A técnica da extracção de espermatozóides do testículo (TESE) foi descrita pela primeira vez por Schoysman et al7 e Craft et al8 para casos de azoospermia obstrutiva (AO). Posteriormente Silber et al9 e Devroey et al10 descreveram a aplicação da TESE4 a casos de azoospermia não obstrutiva (ANO). Desde essa altura a TESE, juntamente com a ICSI tem sido o procedimento de eleição tanto para a AO, como para a ANO. O procedimento da TESE na altura da colheita dos ovócitos é extremamente desgastante para o casal. Além disso a repetição de biópsias em subsequentes ciclos pode causar processos inflamatórios, alterações da vascularização, calcificações11 e, possivelmente, danos sérios na espermatogénese, daí que, sempre que possível, se procede à criopreservação do produto testicular para uso futuro.
A criopreservação de espermatozóides testiculares tem sido usada com sucesso desde há vários anos, sendo particularmente importante nos casos de volume testicular reduzido, nos quais biópsias múltiplas podem representar uma perda significativa de massa testicular.
A combinação de biópsia testicular prévia com a criopreservação permite a realização de ciclos de ICSI adicionais, sem a repetição da biópsia e sem a necessidade de sincronização com a estimulação ovárica e PF. Apesar de nos casos de AO ser normalmente recolhido um maior número de espermatozóides móveis do que nos casos de ANO, tanto num caso como noutro, normalmente a quantidade recolhida permite que se realize a criopreservação de tecido testicular. Nos casos de ANO a criopreservação bem sucedida permite que se possa realizar biópsias dirigidas e não apenas diagnósticas.
A maioria de ciclos ICSI realizados tanto com espermatozóides frescos como previamente criopreservados, em situações de AO ou ANO, apresentam taxas de fertilização e gravidez aceitáveis. A maioria dos estudos relata que os resultados não pioraram significativamente após a criopreservação de espermatozóides provenientes do testículo9,12-24, incluindo aqueles estudos que comparam os resultados de um mesmo grupo de pacientes que realizou ciclos de ICSI com espermatozóides frescos e criopreservados14,25-28. Outros, no entanto, mostraram diminuição da taxa de fertilização29,30, taxa de gravidez clínica31,32 e taxa de implantação29,32 usando espermatozóides criopreservados.
O objectivo do nosso estudo foi apresentar os dados de ciclos ICSI com factor masculino isolado (azoospermia) usando espermatozóides colhidos por TESE e comparar os resultados usando espermatozóides colhidos a fresco versus espermatozóides previamente criopreservados. Numa segunda fase foi efectuada a comparação dos resultados num subgrupo de casais que realizaram ciclos ICSI-TESE tanto com espermatozóides colhidos a fresco, como previamente criopreservados.
MATERIAL E MÉTODOS
População em estudo
A análise retrospectiva envolveu 136 ciclos de ICSI realizados entre Julho de 1997 e Abril de 2006, em 81 casais com factor masculino isolado (azoospermia), com espermatozóides colhidos por TESE realizada aquando da PF (grupo I; n = 86) ou previamente à PF (grupo II; n = 50). Foram identificados 59 casais de AO (99 ciclos) e 22 casais de ANO (37 ciclos).
Previamente à ICSI os homens foram avaliados pela equipa de Andrologia para determinar a etiologia da azoospermia através da história clínica, exame físico, estudo hormonal (FSH, LH, TT, TL, PRL), espermograma, cariótipo do sangue periférico, estudo molecular das microdelecções do cromossoma Y, e quando apropriado, biópsia testicular diagnóstica, ecografia e análise das mutações mais frequentes do gene da fibrose cística. A hipótese de criptozoospermia foi descartada pela ausência de espermatozóides após centrifugação em dois espermogramas consecutivos.
De acordo com Amer et al33, sempre que houve a necessidade de repetir a biópsia no mesmo testículo, esta foi sempre realizada após pelo menos seis meses, de modo a evitar danos intratesticulares permanentes e optimizar a hipótese de encontrar espermatozóides.
Foi obtido consentimento informado para a realização da ICSI em todos os casais.
Estimulação ovárica e PF
A colheita dos ovócitos foi realizada após dessensibilização pituitária através de protocolo longo (n = 104) com agonistas da GnRH (Suprefact®, Hoeport) ou protocolo curto (n = 32) com antagonistas da GnRH (Cetrotide®, Serono ou Orgalutran®, Organon), seguida de estimulação ovárica com gonadotrofinas (Gonal F®, Serono ou Puregon®, Organon). Quando o folículo dominante atingiu um diâmetro igual ou superior a 18 mm, com uma concentração de estradiol de 200-300 pg/ml por folículo maduro, foi administrada uma dose de 10.000 IU/l de hCG (Pregnyl®, Organon) para induzir a maturação final do folículo/ovócito. A PF foi realizada sob controlo ecográfico vaginal 34-36h após a administração da hCG.
