A ordem dos fatores altera o produto. Reflexões sobre educação médica e cuidados paliativos

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Afirmação famosa, repetida infinidade de vezes, creditada a professores, líderes e expoentes máximos da medicina. Até o próprio Hipócrates já foi feito titular da conhecida sentença. Poderia até ser possível, mas algo me diz que o pai de medicina não teria simplificado a função do médico, e muito menos enunciado o conhecido postulado nessa ordem. Na antiga Grécia, era pouco o que se podia curar e muito o que devia se aliviar com conforto. Gosto de imaginar que Hipócrates teria formulado o aforismo em ordem inversa. Desse giro, que mais do que hipocrático é quase copernicano, surge a inspiração para escrever estas linhas.É notório o progresso técnico da medicina, algo que conseguimos apalpar diariamente. Quando eu me formei, 35 anos atrás, não tinha sido isolado o vírus HIV e os casos que surgiam eram de evolução fatal vertiginosa. As leucemias e os outros canceres do sistema sanguíneo matavam em pouco tempo mais de 90% dos pacientes acometidos. Hoje, com a utilização dos retrovirais, pacientes soropositivos vivem décadas; e curam‐se as leucemias em proporção inversa aos que morriam anteriormente. Um progresso inegável que devemos agradecer. Não há como negar que a medicina está curando muito mais do que antes.Evidentemente, as pessoas continuam morrendo. Esse é o destino do ser humano. Mas o corte no tempo – neste tempo que eu, médico, intervenho munido de modernos recursos diagnósticos e terapêuticos –, faz inevitavelmente pensar que conquistamos terreno na luta contra a morte. De fato, é verdade. Ganhamos mais batalhas, adiamos a invasão, mas, no final, sempre perderemos a guerra. É uma questão de tempo. Mas a ilusão de poder sobre a morte funciona de modo mágico e compreensível. «Se no momento estou ganhando, para que preocupar‐me com o que virá depois, talvez depois de muitos anos. Esse não é o meu problema». É como falar do aquecimento global que renderá um planeta inabitável nos séculos vindouros; ou como as falhas sísmicas que condenam aquele território ao cataclismo… Mas também em alguns milhares de anos. Eu, médico eficaz, me situo no dia de hoje, resolvo cada vez mais coisas, e sinto a minha performance atuando e fazendo a diferença. Mesmo assim, por mais cuidado que tenha em me situar em terreno confortável – distante no tempo e no espaço do aquecimento global, dos terremotos, da morte –, por vezes sou surpreendido e apalpo a minha impotência diante de uma doença terminal. Daí quero lembrar do aforisma – como era mesmo? – e ver se consigo me consolar, eu primeiro, do próprio fracasso, para depois consolar e confortar o paciente. Mas algo não funciona. Nem poderia. É um prêmio de consolação, um diploma de participação em quem estava pronto para conquistar o ouro olímpico.Voltemos ao nosso aforisma. Ensinamos a curar, mesmo que seja algumas vezes. Mas o sentir diário, a experiência educacional e clínica, a fenomenologia da vivência médica, vai me mostrando que esse curar é realmente frequente. Sim, tem as doenças crónicas, aquelas que ninguém cura, mas pelo menos trata. Vem à mente a lembrança daquele livro magnífico, A Cidadela<a class="elsevierStyleCrossRef" href="#bib0100">1</a>, onde o jovem, prestes a se formar, escuta o conselho do professor de patologia que recomenda seguir a sua especialidade, visto que os clínicos são os que cuidam de doenças incuráveis e os cirurgiões consertam sem saber exatamente o que fazem. Médicos mesmo – lhe diz o professor –, somente os patologistas. De fato, é um belo conselho, mas ninguém quer saber muita medicina quando há pouco a se fazer com esse saber. Não há dúvida que é um saber imprescindível, que melhora nossa atuação, mas a aplicação dele ficará para outra ocasião, ou para outros aplicarem no futuro. No momento que nos ocupa, o ouro olímpico fugiu das minhas mãos e não quero saber porque perdi a competição, nem pensar na próxima. Agora, somente me amarga o sentimento de fracasso. E, fosse pouco, o ônus de ter que confortar alguém – paciente, família – quando eu mesmo estou destroçado, ruminando a minha incompetência.Esta descrição, um tanto quanto Felliniana, é de fato real. E a culpa não é do jovem médico que experimenta o fracasso quando comprova que a sua ciência cura menos do que ele esperava, mas do processo de formação que está equivocado. O produto – o médico competente – não resultou como deveria ser. E quando o produto é defeituoso, a prudência manda creditar ao processo o gravame do resultado.Aqui a nosso giro hipocrático‐copernicano, facilmente deduzível de uma simples reflexão. O que se pode esperar quando a ordem recomendada para a atuação do médico é curar, aliviar e, em último caso, confortar? O lógico é pensar que estou avançando do mais importante para o menos importante, para o detalhe. Quando não consigo curar, tenho que aliviar. E quando nem aliviar consigo, resta‐me confortar. Proceder nessa sequência fatalmente apresenta o alívio e o conforto como um prêmio de consolação (para o médico) que se deparou com uma doença incurável, dolorosa, terminal.Mas, o que não se contempla – daí o engano terrível e trágico – é a epidemiologia (incidência, prevalência) desses termos. Enquanto confortar é algo que deve ser feito sempre, pela altíssima prevalência, o curar apresenta uma prevalência muito menor. Seria lógico, então, que o processo da atuação médica contemplasse essa proporção para produzir melhores médicos. Médicos que sempre sabem confortar – porque aprenderam que isso vem em primeiro lugar – e que, segundo os casos e as moléstias com as que se deparam, também sabem curar quando é possível. Quer dizer: a ordem dos fatores altera o produto. A ênfase, o tempo que se dedica nos anos de formação, respeitando as proporções «epidemiológicas», faz toda a diferença. Incluídas, claro está, a avalição dessas competências. Um médico que não sabe confortar, nem aliviar, não poderá ser creditado como tal, não deveria ter diploma de médico nem poder atuar profissionalmente. Mas o que a avaliação quer medir – sem consegui‐lo – é apenas o conhecimento que, em determinadas e limitadas circunstâncias, lhe permitiriam curar alguns pacientes. E nem isso avalia corretamente, porque da teoria, que ele sabe e responde na prova, até a prática há uma distância enorme.Uma obra recente<a class="elsevierStyleCrossRef" href="#bib0105">2</a>, com alta repercussão no mercado editorial, explica de modo narrativo e ameno estas falhas de formação do estudante de medicina e, consequentemente, dos médicos que saem ao mercado. O autor, conceituado cirurgião, fala do desconcerto, ou melhor, do descaminho do estudante de medicina. Ele entra na faculdade sabendo – ou suspeitando, ao menos – o que é cuidar e, com o tempo, esquece dos pacientes porque está muito ocupado com a medicina. Um esquecimento que, seja dito de passagem, deve‐se creditar à academia, responsável pela sua formação. Novamente o pensamento de médico e educador americano Paul Batalden: «todo sistema está perfeitamente desenhado para produzir os resultados que oferece». Não podemos simplesmente reclamar do produto; temos de revisar o processo de fabricação que, certamente, é defeituoso.Gawande explica os motivos da distração, sem utilizá‐los como desculpa: «O que nos preocupava era o conhecimento. Embora soubéssemos como demonstrar compaixão, não podíamos ter certeza de que saberíamos diagnosticar e tratar nossos futuros pacientes de maneira adequada. Pagávamos a mensalidade da faculdade para aprender sobre os processos internos do corpo, os complexos mecanismos de suas patologias e a ampla gama de descobertas e tecnologias acumuladas ao longo da história para impedi‐las. Não imaginávamos que precisaríamos pensar mais do que isso. (…). Ser útil aos outros, mas ser também tecnicamente competente e capaz de resolver problemas intrincados. A competência nos traz segurança, senso de identidade. Dedico‐me a uma profissão cujo sucesso se baseia em sua capacidade de consertar. Se seu problema pode ser consertado, sabemos exatamente o que fazer. Mas e se não pode? O fato de não termos respostas adequada a essa pergunta é perturbador e provoca insensibilidade, desumanidade e grande sofrimento»<a class="elsevierStyleCrossRef" href="#bib0105">2</a>.O alerta que chega do paciente: os erros médicos e a carência de humanismoNão é de surpreender as queixas dos pacientes, as reclamações a até os processos que caem sobre os médicos. Ninguém processa um médico por não ter sabido curar uma doença incurável ou fatal. A queixa, sempre, está embasada na falta de cuidado, quer dizer, na carência total de competência para providenciar alívio e conforto. Mas, como o nosso médico somente aprendeu a curar e deixou os outros atributos (que considera prêmios de consolação) para outro momento; como não se exercitou neles em todos e cada um dos pacientes que depositavam nele a sua confiança, o que lhe resta é apresentar‐se como o mecânico incompetente que não soube consertar a máquina. E a máquina sempre quebra, tem data de validade impressa. A guerra está perdida a priori, e faltou categoria profissional – humana e também técnica – para ganhar batalhas, e acolher o paciente e a família nesta caminhada pela vida.O percurso que a medicina tem seguido nestes últimos anos, engordando na técnica e desnutrindo‐se em humanismo, acarreta novos problemas que, além de prejudicar o paciente — que sempre leva a pior —, também causam transtornos ao médico. Todo o tema do «erro médico» encontra aqui a sua explicação mais profunda.A medicina não é uma ciência exata; necessariamente tem falhas, que só podem ser reparadas com amor e dedicação. Quando não se entende isto, quando um médico apresenta a medicina, na sua fantasia tecnológica, como uma ciência exata, deverá pagar também as consequências do insucesso. No caso de um engenheiro, uma ponte que ele construa não cairá (salvo ocorram terremotos ou imprevistos), se os seus cálculos forem exatos, e tal exatidão não é difícil de atingir. Se o médico quiser apresentar‐se como um técnico, como um mecânico de pessoas, deverá aceitar a punição se não fizer os cálculos certos para «consertar o estrago».Uma afirmação que poderá parecer chocante, mas que é também fruto da nossa experiência. O erro médico é sobretudo uma insuficiência no campo humanístico. O que protege o médico é a confiança do paciente e esta se perde quando o profissional aparece como um técnico brilhante, mas incapaz de aproximar‐se do paciente e sintonizar com sua afetividade. Os erros da família, dos amigos, daqueles que apreciamos, são sempre desculpáveis quando sabemos ler, nos olhos de quem falhou, o desejo de acertar, a boa vontade. Já os erros de um prestador de serviços impessoal – que naturalmente cobra pelo seu trabalho – não são facilmente desculpáveis, exigem indenização. É tudo uma questão de posicionamento e o paciente, inconscientemente, sabe disto. Quando nota que o médico carece da dimensão humana e se apresenta como um experto preocupado exclusivamente em consertar as avarias, pedirá satisfações e cobrará uma reparação se o profissional não conseguir cumprir suas promessas.Ao contrário, quando o paciente percebe que existe a dimensão humana, o afeto e carinho, não estabelece auditorias do atuar técnico do médico, atuação que, de resto, dificilmente saberia avaliar. Nunca se ouviu o seguinte comentário: «O meu médico é muito atencioso, está sempre à disposição, mesmo de madrugada. Mas, coitado, não sabe nada de medicina, é incompetente». Nunca se ouviu, porque não existe; porque a vertente humana do médico é a melhor credencial e a única que conquista o paciente.Por outro lado, quando nos aprofundamos nas queixas do paciente – queixas por imperícia, por falha técnica –, sempre encontramos insuficiência no terreno afetivo. Descobrimos, então, que todo aquele «erro médico» começou porque «o médico nem me examinou», ou porque «o médico não explicou nada do que poderia acontecer» e «nem prestou atenção no que eu estava falando». O golpe que se acusa é sempre na alma, não na deficiência técnica: essa vem depois, para dar corpo ao processo. Vale evocar um exemplo citado por Mendel no seu livro clássico, Proper Doctoring: «O paciente pode deixar de tomar um medicamento porque repara que lhe faz mal. É preciso levar em consideração estas intuições dos enfermos. O médico que não é humilde e não dá atenção aos pacientes é o melhor candidato para um processo judicial»<a class="elsevierStyleCrossRef" href="#bib0110">3</a>. São variações sobre o mesmo tema: ouvir o paciente, explicar as coisas, dimensão humana.Em acertada síntese, Marañón esclarece mais a temática: «O pecado dos médicos, nos últimos anos, foi abdicar de tudo quanto nossa missão tinha de entranhável, de generosa ‐ de sacerdotal, para usar um lugar‐comum –, e tentar convertê‐la numa profissão científica, quer dizer, exata como a do engenheiro ou a do arquiteto […]. No fim, tudo se voltará contra o próprio médico, pois, mesmo querendo, a sua ciência será embrionária, cheia de lacunas e de aspectos pouco exatos. Estas falhas somente podem ser preenchidas pelo amor. Seu prestígio exclusivamente científico estará, inevitavelmente, sujeito a quebras graves e contínuas. E é por isso que o médico se verá privado do respeito cordial dos seus pacientes e da própria sociedade, que não aceitará seu erro com generosidade mas espreitará suas falhas, perseguindo‐o onde quer que esteja»<a class="elsevierStyleCrossRef" href="#bib0115">4</a>.Tema candente pela sua atualidade, e um tema de difícil solução se o problema não for dimensionado, convenientemente, em equações humanísticas. Afinal, qual é o médico a quem não lhe morrem pacientes? A morte é a única coisa certa do acontecer humano e o médico, querendo ou não, está no caminho dessa saída obrigatória. Toda a sua perícia estará em saber «diluir a técnica que possui» em veículo humanitário, para que todos – paciente, família e ele mesmo – possam digerir, com sentido e transcendência, a natural contingência da vida, para a qual a ciência mais apurada será sempre insuficiente.O médico, o sofrimento e a morte. Um gerenciamento que requer competênciaO sofrimento humano e a morte são realidades no quotidiano do médico. Paradoxalmente, observa‐se um despreparo crescente do profissional em lidar com estas situações. Por que este descompasso?Uma primeira resposta a esta questão vem representada por uma postura que poderíamos denominar o médico técnico, entendendo‐se por tal aquele que perde a perspectiva humanística que a sua profissão traz implícita – verdadeira necessidade e não luxo – e reduz seu atuar profissional a simples técnica. É evidente que, em situações onde a técnica não tem mais nada a fazer, esse médico se verá despreparado para enfrentá‐las, sentindo‐se impotente, como no caso da morte. Essa atitude de despreparo provoca, se não se corrige, uma grave distorção da profissão médica. Quem atua apenas como técnico, quando a técnica se demonstra insuficiente, inclina‐se a procurar novos pacientes, deixando de lado aqueles com quem a técnica não funciona. Pode até parecer que existe maior preocupação com o desempenho profissional do que com o bem‐estar do paciente, motivo e razão da profissão médica.É necessária uma preparação que vai além da técnica para saber enfrentar profissionalmente a morte, como médicos, na acepção plena da palavra. É preciso atitudes, valores, saber lidar com o sentido da vida, compreensão do momento vital. Tudo isso que se poderia condensar na palavra filosofia de vida, não tivesse o sentido depreciativo, de impotência técnica que, por ignorância, costuma‐se lhe atribuir. Recorrer à filosofia, quando a técnica nada tem a fazer, é prova da deficiente formação profissional que hoje respiramos, como se a filosofia fosse um recurso «in extremis» e não o que realmente é: postura diante da vida, que envolve valores, crenças, significados, assim como técnicas, procedimentos e recursos modernos para o bom desempenho da missão que a vida conferiu a cada um.Não é supérfluo advertir que, curiosamente, aqueles que tentam tecnicamente todos os recursos para prolongar a vida, «mesmo contra o senso comum», são os primeiros a desistir do paciente quando este entra em fase terminal e «passam o caso a algum outro colega». Cada vez é mais raro ver «superespecialistas» junto do paciente moribundo, quando não há mais recursos terapêuticos a empregar. Pode se justificar esta atitude por sentir certo incômodo de «não estar fazendo nada pelo paciente», o que não é verdade. Na realidade, com a sua presença o médico está fazendo sim, e muito. Ocorre que simplesmente faz‐se algo que, não sendo quantificável, parece não ser útil. Isto é lógico, já que a utilidade se avaliou, erradamente, com parâmetros puramente técnicos. O fato de não poder se medir esta atitude em miligramas e doses terapêuticas não fala contra a importância desta atitude. O amor de uma mãe junto do filho doente não pode ser representado em dosagens terapêuticas, mas é inegável a sua eficácia. O médico deve estar lá com amor, mas como médico – não como a mãe ‐ e aqui está a chave do seu profissionalismo.Urge saber descobrir a missão do médico quando a técnica é insuficiente; uma missão vital que transcende a técnica e que no momento da morte do paciente assume proporções gigantescas. Deve possuir o médico um «saudável inconformismo» com a técnica, atitude que o empurra a procurar, na sua formação e atuação profissional, outras dimensões que lhe serão imprescindíveis para enfrentar situações que estão além das fronteiras técnicas. É deste modo como se constrói a estrutura do profissional, técnico e humanista ao mesmo tempo, capaz de assumir esses desafios.O gerenciamento da morte é uma função técnica do médico para a qual deve se preparar e a ordem dos fatores aludidos anteriormente não ajuda. Trata‐se de uma técnica que é curiosa, por não dizer peculiar, já que não deverá modificar o resultado final da sua intervenção. Modifica sim, e muito, o processo de como a situação evolui. Dito com outras palavras: morrer, todos morrem algum dia; a diferença está no modo como se morre. Aí entra a função técnica, gerencial, do médico.Requer esta função realismo e competência. Competência para eliminar a dor, com os modernos recursos da medicina paliativa. Os estudiosos do tema costumam apontar a medicina paliativa como o melhor antídoto contra a solução fácil, cômoda e antiética da eutanásia. Dizem eles que, quando um paciente que sofre afirma «Doutor, não quero viver», o que no fundo está dizendo é «Doutor, não quero viver deste modo». Em outras palavras, eliminar a dor faz parte da função técnica do médico.O gerenciamento da morte supõe perguntar‐se a todo o momento no que é melhor para o paciente, antes de tomar as medidas «de praxe», como internações desnecessárias, transferências para a Unidade de Terapia Intensiva (UTI), terapêuticas obstinadas e naturalmente ineficazes quando do processo de morrer se trata. Perguntar‐se, antes de tomá‐la, o que espero desta medida, desta prescrição. E, dialogando com a família, tomar a decisão pessoalmente, sem dividir responsabilidades, assumindo a conduta com caráter profissional. O gerenciamento da morte implica diretamente no cuidado simultâneo do paciente e da família. A família coloca questões que têm «pouco caráter técnico», mas de vital importância. Quer saber, por exemplo, se o paciente está sofrendo e se pode ser feita alguma coisa a mais. E sempre requer explicações do que está acontecendo.O médico não pode cansar‐se de repetir as explicações, sabendo que é necessário tempo para que a família possa digerir a situação. As palavras do médico são um recurso que facilita este processo de adaptação e o médico não pode poupá‐las. Não se trata de explicar um problema de fisiopatologia, mas de fazer entender de modo vital, com toda a carga de sentimentos normais na situação, o que está acontecendo com o familiar que está morrendo. Isto requer tempo e paciência.Deixar que a família participe no processo de morrer, junto do paciente, é atitude que elimina muitas dúvidas e ônus de consciência a posteriori. Quando a família está participando, vendo, tocando o paciente, não se pergunta depois que faleceu se poderia ter feito alguma coisa mais por ele, pois vivenciaram toda a evolução. Valha aqui uma reflexão sobre o distanciamento desnecessário da família em UTI, visitas limitadas e todo este universo que mereceria uma abordagem particular em outro momento.O paciente sabe mais do que o médico imagina que sabe. É um sentido a mais, de realismo vital, que a condição de moribundo lhe confere. Por isso, espera do médico realismo, conforto, acompanhamento profissional. Tanto prejudica o paciente o médico que com sua atitude «desiste» por ser um «caso terminal», como aquele que pretende iludir o paciente como se nada de grave estivesse acontecendo. Requer‐se por parte do médico uma atitude ponderada, realista, imbuída da virtude da prudência