Biópsia testicular e ICSI
A polpa testicular foi colhida por TESE sob anestesia local conseguida com 5-6 ml de mistura de 1:1 1% lidocaína (Xilocaína 2% sem adrenalina, Braun) e 0,5% bupivacaína (Marcaína 0,5% sem adrenalina, Braun) em regime de ambulatório.
Após imobilização do testículo, efectuou-se uma incisão de cerca de 1 cm numa região avascularizada do escroto, atravessando a túnica vaginalis e túnica albugínea. Uma porção da polpa extrudida foi lavada em meio Sperm Preparation Medium® (SPM) (Medicult) e colocada numa placa de Petri contendo 1-3 ml de SPM, onde foi fragmentada e macerada com lâminas de bisturi. Pequenos fragmentos de polpa foram sendo colhidas em diferentes áreas do mesmo testículo e também no contralateral até se encontrarem espermatozóides. No máximo foram colhidos 6 fragmentos do mesmo testículo.
A pesquisa de espermatozóides foi efectuada num microscópio invertido (Diaphot 330, Nikon) equipado com ópticas de Hooffman e platina aquecida na ampliação de 400. Em todos os casos foram encontrados espermatozóides móveis. A suspensão foi lavada com 1-2 ml de SPM® e incubada em tubo cónico a 37 °C e 5% CO2. Imediatamente antes da ICSI, o pellet foi centrifugado a 200 g durante 10 minutos, após o que foi ressuspendido em 50-100 µl de SPM® e incubado a 37 °C e 5% CO2, durante pelo menos 30 minutos. A identificação e imobilização dos espermatozóides foi realizada em microgotas sobre parafina (Medicult).
A ICSI foi realizada mediante protocolo convencional2. Após a remoção das células do cumulus e corona, foi efectuada uma avaliação dos ovócitos de modo a serem apenas injectados os ovócitos em metafase II. A fertilização foi avaliada no dia seguinte, 16-18 h após a ICSI e confirmada pela presença de dois pro-núcleos (PN) distintos.
Criopreservação e descongelação da polpa testicular
Para a realização da criopreservação a suspensão testicular foi diluída em igual volume de Sperm Freezing Medium (Medicult), colocada em tubos/palhetas durante 10 min e em vapores de azoto líquido (N2L) durante 30 min, antes de ser submergida e armazenada em N2L. A descongelação foi efectuada colocando o tubo/palheta sobre água corrente durante 5 minutos e o sedimento foi preparado como acima descrito.
Cultura de embriões, transferência (TE) e detecção da gravidez
A qualidade embrionária foi avaliada diariamente até ao dia da TE, mediante a morfologia dos PN, tamanho, número e forma dos blastómeros, grau de fragmentação, aspecto da zona pelúcida e espaço perivitelino. Foram transferidos 2-3 embriões entre 2-5 dias após PF, consoante o número/qualidade dos embriões e idade da mulher. Foi administrada progesterona intravaginal para suporte luteínico (3 200 mg/dia; Utrogestan®, Jaba) a partir do dia da PF até à 12.ª semana de gestação, se apropriado.
A detecção da gravidez foi efectuada por doseamento de ß-HCG plasmática no 16.º dia após PF. A gravidez clínica foi confirmada pela observação de saco gestacional à 6.ª semana por ultra-sonografia. A taxa de implantação foi calculada pela razão entre o número de sacos observados e o número de embriões transferidos.
Análise de resultados
Foi efectuada análise estatística usando o teste de t-Student e χ2, sempre que apropriado. As diferenças foram consideradas significativas para p < 0,05.
RESULTADOS
No total foram realizados 86 e 50 ciclos usando, respectivamente, espermatozóides do testículo colhidos a fresco e previamente criopreservados (fig. 1). A idade da mulher, idade do homem, anos de infertilidade primária, dose de gonadotrofinas, dias de estimulação e FSH basal da mulher não foram significativamente diferentes entre os dois grupos (tabela 1).
Figura 1. Número de ciclos ICSI-TESE realizados com espermatozóides colhidos a fresco e previamente criopreservados.
No grupo I colheu-se um número significativo superior de ovócitos (9,2 ± 5,5 versus 10,3 ± 5,4; p < 0,001), tendo sido, concomitantemente, inseminado um maior número de ovócitos (6,6 ± 3,9 versus 8,0 ± 4,4; p < 0,001). A análise da taxa de fertilização normal (50,2% versus 49,0%), taxa de implantação (14,7% versus 19,3%) e taxa de gravidez clínica por transferência (25,7% versus 27,3%) não traduziu diferenças com significado estatístico entre os grupos I e II, respectivamente. Foram transferidos em média 1,7 ± 0,9 embriões no grupo I e 1,8 ± 1,1 embriões no grupo II (não significativo, NS).