em verdadeiro balanceamento paradoxal. E levando em consideração que cada paciente é diferente e gosta de modos diferentes na abordagem de um processo que, afinal, é o que ele está sofrendo. Por isso, vale a pena lembrar as palavras de um médico humanista, estudioso das questões éticas: «Uma morte realmente digna não consiste somente na ausência de tribulações externas. A dignidade perante a morte não vem conferida por algo exterior, mas surge da grandeza de ânimo com que a pessoa enfrenta essa situação única. Por isso, morrer com dignidade significa não ser paciente apenas, mas agente. Estar ativo, participar do processo»<a class="elsevierStyleCrossRef" href="#bib0120">5</a>.Morte e Vida Severina: o homem é a melhor medidaAo mesmo tempo, existe uma insensibilização do médico perante a morte. A morte é um fenômeno que parece atrapalhar o exercício e o êxito profissional. Embora paradoxal, não é incomum o fato de o médico não contar com a morte como possibilidade real, que deve administrar. A morte não é apenas uma circunstância infeliz que surge e dificulta sua «brilhante atuação». Observamos hoje médicos que praticam alta tecnologia, mas que, explícita ou implicitamente, parecem abandonar os pacientes incuráveis, perante os quais os conhecimentos técnicos não funcionam. São médicos de «carros 0 km», corredores de prova a quem, no entanto, falta fôlego para administrar situações prolongadas, incômodas, insolúveis do ponto de vista estritamente técnico.Nada tem de estranho que haja uma insensibilização perante a morte, por parte dos médicos, quando essa é a postura da sociedade: afinal, os médicos são elementos dessa sociedade. Na verdade, a falta de sensibilidade que aparece no momento da morte não é mais do que o reflexo de uma falta de sensibilidade habitual para as situações corriqueiras da vida. Quem habitualmente quer consertar tudo – a pessoa doente – com a técnica, frustra‐se quando repara que a técnica nada mais tem a fazer. Quem habitualmente despreza o ser humano, na sua atitude profissional, não terá como encontrar esse mesmo ser humano que sofre no moribundo. Como se poder querer possuir recursos no caso limite – quando nada mais há para fazer – se habitualmente se desprezam esses recursos no dia‐a‐dia? Já comentava alguém que ética e humanismo para os médicos não são temas para discutir à beira do leito da UTI, com o paciente agonizante. São questões para ter presente na hora de prescrever, por exemplo, aspirina. Quem não prescreve aspirina com ética, carecerá dela quando tenha de tomar uma decisão que supõe aceitar, serenamente, o final de uma vida. Erroneamente se considera a ética como assunto para situações‐limite, quando, na verdade, toda a atividade médica está intrinsecamente perpassada pela veia ética.Vivemos tempos em que a morte é elemento quase ignorado. Uma curiosa postura que faz questão de esconder o que, na prática, é a única coisa infalível na vida de um ser humano: sua limitação e sua morte certa. Algo parecido ao avestruz, que esconde a cabeça para não ver o leão que está prestes a devorá‐lo. A morte, como fato concreto, mesmo sendo um evento diário, torna‐se único quando nos atinge. Com acerto, comenta um escritor que «o fenômeno mais trivial do universo, personalizado, toma proporções de maravilha. E todos – uma gente cansada de ir a missas de sétimo dia – todos se admiravam do cadáver do Ferraz, como se estivessem a contemplar uma aurora boreal»<a class="elsevierStyleCrossRef" href="#bib0125">6</a>.Na realidade, o despreparo para a morte é um caso particular da falta de preparação para a vida. Uma vida – a humana – sulcada de alegrias e realizações, mas também de sofrimentos e dor, elementos presentes que tonificam o contraste vital. Numa sociedade que foge sistematicamente da dor, que cultua o prazer como meta suprema, que esconde os doentes e os aleijados – se não fisicamente, apagando‐os quanto antes da memória –, não é de se estranhar que o enfrentamento com a morte se dê em inferioridade de condições. Sem contar com o tabu que a morte parece desfrutar. Não se fala dela, evita‐se o tema com perífrases que são amálgama de medo, esoterismo e superficialidade. Esconde‐se o fato das crianças, que nada sabem da morte; e se lhes conta que aquele familiar «viajou para muito longe». Tudo de modo suave, soft, como se não fosse esta uma realidade que nos atinge a todos.A sociedade esconde a morte. Uma conhecida estudiosa do tema, que possui ampla experiência em medicina paliativa na sua clínica de Paris, afirma contundentemente: «Em vez de enfrentar a realidade da proximidade da morte, nos empenhamos em aparentar que nunca chegará. Mentimos aos outros, mentimos para nós mesmos, e em vez de falar do essencial, ter palavras de amor, gratidão e perdão; em vez de nos apoiar mutuamente para cruzar juntos esse momento transcendental que supõe a morte de um ser querido, colocando todo o humor e o amor de que somos capazes, envolvemos com silêncio e solidão este momento única e essencial da vida»<a class="elsevierStyleCrossRef" href="#bib0130">7</a>.Por isso, o que melhor prepara para a morte é uma postura realista, profunda, «transcendente», para usar a linguagem filosófica, da própria vida. Quer dizer: é necessário balizar a vida em termos objetivos, contando com a limitação do tempo e da própria existência. Daí que para enfrentar a morte com coragem, sem medo, enfim, para saber morrer com dignidade, seja preciso aprender a viver pautado em valores perenes, que estruturem uma hierarquia sólida. Saber morrer é, antes de tudo, saber viver, pois a morte é um passo a mais – o último – no caminho da vida.Estas considerações são de capital importância, seja qual for a profissão que se desempenha. No caso do médico, cuja matéria‐prima de atuação é o ser humano, revestem‐se de interesse particular: são condição necessária, imprescindível, de competência. Não é possível ser médico à margem desta dimensão antropológica. O médico deveria lembrar‐se disso e dedicar tempo a pensar nessas questões. Mas parece que nem para pensar há tempo nos dias de hoje. Não será o mundo globalizado e intercomunicado quem nos oferecerá a oportunidade da reflexão necessária, da ponderação que precisamos. Vivemos um paradoxo de comunicação «on line», com uma falta cada vez maior de conteúdo. Fala‐se muito e a toda a hora de coisas cada vez menos importantes. É curioso – por não dizer assustador – que haja pessoas que consigam «conversar» na Internet durante horas a fio e sejam incapazes de manter um diálogo substancial por 10 minutos, ao vivo, sentados na mesa de um bar, tomando um café. A solução, pois, não deve vir de fora, do simples progresso. Este é um problema que cada um deverá resolver por si só, em autodidatismo e com decisões individuais. Mas é uma condição de sobrevivência, para o médico, para a medicina e para a própria vida.Ampliar os horizontes – necessariamente quotidianos e não apenas tanatológicos – é pensar na relação médico‐paciente‐família, onde a atitude do médico deve conquistar, uma vez e outra, a confiança, condição sine qua non para um bom relacionamento, subsídio da terapêutica eficaz. A confiança não se impõe; apenas – e não é pouco – inspira‐se e o paciente sabe em quem pode confiar. Basta ouvir os comentários dos pacientes nos «bastidores» da consulta médica. Frases como: «Esse médico sabe muito, mas este outro é melhor», ou «Não fui com a cara dele e não voltei», ou ainda «Agora os médicos não te examinam. Somente pedem exames. Nem olham na tua cara; somente digitam no computador», deveriam nos fazer pensar que o relacionamento médico‐paciente não está com a melhor das cotações. Algo neste estilo queria significar Sir William Osler, paradigma do médico humanista, quando afirmava: «Mais importante que aquilo que o médico faz é o que o paciente pensa que o médico faz».Forçoso reconhecer que o estudo da morte, que para os médicos deveria ser do seu quotidiano, encerra também riquezas enormes para a vida do dia‐a‐dia. Novamente, Marie de Hennezel traz novas luzes para nossa consideração: «A morte que nos tocará viver e que agora leva amigos e familiares é a que nos impulsiona a não ficar na superfície das coisas e dos seres humanos, o que nos empurra a penetrar na sua intimidade»<a class="elsevierStyleCrossRef" href="#bib0130">7</a>. Refletir sobre a morte nos confere densidade na existência para enfrentar a vida na sua verdadeira dimensão, com peso específico, sem conformar‐se com superficialidades que minimizam a pessoa e, no caso do médico, o tornam inapto para sua função. A vivência da morte é uma verdadeira orientação para a vida: «O fato de que a morte nos angustie tanto talvez se deva a que nos situa perante as últimas perguntas, as autênticas, essas que tantas vezes adiamos para melhor ocasião, para quando sejamos velhos, ou sábios, para quando tenhamos tempo de nos defrontar com as questões essenciais da vida»<a class="elsevierStyleCrossRef" href="#bib0130">7</a>.Saber cuidar da morte é o resultado de quem sabe cuidar da vida. Ser médico, humanista e técnico, com ciência e arte, perante a morte implica ser médico todos os dias da vida, nas atitudes quotidianas, em permanente aprendizado e constante atenção para cuidar do paciente que se confia a nós. Bem exprime nosso poeta este sentimento que deveria inundar a vida e atitudes dos médicos e profissionais de saúde: «Podeis aprender que o homem/é sempre a melhor medida/Mais, que a medida do homem/não é a morte, mas a vida»<a class="elsevierStyleCrossRef" href="#bib0135">8</a>.Por uma medicina plena: ciência e arte, impregnados de postura éticaA profissão médica supõe dedicação peculiar ao ser humano, procurando a saúde e o bem‐estar. Deve‐se integrar aqui o progresso técnico, e todas as outras situações que, fugindo do âmbito técnico, requerem estrutura humanística – ética e filosófica – para serem abordadas profissionalmente: a dor, o sofrimento, a vulnerabilidade humana, a dignidade que o ser humano possui e a própria morte. A insensibilização para a morte é reflexo de uma insensibilização para a vida. Uma atitude irrefletida perante os valores humanos e transcendentes do ser humano, que teimosamente se vai alimentando com elementos técnicos, deixando de lado os verdadeiros nutrientes: um matar a fome sem alimentar, uma genuína subnutrição humanística.Hans Jonas, com a sua ética da responsabilidade<a class="elsevierStyleCrossRef" href="#bib0140">9</a>, adverte que o que nos distingue aos humanos dos animais é um tripé constituído pelo utensílio, pela imagem e pelo túmulo. O utensílio é a técnica; a imagem é a capacidade de representar a realidade através das artes, e o túmulo é a consciência da transcendência, a representação da morte que lhe situa numa dimensão que vai além da sua própria existência. Facilmente se conclui que, embora no relativo à técnica a distância com os animais é notável, cada vez se frequentam menos as artes – as humanidades – e o sentido da transcendência está quase abolido. As consequências são funestas, porque não se frequentando «o túmulo», porta da transcendência, é difícil manter o sentido de missão e a necessidade de sentir‐se útil neste mundo, como parte da felicidade que perseguimos.Esta preocupação humanística deveria ser diária no médico e não apenas em circunstâncias finais, perante a morte. Quem, no dia‐a‐dia, não sabe atender um paciente considerando a dimensão humana do mesmo – ponderando seu ser pessoal e único – também, no momento da morte, se encontrará desarmado. Quem tudo quer consertar com técnica – seja esta troca de medicamentos, solicitação de sofisticados exames ou terapêuticas revolucionárias –, também no momento final procederá de igual modo. Surge então a decepção de quem, praticando uma fidelidade cega e irracional à técnica, verdadeiro fanatismo, repara que a técnica falha. Já disse alguém, em linguagem vital, que a parceria com a técnica muito tem de paixão arrebatadora, que, embriagando os amantes, conduz fatalmente à infidelidade com o passar do tempo. Quem não cuida do seu paciente do dia‐a‐dia, com humanismo e ciência, não saberá cuidar do moribundo.Facilmente se entende como, neste contexto, o problema de como atuar perante um doente assim chamado terminal – valha incluir aqui também a eutanásia, distanásia, ortotanásia e todas as variações sobre o mesmo tema – gera perplexidades e discussões infindáveis. É um diálogo de surdos, onde a questão é acertar a sintonia, falar o mesmo idioma, o que infelizmente não acontece. Os técnicos parecem solicitar soluções pré‐fabricadas, também técnicas, para atuar. Quem fez de tudo técnica – toda sua atuação médica – pretende também tornar técnica sua conduta perante a morte. É gritante o absurdo da situação, já que o que na verdade se exige é uma postura que ultrapassa a técnica. Elaborar um manual de casuística – um vade‐mécum técnico para saber como comportar‐se nestes casos – seria algo assim como confeccionar um manual de «sintomas e remédios» para um balconista de farmácia. Obviamente, é preciso muito mais para diagnosticar e prescrever a terapêutica adequada. Semelhante desproporção existe quando se pretende «reduzir à técnica as atitudes perante a morte».O médico precisa, para abordar estes temas – que são ultra‐técnicos, vão além da pura preparação científica –, de um embasamento ético, de formação e conhecimento humanístico e filosófico. Somente poderá se encontrar solução para os dilemas que são apresentados, quando sintonizamos e falamos a mesma linguagem. São dilemas de ordem filosófica, que atingem o ser humano como um todo; como tal, devem ser respondidos e isto orientará em cada caso o médico no seu posicionamento. O problema que nos ocupa – a morte – e todos os seus satélites – a dor, o sofrimento, a dignidade de homem – são questões «insolúveis na técnica». Como as vitaminas e os remédios, precisam do meio adequado para dissolver‐se e atuar com eficácia. No caso destas verdades, a solubilidade das mesmas deve ser garantida pelo meio que o médico possui: formação humanística. São, pois, verdades «humano‐solúveis» e nunca «técnico‐solúveis».A formação ética do médico é uma necessidade imperiosa para construir sólidos alicerces, sobre os quais se possa apoiar um modo coerente de atuação. Se carecer dela, o médico praticará uma ética de ocasião, ignorando os fundamentos, e com a possibilidade frequente de errar, mesmo com a melhor boa vontade. Para uma atuação ética, boa vontade não é suficiente; é preciso conhecimento dos fundamentos, da natureza humana, da dignidade que dela decorre.Quando se possui esta base ética, muitos dos dilemas que a casuística traz resolvem‐se com naturalidade. O médico não se sente na obrigação de prolongar a vida, ou de causar a morte, porque sabe que sua função é atender o paciente de modo digno, estar a serviço da vida e aliviar as dores e sofrimentos. Saberá rejeitar a tentação de erigir‐se em senhor da vida ou da morte, porque não é este seu papel. A ética coloca‐nos na dimensão certa, delimita nossa função, amplia os horizontes da missão que vão além da técnica, prepara‐nos para desempenhá‐la com atitudes humanas.Naturalmente, a questão ética é algo que compromete, e daí a dificuldade que estas realidades apresentam na hora de serem vividas. O médico deve atuar com profissionalismo, saber guardar as distâncias, sem envolver‐se de modo desordenado com a afetividade do paciente. O carinho, a dedicação, a atenção privilegiada do médico não implica sucumbir às emoções. Isso é norma clássica da boa conduta médica. Mas, por outro lado, o médico não pode prescindir da sua condição de homem e muito menos da condição humana do paciente. Por isso, tem de saber entrar nessa esfera que foge da técnica e que diz respeito às realidades vitais, onde está incluída a morte, falando a mesma linguagem, em sintonia de quem está no mesmo barco. Aqui, é onde as coisas se complicam: ninguém dá o que não tem.Quem nunca se preocupou com estes temas ou na prática e na sua vida pessoal pouco lhe afetam, porque os estocou num recanto pouco frequentado da consciência, carecerá de recursos, nada terá a oferecer. Daí a insatisfação do paciente, quando não a decepção, em receber conselhos standard, plastificados, provenientes de quem patentemente não os vive. A ética, quando se vive, acaba modificando a própria vida e daí vem a credibilidade, a força do exemplo. Não há ética médica sem ética pessoal, quer dizer, sem que a ética deixe de atingir plenamente o médico como pessoa. As estruturas são o reflexo do que os indivíduos levam dentro de si. Esse é o verdadeiro desafio que nos coloca a consideração da insuficiência técnica perante o paciente que enfrenta o transe da morte. «Ser um profissional é mais do que ser um técnico. É algo enraizado na nossa consciência moral, pois somente quem tem a vontade e a capacidade de dedicar‐se aos outros, e procurar um bem mais alto, pode fazer profissão pública do seu modo de vida»<a class="elsevierStyleCrossRef" href="#bib0145">10</a>.Cuidados paliativos: o que os outros não querem (não sabem) fazer?A nossa vida é feita de histórias. São as vivências as que marcam e definem o nosso perfil e alimentam nossa existência. Somente depois vamos buscar as ideias, o embasamento – o referencial teórico, como dizem os pesquisadores – que sustenta e ordena as vivências.Talvez por isto, enquanto revisava os tópicos que aqui se recolhem e com os quais venho lidando há muitos anos<a class="elsevierStyleCrossRef" href="#bib0150">11</a>, uma história veio à minha lembrança. Foi anos atrás, conversando com um amigo médico que se dedica aos cuidados paliativos num país da Europa. Perguntei‐lhe como tinha decidido trabalhar nessa área. Ele sorriu e respondeu com uma simplicidade esmagadora: «Não pense você que eu tinha vocação para fazer cuidados paliativos, ou que isto era o meu sonho. Na verdade, sou geriatra de formação e o que sempre fiz foi dedicar‐me ao meu paciente com afinco. Com o tempo, reparei que, ao cuidar do meu paciente até o final, olhei em volta e todos os médicos que tinham participado na vida dos meus pacientes haviam desaparecido no momento em que eles finalizavam a vida. Fiquei sozinho. Na verdade, me surpreendi praticando paliativos. Como você vê, foi apenas uma consequência da minha dedicação. E ver que ninguém estava lá para fazer isso. Mais nada».Praticar os cuidados paliativos é decorrência de quem, ao longo da sua atuação médica, soube ter o paciente como foco principal do seu atuar. O paciente, repito, e não a doença. Requer uma prudência clínica que ilumina as prioridades a serem tomadas. Gawande explica‐o com clareza: «A diferença entre os cuidados médicos padrão e os cuidados paliativos não é a diferença entre tratar e não fazer nada. A diferença está nas prioridades. Na medicina normal, o objetivo é prolongar a vida. Sacrificamos a qualidade da existência no presente – realizando cirurgias, oferecendo quimioterapia, colocando na UTI – em troca da chance de ganhar mais tempo no futuro. Nos cuidados paliativos, se ajuda o paciente com doenças letais a terem a vida mais plenas que podem ter, concentrando‐se em objetivos como eliminar a dor, preservar as faculdades mentais o maior tempo possível, possibilitar que tenha uma vida que se aproxime do normal. A prioridade nos paliativos não é viver mais, mas viver melhor»<a class="elsevierStyleCrossRef" href="#bib0105">2</a>.A «conversão» deste autor, cirurgião de formação, aos cuidados paliativos fez com que se debruçasse sobre a pesquisa. Encontra estudos variados que mostram que pacientes com doenças terminais vivem mais tempo quando colocados em programa de paliativos, do que quando tratados com medicina tradicional mediante cuidados oncológicos normais. O autor – que pensava que os paliativos aceleravam a morte – comprova que não é assim, que vivem melhor e alguns vivem até mais tempo. E conclui: «lição zen, você vive mais tempo quando para de tentar viver por mais tempo».Mas a prática dos cuidados paliativos não é – como erroneamente se interpreta – adquirir novas habilidades e competências técnicas, como um elemento acrescentado à prática habitual da medicina. Algo assim como um cirurgião que aperfeiçoa sua técnica com um curso de cirurgia laparoscópica ou robótica. Praticar cuidados paliativos é algo que qualquer médico poderia – e deveria – saber fazer, se investiu tempo em refletir e praticar sobre todas as considerações que até aqui foram enumeradas e exaustivamente analisadas. Quer dizer, se soube construir, independente da sua especialidade médica, uma postura integral, ética, realista, impregnada de ciência e arte, dedicada ao bem‐estar do paciente.O desafio não é pequeno como, mais uma vez, adverte Gawande. «O problema com a medicina e as instituições geradas para cuidar dos doentes e dos idosos não é o fato de terem uma visão incorreta que dá sentido à vida. O problema é que praticamente não têm visão nenhuma. O foco da medicina é estreito. Os profissionais da área médica concentram‐se na reparação da saúde, não no sustento da alma. Porém – e esse