Um pequeno subgrupo de 24 casais (67 ciclos) realizou ICSI-TESE tanto com espermatozóides frescos (grupo I', n = 27) como criopreservados (grupo II', n = 40). A idade da mulher, idade do homem, anos de infertilidade, dose de gonadotrofinas, dias de estimulação e FSH basal foi similar entre os dois grupos (tabela 2).
Apesar de ter sido colhido um número significativamente inferior de ovócitos no grupo I' (8,4 ± 4,1 versus 9,8 ± 5,1; p < 0,001), assim como de ovócitos inseminados (6,3 ± 3,3 versus 7,7 ± 4,5; p < 0,001), a taxa de fertilização não traduziu diferença com significado estatístico (57,9% versus 51,0%, respectivamente no grupos I' e II').
No entanto a taxa de implantação (2,2% versus 16,7%), taxa de gravidez clínica por transferência (3,9% versus 23,5%) e taxa de gravidez clínica por casal (4,2% versus 33,3%) foi significativamente inferior no grupo I' quando comparado com os dados do grupo II', respectivamente.
Não foram encontradas dificuldades técnicas nem complicações pós-operatórias, que pudessem perturbar a função testicular.
CONCLUSÕES
Os nossos resultados mostram que os espermatozóides testiculares usados a fresco ou após criopreservação em homens azoospérmicos têm o mesmo potencial de fertilização. Isto sugere que os espermatozóides do testículo podem ser criopreservados e usados com sucesso em ciclos subsequentes, uma vez que a taxa de implantação e gravidez clínica não foram significativamente afectadas pela criopreservação.
Em algumas amostras, após a descongelação, a mobilidade dos espermatozóides foi nula. No entanto, após 1-2 horas de cultura a 37 °C, observaram-se espermatozóides móveis suficientes para permitir a microinjecção de todos os ovócitos maduros, ainda que, por vezes, houvesse a necessidade de descongelar um tubo/palheta adicional, o que está de acordo com Balaban et al34 e Sousa et al21.
Os resultados do subgrupo de pacientes que realizaram ciclos com espermatozóides a fresco e criopreservados são semelhantes a estudos anteriores que apresentam resultados de gravidez semelhantes11,25-27. Os melhores resultados no grupo dos espermatozóides previamente criopreservados pode ser explicado pela experiência que se adquiriu nos ciclos iniciais, levando a uma optimização dos protocolos de estimulação, e assim, aumentando o número de ovócitos maduros e, por conseguinte, a taxa de fertilização. Isto pode ser apoiado pelo facto da dose de gonadotrofinas ser superior nos grupos II e II'. Este resultado é semelhante ao obtido por Wood et al35, que encontrou melhores resultados quando se usavam espermatozóides criopreservados do epidídimo, em detrimento dos espermatozóides a fresco, em homens com AO. Neste subgrupo de pacientes, os dados mostraram que a taxa de fertilização, implantação e gravidez clínica por transferência não foram afectados pela criopreservação.
Em suma, os nossos resultados confirmam as conclusões prévias de Oates et al25 e Gianaroli et al17, e sugerem que a criopreservação de espermatozóides colhidos por TESE é uma técnica que permite a obtenção de taxas de implantação e gravidez clínica por transferência razoáveis e até superiores às obtidas com espermatozóides colhidos a fresco.
A criopreservação surge assim como uma possibilidade viável, que permite: a) minimizar o risco de não haver espermatozóides disponíveis na altura da PF; b) evitar a repetição da biópsia e seus efeitos colaterais, e c) programar o ciclo de acordo com a conveniência da unidade e do casal. Ao mesmo tempo, transmite uma sensação de segurança aos casais ao saber que dispõem de uma nova oportunidade de colher espermatozóides a fresco, se for necessário.
Nogueira et al36 observaram por microscopia electrónica de transmissão fenómenos de enrolamento e ruptura da membrana plasmática e do acrossoma em amostras de testículo após descongelação, enquanto Steele et al37 não foram capazes de detectar qualquer diferença na percentagem de danos de DNA entre espermatozóides testiculares colhidos a fresco e previamente criopreservados. Estes dados devem ser tidos em consideração na altura de informar os casais sobre os resultados da técnica ICSI-TESE. No futuro esperamos recolher e correlacionar estes resultados com a taxa de abortamento.
Correspondência: Dra. Ilda Pires.
Unidade de Medicina da Reprodução. Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia. Unidade II.
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