é o doloroso paradoxo –, decidimos que são esses os profissionais que devem definir a maneira como vivemos nossos últimos dias. Por mais de meio século, tratamos as provações das doenças, do envelhecimento e da mortalidade como questões técnicas. Tem sido um experimento de engenharia social, colocando nossos destinos nas mãos de pessoas valorizadas mais por suas capacidades técnicas do que por sua compreensão das necessidades humanas»<a class="elsevierStyleCrossRef" href="#bib0105">2</a>.Reconheço que a conclusão à qual Gawande chega me conquistou. É o cirurgião experiente, que enxerga o cuidado com o mesmo rigor profissional que as intervenções cirúrgicas, e que, portanto, ambos procedimentos requerem um reconhecimento adequado, também financeiro. «Considerando que algumas dessas conversas (dos cuidados paliativos) precisam ser longas, muitos argumentam que o problema‐chave tem sido os incentivos financeiros: pagamos aos médicos para que façam quimioterapia e cirurgias, mas não para que dediquem seu tempo a determinar quando não são aconselháveis. Temos aqui uma questão ainda não resolvida: qual é a verdadeira função da medicina e para que deveríamos estar pagando aos médicos?Neste ponto, a minha identificação com o autor foi total, pois não são poucas as vezes que tenho afirmado, em aulas e conferências, que enquanto o mercado mantenha altos investimentos em tecnologia, mas considere a humanização da medicina como um voluntariado apenas louvável, não vamos nunca mudar o sistema. O gestor gasta em aparelhos, mas fecha o orçamento quando se trata de educação, de sensibilizar os profissionais da saúde para os cuidados reais, para «o que conta no final», como diz o título do livro de Gawande. De novo, o sistema entrega o produto para o qual foi desenhado. Um desastre.Os paliativos surgiram nas últimas décadas para trazer esta dimensão de cuidado aos pacientes que estão morrendo, com expectativas limitadas de vida. A especialidade avança, mas Gawande não vê nisto motivo de comemoração. O entusiasmo do cirurgião converso aos paliativos – catalisado pela história de vida do pai dele, é claro – leva a conclusões de vulto. «Só será possível comemorar quando todos os clínicos tiverem esse tipo de posicionamento com cada pessoa por eles tratada; quando não houver mais necessidade de uma especialidade separada»<a class="elsevierStyleCrossRef" href="#bib0105">2</a>. Eu concordo com ele, mas somente em parte. Se os médicos fossem o que se supõem que têm de ser, isso seria verdade. Mas a distração e o descuido já levam décadas acumuladas. Não advogo por deixar os cuidados apenas nas mãos de alguns especialistas, dos assim chamados paliativistas, para que o resto dos médicos continuem divertindo‐se com a medicina e esquecendo‐se dos pacientes. Não me parece uma solução sustentável, porque estaríamos certificando o fracasso da medicina como ciência humana. Mas, por ora, que um grupo de médicos competentes assuma esta tarefa, e seja como um despertador para todos os outros, uma lembrança hipocrática, parece‐me imprescindível. Afinal, a ordem dos fatores que cristaliza em produto alterado leva muito tempo sendo praticada e ensinada. É, talvez, no ensino, nos bancos acadêmicos, onde deve se reverter essa ordem equívoca de fatores.Cuidados paliativos na graduação médica: invertendo os fatores para chegar no produto corretoVoltamos ao nosso aforismo inicial, interrogando‐nos novamente sobre o processo que fabrica o produto equivocado. É evidente que uma proposta de giro copernicano no aforismo deve passar pela formação médica, pelos anos de graduação universitária.O curriculum de graduação médica é governado por uma variante do princípio de Arquimedes: assim como 2 corpos não podem ocupar o mesmo lugar num fluído, é preciso optar por uma série de conhecimentos e deixar outros de lado. Esta harmonia, tão difícil de estabelecer como necessária, requer integrar os conhecimentos e colocar os ingredientes necessários do saber médico na proporção correta<a class="elsevierStyleCrossRef" href="#bib0155">12</a>.Selecionar dentre esses conhecimentos, aqueles que são absolutamente indispensáveis para um aluno no período de formação, é tarefa que exige esforço. O bom senso e a competência docente indicam que o objetivo não é formar médicos que sejam capazes de armazenar a maior capacidade de conhecimento, mas garantir que nenhum deles irá ao mercado de trabalho com carências essenciais. É preciso decidir e exigir aquilo que um médico não pode deixar de saber!A faculdade deve formar médicos generalistas bem preparados – o que poderíamos denominar bons médicos «células tronco» –, que depois tenham capacidade para diferenciar‐se em especialistas competentes. Se a formação é deficiente, as «células tronco» deixarão a desejar e a especialização posterior não suprirá os defeitos de base<a class="elsevierStyleCrossRef" href="#bib0160">13</a>.É neste ponto onde os cuidados paliativos se apresentam como cenário fértil na educação dos estudantes de medicina, pois através deles é possível adquirir competências, saberes, conhecimentos e habilidades que todo médico deve possuir.Educadores concordam sobre a necessidade de se ensinar cuidados paliativos na graduação e em programas de residência e, por isso, a disciplina tem sido introduzida no currículo de muitas escolas médicas em todo o mundo<a class="elsevierStyleCrossRef" href="#bib0165">14</a> O ensino dos cuidados paliativos não consta na grade curricular das escolas médicas brasileiras e os médicos brasileiros não são educados para lidar com a terminalidade da vida e com o sofrimento, algo que o mercado de trabalho solicita cada vez com maior insistência<a class="elsevierStyleCrossRef" href="#bib0170">15</a>.No nosso meio, existem vários relatos de atividades didáticas extracurriculares em cuidados paliativos com estudantes de medicina e residentes, que mostram importante impacto de aprendizado<a class="elsevierStyleCrossRefs" href="#bib0175">16–19</a>.Os estudantes aprendem a ver o paciente como foco principal no atendimento, adquirem familiaridade com o mundo do paciente e buscam conhecer o contexto em que vive e suas crenças, ferramentas essenciais para um bom cuidado. Quando os residentes começam a se sentir confortáveis em cuidados paliativos, sua performance melhora intensamente em outros campos de ação menos complexos<a class="elsevierStyleCrossRef" href="#bib0160">13</a>.Igualmente aprendem a lidar com os familiares, compreendem a importância de permitir que membros da família falem sobre os sentimentos do paciente e sobre seus próprios sentimentos e dificuldades. Uma ocorrência relativamente comum atraiu a atenção – algumas vezes, quando pacientes tinham dificuldades em comparecer ao consultório, os familiares iam sozinhos para obter conselhos e prover a continuidade dos cuidados. Alguns familiares expressavam sua gratidão através de cartas, telefonemas ou mesmo visitando o ambulatório após a morte do paciente. Ocasionalmente, retornavam com uma única necessidade, compartilhar sentimentos e experiências relacionados aos momentos finais do paciente<a class="elsevierStyleCrossRef" href="#bib0160">13</a>.A atuação em cuidados paliativos desenvolve também habilidades que não se aprendem habitualmente na universidade, como melhorar a capacidade de comunicação. Os médicos não aprendem a comunicar‐se durante a sua formação e muitos pensam que o farão empiricamente. A prática demonstra que comunicação é uma habilidade a ser desenvolvida e aprimorada, assim como qualquer conhecimento técnico, mas em um cenário com pacientes delicados e familiares desgastados pelo contexto, a comunicação deve ser uma aliada, esclarecendo as dúvidas das famílias, transmitindo segurança e dizer com sinceridade que nem tudo tem explicação, mas que o nosso intuito é deixar o paciente confortável. Alguns médicos evitam esses momentos, temem as perguntas para as quais não tem respostas. Ou mostram‐se impacientes para explicar, repetidamente, o quadro do paciente, uma vez que não é raro a família mostrar‐se pouco conformada quanto à impossibilidade de cura. Essa habilidade de comunicação é uma qualidade do médico que pratica os cuidados paliativos e as famílias, notando a empatia do profissional, tendem a demonstrar confiança e expor melhor seus anseios<a class="elsevierStyleCrossRef" href="#bib0160">13</a>.Aprende‐se, ao mesmo tempo, o bom senso, o liberalismo que o médico tem de praticar. Assim, não seguir protocolos restritos por estar focados no paciente. Se ele solicitar a alta médica para passar seus últimos e preciosos momentos com sua família, deitado em sua cama e em um ambiente familiar, e tiver condições mínimas para tal, ele será atendido. Do mesmo modo em relação aos caprichos alimentares, orientar as famílias quanto à liberação da dieta, qualidade de vida não apenas viver sem dor ou desconfortos, mas sentir prazer no paladar<a class="elsevierStyleCrossRef" href="#bib0160">13</a>.Os ambulatórios didáticos de cuidados paliativos mostram‐se como um cenário único, onde é possível promover o perdão, a harmonia familiar, comunicando que a tão temida morte está iminente. Aprendem‐se, na prática, que quando os demais médicos que passaram pelo paciente já não o acompanham mais, o médico que pratica os cuidados paliativos está presente, auxiliando não apenas na parte médica, mas em contato com a família, sentindo‐se parte dela. Os cuidados paliativos ensinam compaixão e a sensação do dever cumprido. É conseguir segurar a mão do paciente e dizer «foi um prazer cuidar do senhor», sem culpa e sem nenhum sentimento de impotência<a class="elsevierStyleCrossRef" href="#bib0160">13</a>.Certamente, o ensino das Humanidades (literatura e artes em geral), o qual vem sendo introduzido em muitas escolas médicas, com o objetivo de proporcionar um maior conhecimento do ser humano e preparar estudantes e jovens médicos a lidar melhor com as questões que emergem no cenário de cuidados paliativos, tem‐se mostrado, de alguma forma, benéfico. No entanto, esse ensinamento somente é útil quando realizado paralelamente à prática e proporcionado por profissionais que consigam transitar livremente pelos 2 mundos – o das artes e o da vida real. Assim, tais profissionais permitem a integração de conhecimentos graças a seus exemplos e orientações, os quais remetem à ideia de que não existem regras prontas – é necessário refletir e criar em cada situação vivida<a class="elsevierStyleCrossRef" href="#bib0160">13</a>.Colocando ponto final a estas reflexões, outra lembrança acode à minha mente. As ligas acadêmicas que, há 40 anos, existiam na faculdade onde cursei medicina, na Casa de Arnaldo. Eram apenas 3, número desprezível comparado com a proliferação de ligas que hoje vemos. Eram 3, mas com um propósito docente muito claro e objetivo. No primeiro ano podíamos frequentar a liga de combate à sífilis, onde o objetivo não era alta pesquisa sobre o treponema, mas simplesmente aprender a dar uma injeção intramuscular. Habilidade modesta, mas de suma importância. No terceiro ano, éramos convidados a frequentar a liga de combate à febre reumática. Pouco havia de combate, a não ser as mesmas injeções que tínhamos aprendido a dar na liga da sífilis, mas havia um aprendizado riquíssimo: a ausculta cardíaca, em cima de uma variedade infinita de sopros cardíacos que os pacientes acometidos da pancardite reumática apresentavam. Finalmente, no quarto ano, tínhamos a opção de frequentar a liga da pediatria, também com um objetivo tão claro como importante: aprender puericultura. Ainda lembro o saudoso professor E. Marcondes, titular da pediatria, comentar: vocês já viram crianças com todo tipo de doenças neste hospital, mas são capazes de se formar sem saber o que é uma criança normal! Para isso servia a liga de pediatria, para conhecer crianças normais, praticar a puericultura, saber preparar mamadeiras, pesar e medir as crianças, aprender o esquema de vacinação.E os cuidados paliativos? Postulamos aqui a inclusão dessa disciplina no curriculum da graduação médica, mas sabemos dos problemas que tal articulação requer nas congregações docentes e as negociações políticas pelo espaço de tempo curricular. Quem sabe, o caminho poderia ser fomentar as ligas de cuidados paliativos, pois o impacto docente já foi mostrado em projetos extracurriculares semelhantes. Com toda a sinceridade, se me perguntam qual é objetivo didático de uma liga de transplante ou de psicoterapia breve – por dar um par de exemplos –, não saberia dizer. Parecem‐me conhecimentos muito específicos, um diletantismo em quem se prepara para ser um bom médico «célula tronco». Mas, em se tratando de uma liga de cuidados paliativos, eu a colocaria no mesmo nível de aprendizado que as 3 ligas clássicas dos meus anos de estudante.O aluno aprenderia, nessa liga de cuidados paliativos, atitudes e habilidades que um médico não pode deixar de saber. Enquanto não chega o espaço curricular, a liga seria uma opção convidativa e interessante. O estudante aprenderia que o primeiro é confortar, para aliviar do melhor modo possível, e que curar é um evento que, com alguma frequência, o médico consegue proporcionar. Aprenderia a ordem inversa dos fatores, estaria se construindo como um produto correto, como um médico de verdade." 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The order of the factors changes the product. Reflections about Medical Education and Palliative Care

Pablo G. Blasco

SOBRAMFA – Educação Médica e Humanismo, São Paulo, SP, Brazil

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Gosto de imaginar que Hip&#243;crates teria formulado o aforismo em ordem inversa&#46; Desse giro&#44; que mais do que hipocr&#225;tico &#233; quase copernicano&#44; surge a inspira&#231;&#227;o para escrever estas linhas&#46;</p><p id="par0010" class="elsevierStylePara elsevierViewall">&#201; not&#243;rio o progresso t&#233;cnico da medicina&#44; algo que conseguimos apalpar diariamente&#46; Quando eu me formei&#44; 35 anos atr&#225;s&#44; n&#227;o tinha sido isolado o v&#237;rus HIV e os casos que surgiam eram de evolu&#231;&#227;o fatal vertiginosa&#46; As leucemias e os outros canceres do sistema sangu&#237;neo matavam em pouco tempo mais de 90&#37; dos pacientes acometidos&#46; Hoje&#44; com a utiliza&#231;&#227;o dos retrovirais&#44; pacientes soropositivos vivem d&#233;cadas&#59; e curam&#8208;se as leucemias em propor&#231;&#227;o inversa aos que morriam anteriormente&#46; Um progresso ineg&#225;vel que devemos agradecer&#46; N&#227;o h&#225; como negar que a medicina est&#225; curando muito mais do que antes&#46;</p><p id="par0015" class="elsevierStylePara elsevierViewall">Evidentemente&#44; as pessoas continuam morrendo&#46; Esse &#233; o destino do ser humano&#46; Mas o corte no tempo &#8211; neste tempo que eu&#44; m&#233;dico&#44; intervenho munido de modernos recursos diagn&#243;sticos e terap&#234;uticos &#8211;&#44; faz inevitavelmente pensar que conquistamos terreno na luta contra a morte&#46; De fato&#44; &#233; verdade&#46; Ganhamos mais batalhas&#44; adiamos a invas&#227;o&#44; mas&#44; no final&#44; sempre perderemos a guerra&#46; &#201; uma quest&#227;o de tempo&#46; Mas a ilus&#227;o de poder sobre a morte funciona de modo m&#225;gico e compreens&#237;vel&#46; &#171;Se no momento estou ganhando&#44; para que preocupar&#8208;me com o que vir&#225; depois&#44; talvez depois de muitos anos&#46; Esse n&#227;o &#233; o meu problema&#187;&#46; &#201; como falar do aquecimento global que render&#225; um planeta inabit&#225;vel nos s&#233;culos vindouros&#59; ou como as falhas s&#237;smicas que condenam aquele territ&#243;rio ao cataclismo&#8230; Mas tamb&#233;m em alguns milhares de anos&#46; Eu&#44; m&#233;dico eficaz&#44; me situo no dia de hoje&#44; resolvo cada vez mais coisas&#44; e sinto a minha performance atuando e fazendo a diferen&#231;a&#46; Mesmo assim&#44; por mais cuidado que tenha em me situar em terreno confort&#225;vel &#8211; distante no tempo e no espa&#231;o do aquecimento global&#44; dos terremotos&#44; da morte &#8211;&#44; por vezes sou surpreendido e apalpo a minha impot&#234;ncia diante de uma doen&#231;a terminal&#46; Da&#237; quero lembrar do aforisma &#8211; como era mesmo&#63; &#8211; e ver se consigo me consolar&#44; eu primeiro&#44; do pr&#243;prio fracasso&#44; para depois consolar e confortar o paciente&#46; Mas algo n&#227;o funciona&#46; Nem poderia&#46; &#201; um pr&#234;mio de consola&#231;&#227;o&#44; um diploma de participa&#231;&#227;o em quem estava pronto para conquistar o ouro ol&#237;mpico&#46;</p><p id="par0020" class="elsevierStylePara elsevierViewall">Voltemos ao nosso aforisma&#46; Ensinamos a curar&#44; mesmo que seja algumas vezes&#46; Mas o sentir di&#225;rio&#44; a experi&#234;ncia educacional e cl&#237;nica&#44; a fenomenologia da viv&#234;ncia m&#233;dica&#44; vai me mostrando que esse curar &#233; realmente frequente&#46; Sim&#44; tem as doen&#231;as cr&#243;nicas&#44; aquelas que ningu&#233;m cura&#44; mas pelo menos trata&#46; Vem &#224; mente a lembran&#231;a daquele livro magn&#237;fico&#44; <span class="elsevierStyleItalic">A Cidadela</span><a class="elsevierStyleCrossRef" href="#bib0100"><span class="elsevierStyleSup">1</span></a>&#44; onde o jovem&#44; prestes a se formar&#44; escuta o conselho do professor de patologia que recomenda seguir a sua especialidade&#44; visto que os cl&#237;nicos s&#227;o os que cuidam de doen&#231;as incur&#225;veis e os cirurgi&#245;es consertam sem saber exatamente o que fazem&#46; M&#233;dicos mesmo &#8211; lhe diz o professor &#8211;&#44; somente os patologistas&#46; De fato&#44; &#233; um belo conselho&#44; mas ningu&#233;m quer saber muita medicina quando h&#225; pouco a se fazer com esse saber&#46; N&#227;o h&#225; d&#250;vida que &#233; um saber imprescind&#237;vel&#44; que melhora nossa atua&#231;&#227;o&#44; mas a aplica&#231;&#227;o dele ficar&#225; para outra ocasi&#227;o&#44; ou para outros aplicarem no futuro&#46; No momento que nos ocupa&#44; o ouro ol&#237;mpico fugiu das minhas m&#227;os e n&#227;o quero saber porque perdi a competi&#231;&#227;o&#44; nem pensar na pr&#243;xima&#46; Agora&#44; somente me amarga o sentimento de fracasso&#46; E&#44; fosse pouco&#44; o &#244;nus de ter que confortar algu&#233;m &#8211; paciente&#44; fam&#237;lia &#8211; quando eu mesmo estou destro&#231;ado&#44; ruminando a minha incompet&#234;ncia&#46;</p><p id="par0025" class="elsevierStylePara elsevierViewall">Esta descri&#231;&#227;o&#44; um tanto quanto Felliniana&#44; &#233; de fato real&#46; E a culpa n&#227;o &#233; do jovem m&#233;dico que experimenta o fracasso quando comprova que a sua ci&#234;ncia cura menos do que ele esperava&#44; mas do processo de forma&#231;&#227;o que est&#225; equivocado&#46; O produto &#8211; o m&#233;dico competente &#8211; n&#227;o resultou como deveria ser&#46; E quando o produto &#233; defeituoso&#44; a prud&#234;ncia manda creditar ao processo o gravame do resultado&#46;</p><p id="par0030" class="elsevierStylePara elsevierViewall">Aqui a nosso giro hipocr&#225;tico&#8208;copernicano&#44; facilmente deduz&#237;vel de uma simples reflex&#227;o&#46; O que se pode esperar quando a ordem recomendada para a atua&#231;&#227;o do m&#233;dico &#233; curar&#44; aliviar e&#44; em &#250;ltimo caso&#44; confortar&#63; O l&#243;gico &#233; pensar que estou avan&#231;ando do mais importante para o menos importante&#44; para o detalhe&#46; Quando n&#227;o consigo curar&#44; tenho que aliviar&#46; E quando nem aliviar consigo&#44; resta&#8208;me confortar&#46; Proceder nessa sequ&#234;ncia fatalmente apresenta o al&#237;vio e o conforto como um pr&#234;mio de consola&#231;&#227;o &#40;para o m&#233;dico&#41; que se deparou com uma doen&#231;a incur&#225;vel&#44; dolorosa&#44; terminal&#46;</p><p id="par0035" class="elsevierStylePara elsevierViewall">Mas&#44; o que n&#227;o se contempla &#8211; da&#237; o engano terr&#237;vel e tr&#225;gico &#8211; &#233; a epidemiologia &#40;incid&#234;ncia&#44; preval&#234;ncia&#41; desses termos&#46; Enquanto confortar &#233; algo que deve ser feito sempre&#44; pela alt&#237;ssima preval&#234;ncia&#44; o curar apresenta uma preval&#234;ncia muito menor&#46; Seria l&#243;gico&#44; ent&#227;o&#44; que o processo da atua&#231;&#227;o m&#233;dica contemplasse essa propor&#231;&#227;o para produzir melhores m&#233;dicos&#46; M&#233;dicos que sempre sabem confortar &#8211; porque aprenderam que isso vem em primeiro lugar &#8211; e que&#44; segundo os casos e as mol&#233;stias com as que se deparam&#44; tamb&#233;m sabem curar quando &#233; poss&#237;vel&#46; Quer dizer&#58; a ordem dos fatores altera o produto&#46; A &#234;nfase&#44; o tempo que se dedica nos anos de forma&#231;&#227;o&#44; respeitando as propor&#231;&#245;es &#171;epidemiol&#243;gicas&#187;&#44; faz toda a diferen&#231;a&#46; Inclu&#237;das&#44; claro est&#225;&#44; a avali&#231;&#227;o dessas compet&#234;ncias&#46; Um m&#233;dico que n&#227;o sabe confortar&#44; nem aliviar&#44; n&#227;o poder&#225; ser creditado como tal&#44; n&#227;o deveria ter diploma de m&#233;dico nem poder atuar profissionalmente&#46; Mas o que a avalia&#231;&#227;o quer medir &#8211; sem consegui&#8208;lo &#8211; &#233; apenas o conhecimento que&#44; em determinadas e limitadas circunst&#226;ncias&#44; lhe permitiriam curar alguns pacientes&#46; E nem isso avalia corretamente&#44; porque da teoria&#44; que ele sabe e responde na prova&#44; at&#233; a pr&#225;tica h&#225; uma dist&#226;ncia enorme&#46;</p><p id="par0040" class="elsevierStylePara elsevierViewall">Uma obra recente<a class="elsevierStyleCrossRef" href="#bib0105"><span class="elsevierStyleSup">2</span></a>&#44; com alta repercuss&#227;o no mercado editorial&#44; explica de modo narrativo e ameno estas falhas de forma&#231;&#227;o do estudante de medicina e&#44; consequentemente&#44; dos m&#233;dicos que saem ao mercado&#46; O autor&#44; conceituado cirurgi&#227;o&#44; fala do desconcerto&#44; ou melhor&#44; do descaminho do estudante de medicina&#46; Ele entra na faculdade sabendo &#8211; ou suspeitando&#44; ao menos &#8211; o que &#233; cuidar e&#44; com o tempo&#44; esquece dos pacientes porque est&#225; muito ocupado com a medicina&#46; Um esquecimento que&#44; seja dito de passagem&#44; deve&#8208;se creditar &#224; academia&#44; respons&#225;vel pela sua forma&#231;&#227;o&#46; Novamente o pensamento de m&#233;dico e educador americano Paul Batalden&#58; &#171;todo sistema est&#225; perfeitamente desenhado para produzir os resultados que oferece&#187;&#46; N&#227;o podemos simplesmente reclamar do produto&#59; temos de revisar o processo de fabrica&#231;&#227;o que&#44; certamente&#44; &#233; defeituoso&#46;</p><p id="par0045" class="elsevierStylePara elsevierViewall">Gawande explica os motivos da distra&#231;&#227;o&#44; sem utiliz&#225;&#8208;los como desculpa&#58; &#171;O que nos preocupava era o conhecimento&#46; Embora soub&#233;ssemos como demonstrar compaix&#227;o&#44; n&#227;o pod&#237;amos ter certeza de que saber&#237;amos diagnosticar e tratar nossos futuros pacientes de maneira adequada&#46; Pag&#225;vamos a mensalidade da faculdade para aprender sobre os processos internos do corpo&#44; os complexos mecanismos de suas patologias e a ampla gama de descobertas e tecnologias acumuladas ao longo da hist&#243;ria para impedi&#8208;las&#46; N&#227;o imagin&#225;vamos que precisar&#237;amos pensar mais do que isso&#46; &#40;&#8230;&#41;&#46; Ser &#250;til aos outros&#44; mas ser tamb&#233;m tecnicamente competente e capaz de resolver problemas intrincados&#46; A compet&#234;ncia nos traz seguran&#231;a&#44; senso de identidade&#46; Dedico&#8208;me a uma profiss&#227;o cujo sucesso se baseia em sua capacidade de consertar&#46; Se seu problema pode ser consertado&#44; sabemos exatamente o que fazer&#46; Mas e se n&#227;o pode&#63; O fato de n&#227;o termos respostas adequada a essa pergunta &#233; perturbador e provoca insensibilidade&#44; desumanidade e grande sofrimento&#187;<a class="elsevierStyleCrossRef" href="#bib0105"><span class="elsevierStyleSup">2</span></a>&#46;</p></span><span id="sec0010" class="elsevierStyleSection elsevierViewall"><span class="elsevierStyleSectionTitle" id="sect0030">O alerta que chega do paciente&#58; os erros m&#233;dicos e a car&#234;ncia de humanismo</span><p id="par0050" class="elsevierStylePara elsevierViewall">N&#227;o &#233; de surpreender as queixas dos pacientes&#44; as reclama&#231;&#245;es a at&#233; os processos que caem sobre os m&#233;dicos&#46; Ningu&#233;m processa um m&#233;dico por n&#227;o ter sabido curar uma doen&#231;a incur&#225;vel ou fatal&#46; A queixa&#44; sempre&#44; est&#225; embasada na falta de cuidado&#44; quer dizer&#44; na car&#234;ncia total de compet&#234;ncia para providenciar al&#237;vio e conforto&#46; Mas&#44; como o nosso m&#233;dico somente aprendeu a curar e deixou os outros atributos &#40;que considera pr&#234;mios de consola&#231;&#227;o&#41; para outro momento&#59; como n&#227;o se exercitou neles em todos e cada um dos pacientes que depositavam nele a sua confian&#231;a&#44; o que lhe resta &#233; apresentar&#8208;se como o mec&#226;nico incompetente que n&#227;o soube consertar a m&#225;quina&#46; E a m&#225;quina sempre quebra&#44; tem data de validade impressa&#46; A guerra est&#225; perdida a priori&#44; e faltou categoria profissional &#8211; humana e tamb&#233;m t&#233;cnica &#8211; para ganhar batalhas&#44; e acolher o paciente e a fam&#237;lia nesta caminhada pela vida&#46;</p><p id="par0055" class="elsevierStylePara elsevierViewall">O percurso que a medicina tem seguido nestes &#250;ltimos anos&#44; engordando na t&#233;cnica e desnutrindo&#8208;se em humanismo&#44; acarreta novos problemas que&#44; al&#233;m de prejudicar o paciente &#8212; que sempre leva a pior &#8212;&#44; tamb&#233;m causam transtornos ao m&#233;dico&#46; Todo o tema do &#171;erro m&#233;dico&#187; encontra aqui a sua explica&#231;&#227;o mais profunda&#46;</p><p id="par0060" class="elsevierStylePara elsevierViewall">A medicina n&#227;o &#233; uma ci&#234;ncia exata&#59; necessariamente tem falhas&#44; que s&#243; podem ser reparadas com amor e dedica&#231;&#227;o&#46; Quando n&#227;o se entende isto&#44; quando um m&#233;dico apresenta a medicina&#44; na sua fantasia tecnol&#243;gica&#44; como uma ci&#234;ncia exata&#44; dever&#225; pagar tamb&#233;m as consequ&#234;ncias do insucesso&#46; No caso de um engenheiro&#44; uma ponte que ele construa n&#227;o cair&#225; &#40;salvo ocorram terremotos ou imprevistos&#41;&#44; se os seus c&#225;lculos forem exatos&#44; e tal exatid&#227;o n&#227;o &#233; dif&#237;cil de atingir&#46; Se o m&#233;dico quiser apresentar&#8208;se como um t&#233;cnico&#44; como um mec&#226;nico de pessoas&#44; dever&#225; aceitar a puni&#231;&#227;o se n&#227;o fizer os c&#225;lculos certos para &#171;consertar o estrago&#187;&#46;</p><p id="par0065" class="elsevierStylePara elsevierViewall">Uma afirma&#231;&#227;o que poder&#225; parecer chocante&#44; mas que &#233; tamb&#233;m fruto da nossa experi&#234;ncia&#46; O erro m&#233;dico &#233; sobretudo uma insufici&#234;ncia no campo human&#237;stico&#46; O que protege o m&#233;dico &#233; a confian&#231;a do paciente e esta se perde quando o profissional aparece como um t&#233;cnico brilhante&#44; mas incapaz de aproximar&#8208;se do paciente e sintonizar com sua afetividade&#46; Os erros da fam&#237;lia&#44; dos amigos&#44; daqueles que apreciamos&#44; s&#227;o sempre desculp&#225;veis quando sabemos ler&#44; nos olhos de quem falhou&#44; o desejo de acertar&#44; a boa vontade&#46; J&#225; os erros de um prestador de servi&#231;os impessoal &#8211; que naturalmente cobra pelo seu trabalho &#8211; n&#227;o s&#227;o facilmente desculp&#225;veis&#44; exigem indeniza&#231;&#227;o&#46; &#201; tudo uma quest&#227;o de posicionamento e o paciente&#44; inconscientemente&#44; sabe disto&#46; Quando nota que o m&#233;dico carece da dimens&#227;o humana e se apresenta como um experto preocupado exclusivamente em consertar as avarias&#44; pedir&#225; satisfa&#231;&#245;es e cobrar&#225; uma repara&#231;&#227;o se o profissional n&#227;o conseguir cumprir suas promessas&#46;</p><p id="par0070" class="elsevierStylePara elsevierViewall">Ao contr&#225;rio&#44; quando o paciente percebe que existe a dimens&#227;o humana&#44; o afeto e carinho&#44; n&#227;o estabelece auditorias do atuar t&#233;cnico do m&#233;dico&#44; atua&#231;&#227;o que&#44; de resto&#44; dificilmente saberia avaliar&#46; Nunca se ouviu o seguinte coment&#225;rio&#58; &#171;O meu m&#233;dico &#233; muito atencioso&#44; est&#225; sempre &#224; disposi&#231;&#227;o&#44; mesmo de madrugada&#46; Mas&#44; coitado&#44; n&#227;o sabe nada de medicina&#44; &#233; incompetente&#187;&#46; Nunca se ouviu&#44; porque n&#227;o existe&#59; porque a vertente humana do m&#233;dico &#233; a melhor credencial e a &#250;nica que conquista o paciente&#46;</p><p id="par0075" class="elsevierStylePara elsevierViewall">Por outro lado&#44; quando nos aprofundamos nas queixas do paciente &#8211; queixas por imper&#237;cia&#44; por falha t&#233;cnica &#8211;&#44; sempre encontramos insufici&#234;ncia no terreno afetivo&#46; Descobrimos&#44; ent&#227;o&#44; que todo aquele &#171;erro m&#233;dico&#187; come&#231;ou porque &#171;o m&#233;dico nem me examinou&#187;&#44; ou porque &#171;o m&#233;dico n&#227;o explicou nada do que poderia acontecer&#187; e &#171;nem prestou aten&#231;&#227;o no que eu estava falando&#187;&#46; O golpe que se acusa &#233; sempre na alma&#44; n&#227;o na defici&#234;ncia t&#233;cnica&#58; essa vem depois&#44; para dar corpo ao processo&#46; Vale evocar um exemplo citado por Mendel no seu livro cl&#225;ssico&#44; <span class="elsevierStyleItalic">Proper Doctoring</span>&#58; &#171;O paciente pode deixar de tomar um medicamento porque repara que lhe faz mal&#46; &#201; preciso levar em considera&#231;&#227;o estas intui&#231;&#245;es dos enfermos&#46; O m&#233;dico que n&#227;o &#233; humilde e n&#227;o d&#225; aten&#231;&#227;o aos pacientes &#233; o melhor candidato para um processo judicial&#187;<a class="elsevierStyleCrossRef" href="#bib0110"><span class="elsevierStyleSup">3</span></a>&#46; S&#227;o varia&#231;&#245;es sobre o mesmo tema&#58; ouvir o paciente&#44; explicar as coisas&#44; dimens&#227;o humana&#46;</p><p id="par0080" class="elsevierStylePara elsevierViewall">Em acertada s&#237;ntese&#44; Mara&#241;&#243;n esclarece mais a tem&#225;tica&#58; &#171;O pecado dos m&#233;dicos&#44; nos &#250;ltimos anos&#44; foi abdicar de tudo quanto nossa miss&#227;o tinha de entranh&#225;vel&#44; de generosa &#8208; de sacerdotal&#44; para usar um lugar&#8208;comum &#8211;&#44; e tentar convert&#234;&#8208;la numa profiss&#227;o cient&#237;fica&#44; quer dizer&#44; exata como a do engenheiro ou a do arquiteto &#91;&#8230;&#93;&#46; No fim&#44; tudo se voltar&#225; contra o pr&#243;prio m&#233;dico&#44; pois&#44; mesmo querendo&#44; a sua ci&#234;ncia ser&#225; embrion&#225;ria&#44; cheia de lacunas e de aspectos pouco exatos&#46; Estas falhas somente podem ser preenchidas pelo amor&#46; Seu prest&#237;gio exclusivamente cient&#237;fico estar&#225;&#44; inevitavelmente&#44; sujeito a quebras graves e cont&#237;nuas&#46; E &#233; por isso que o m&#233;dico se ver&#225; privado do respeito cordial dos seus pacientes e da pr&#243;pria sociedade&#44; que n&#227;o aceitar&#225; seu erro com generosidade mas espreitar&#225; suas falhas&#44; perseguindo&#8208;o onde quer que esteja&#187;<a class="elsevierStyleCrossRef" href="#bib0115"><span class="elsevierStyleSup">4</span></a>&#46;</p><p id="par0085" class="elsevierStylePara elsevierViewall">Tema candente pela sua atualidade&#44; e um tema de dif&#237;cil solu&#231;&#227;o se o problema n&#227;o for dimensionado&#44; convenientemente&#44; em equa&#231;&#245;es human&#237;sticas&#46; Afinal&#44; qual &#233; o m&#233;dico a quem n&#227;o lhe morrem pacientes&#63; A morte &#233; a &#250;nica coisa certa do acontecer humano e o m&#233;dico&#44; querendo ou n&#227;o&#44; est&#225; no caminho dessa sa&#237;da obrigat&#243;ria&#46; Toda a sua per&#237;cia estar&#225; em saber &#171;diluir a t&#233;cnica que possui&#187; em ve&#237;culo humanit&#225;rio&#44; para que todos &#8211; paciente&#44; fam&#237;lia e ele mesmo &#8211; possam digerir&#44; com sentido e transcend&#234;ncia&#44; a natural conting&#234;ncia da vida&#44; para a qual a ci&#234;ncia mais apurada ser&#225; sempre insuficiente&#46;</p></span><span id="sec0015" class="elsevierStyleSection elsevierViewall"><span class="elsevierStyleSectionTitle" id="sect0035">O m&#233;dico&#44; o sofrimento e a morte&#46; Um gerenciamento que requer compet&#234;ncia</span><p id="par0090" class="elsevierStylePara elsevierViewall">O sofrimento humano e a morte s&#227;o realidades no quotidiano do m&#233;dico&#46; Paradoxalmente&#44; observa&#8208;se um despreparo crescente do profissional em lidar com estas situa&#231;&#245;es&#46; Por que este descompasso&#63;</p><p id="par0095" class="elsevierStylePara elsevierViewall">Uma primeira resposta a esta quest&#227;o vem representada por uma postura que poder&#237;amos denominar o <span class="elsevierStyleItalic">m&#233;dico t&#233;cnico</span>&#44; entendendo&#8208;se por tal aquele que perde a perspectiva human&#237;stica que a sua profiss&#227;o traz impl&#237;cita &#8211; verdadeira necessidade e n&#227;o luxo &#8211; e reduz seu atuar profissional a simples t&#233;cnica&#46; &#201; evidente que&#44; em situa&#231;&#245;es onde a t&#233;cnica n&#227;o tem mais nada a fazer&#44; esse m&#233;dico se ver&#225; despreparado para enfrent&#225;&#8208;las&#44; sentindo&#8208;se impotente&#44; como no caso da morte&#46; Essa atitude de despreparo provoca&#44; se n&#227;o se corrige&#44; uma grave distor&#231;&#227;o da profiss&#227;o m&#233;dica&#46; Quem atua apenas como t&#233;cnico&#44; quando a t&#233;cnica se demonstra insuficiente&#44; inclina&#8208;se a procurar novos pacientes&#44; deixando de lado aqueles com quem a t&#233;cnica n&#227;o funciona&#46; Pode at&#233; parecer que existe maior preocupa&#231;&#227;o com o desempenho profissional do que com o bem&#8208;estar do paciente&#44; motivo e raz&#227;o da profiss&#227;o m&#233;dica&#46;</p><p id="par0100" class="elsevierStylePara elsevierViewall">&#201; necess&#225;ria uma prepara&#231;&#227;o que vai al&#233;m da t&#233;cnica para saber enfrentar profissionalmente a morte&#44; como m&#233;dicos&#44; na acep&#231;&#227;o plena da palavra&#46; &#201; preciso atitudes&#44; valores&#44; saber lidar com o sentido da vida&#44; compreens&#227;o do momento vital&#46; Tudo isso que se poderia condensar na palavra filosofia de vida&#44; n&#227;o tivesse o sentido depreciativo&#44; de impot&#234;ncia t&#233;cnica que&#44; por ignor&#226;ncia&#44; costuma&#8208;se lhe atribuir&#46; Recorrer &#224; filosofia&#44; quando a t&#233;cnica nada tem a fazer&#44; &#233; prova da deficiente forma&#231;&#227;o profissional que hoje respiramos&#44; como se a filosofia fosse um recurso &#171;<span class="elsevierStyleItalic">in extremis</span>&#187; e n&#227;o o que realmente &#233;&#58; postura diante da vida&#44; que envolve valores&#44; cren&#231;as&#44; significados&#44; assim como t&#233;cnicas&#44; procedimentos e recursos modernos para o bom desempenho da miss&#227;o que a vida conferiu a cada um&#46;</p><p id="par0105" class="elsevierStylePara elsevierViewall">N&#227;o &#233; sup&#233;rfluo advertir que&#44; curiosamente&#44; aqueles que tentam tecnicamente todos os recursos para prolongar a vida&#44; &#171;mesmo contra o senso comum&#187;&#44; s&#227;o os primeiros a desistir do paciente quando este entra em fase terminal e &#171;passam o caso a algum outro colega&#187;&#46; Cada vez &#233; mais raro ver &#171;superespecialistas&#187; junto do paciente moribundo&#44; quando n&#227;o h&#225; mais recursos terap&#234;uticos a empregar&#46; Pode se justificar esta atitude por sentir certo inc&#244;modo de &#171;n&#227;o estar fazendo nada pelo paciente&#187;&#44; o que n&#227;o &#233; verdade&#46; Na realidade&#44; com a sua presen&#231;a o m&#233;dico est&#225; fazendo sim&#44; e muito&#46; Ocorre que simplesmente faz&#8208;se algo que&#44; n&#227;o sendo quantific&#225;vel&#44; parece n&#227;o ser &#250;til&#46; Isto &#233; l&#243;gico&#44; j&#225; que a utilidade se avaliou&#44; erradamente&#44; com par&#226;metros puramente t&#233;cnicos&#46; O fato de n&#227;o poder se medir esta atitude em miligramas e doses terap&#234;uticas n&#227;o fala contra a import&#226;ncia desta atitude&#46; O amor de uma m&#227;e junto do filho doente n&#227;o pode ser representado em dosagens terap&#234;uticas&#44; mas &#233; ineg&#225;vel a sua efic&#225;cia&#46; O m&#233;dico deve estar l&#225; com amor&#44; mas como m&#233;dico &#8211; n&#227;o como a m&#227;e &#8208; e aqui est&#225; a chave do seu profissionalismo&#46;</p><p id="par0110" class="elsevierStylePara elsevierViewall">Urge saber descobrir a miss&#227;o do m&#233;dico quando a t&#233;cnica &#233; insuficiente&#59; uma miss&#227;o vital que transcende a t&#233;cnica e que no momento da morte do paciente assume propor&#231;&#245;es gigantescas&#46; Deve possuir o m&#233;dico um &#171;saud&#225;vel inconformismo&#187; com a t&#233;cnica&#44; atitude que o empurra a procurar&#44; na sua forma&#231;&#227;o e atua&#231;&#227;o profissional&#44; outras dimens&#245;es que lhe ser&#227;o imprescind&#237;veis para enfrentar situa&#231;&#245;es que est&#227;o al&#233;m das fronteiras t&#233;cnicas&#46; &#201; deste modo como se constr&#243;i a estrutura do profissional&#44; t&#233;cnico e humanista ao mesmo tempo&#44; capaz de assumir esses desafios&#46;</p><p id="par0115" class="elsevierStylePara elsevierViewall">O gerenciamento da morte &#233; uma fun&#231;&#227;o t&#233;cnica do m&#233;dico para a qual deve se preparar e a ordem dos fatores aludidos anteriormente n&#227;o ajuda&#46; Trata&#8208;se de uma t&#233;cnica que &#233; curiosa&#44; por n&#227;o dizer peculiar&#44; j&#225; que n&#227;o dever&#225; modificar o resultado final da sua interven&#231;&#227;o&#46; Modifica sim&#44; e muito&#44; o processo de como a situa&#231;&#227;o evolui&#46; Dito com outras palavras&#58; morrer&#44; todos morrem algum dia&#59; a diferen&#231;a est&#225; no modo como se morre&#46; A&#237; entra a fun&#231;&#227;o t&#233;cnica&#44; gerencial&#44; do m&#233;dico&#46;</p><p id="par0120" class="elsevierStylePara elsevierViewall">Requer esta fun&#231;&#227;o realismo e compet&#234;ncia&#46; Compet&#234;ncia para eliminar a dor&#44; com os modernos recursos da medicina paliativa&#46; Os estudiosos do tema costumam apontar a medicina paliativa como o melhor ant&#237;doto contra a solu&#231;&#227;o f&#225;cil&#44; c&#244;moda e anti&#233;tica da eutan&#225;sia&#46; Dizem eles que&#44; quando um paciente que sofre afirma &#171;Doutor&#44; n&#227;o quero viver&#187;&#44; o que no fundo est&#225; dizendo &#233; &#171;Doutor&#44; n&#227;o quero viver deste modo&#187;&#46; Em outras palavras&#44; eliminar a dor faz parte da fun&#231;&#227;o t&#233;cnica do m&#233;dico&#46;</p><p id="par0125" class="elsevierStylePara elsevierViewall">O gerenciamento da morte sup&#245;e perguntar&#8208;se a todo o momento no que &#233; melhor para o paciente&#44; antes de tomar as medidas &#171;de praxe&#187;&#44; como interna&#231;&#245;es desnecess&#225;rias&#44; transfer&#234;ncias para a Unidade de Terapia Intensiva &#40;UTI&#41;&#44; terap&#234;uticas obstinadas e naturalmente ineficazes quando do processo de morrer se trata&#46; Perguntar&#8208;se&#44; antes de tom&#225;&#8208;la&#44; o que espero desta medida&#44; desta prescri&#231;&#227;o&#46; E&#44; dialogando com a fam&#237;lia&#44; tomar a decis&#227;o pessoalmente&#44; sem dividir responsabilidades&#44; assumindo a conduta com car&#225;ter profissional&#46; O gerenciamento da morte implica diretamente no cuidado simult&#226;neo do paciente e da fam&#237;lia&#46; A fam&#237;lia coloca quest&#245;es que t&#234;m &#171;pouco car&#225;ter t&#233;cnico&#187;&#44; mas de vital import&#226;ncia&#46; Quer saber&#44; por exemplo&#44; se o paciente est&#225; sofrendo e se pode ser feita alguma coisa a mais&#46; E sempre requer explica&#231;&#245;es do que est&#225; acontecendo&#46;</p><p id="par0130" class="elsevierStylePara elsevierViewall">O m&#233;dico n&#227;o pode cansar&#8208;se de repetir as explica&#231;&#245;es&#44; sabendo que &#233; necess&#225;rio tempo para que a fam&#237;lia possa digerir a situa&#231;&#227;o&#46; As palavras do m&#233;dico s&#227;o um recurso que facilita este processo de adapta&#231;&#227;o e o m&#233;dico n&#227;o pode poup&#225;&#8208;las&#46; N&#227;o se trata de explicar um problema de fisiopatologia&#44; mas de fazer entender de modo vital&#44; com toda a carga de sentimentos normais na situa&#231;&#227;o&#44; o que est&#225; acontecendo com o familiar que est&#225; morrendo&#46; Isto requer tempo e paci&#234;ncia&#46;</p><p id="par0135" class="elsevierStylePara elsevierViewall">Deixar que a fam&#237;lia participe no processo de morrer&#44; junto do paciente&#44; &#233; atitude que elimina muitas d&#250;vidas e &#244;nus de consci&#234;ncia a posteriori&#46; Quando a fam&#237;lia est&#225; participando&#44; vendo&#44; tocando o paciente&#44; n&#227;o se pergunta depois que faleceu se poderia ter feito alguma coisa mais por ele&#44; pois vivenciaram toda a evolu&#231;&#227;o&#46; Valha aqui uma reflex&#227;o sobre o distanciamento desnecess&#225;rio da fam&#237;lia em UTI&#44; visitas limitadas e todo este universo que mereceria uma abordagem particular em outro momento&#46;</p><p id="par0140" class="elsevierStylePara elsevierViewall">O paciente sabe mais do que o m&#233;dico imagina que sabe&#46; &#201; um sentido a mais&#44; de realismo vital&#44; que a condi&#231;&#227;o de moribundo lhe confere&#46; Por isso&#44; espera do m&#233;dico realismo&#44; conforto&#44; acompanhamento profissional&#46; Tanto prejudica o paciente o m&#233;dico que com sua atitude &#171;desiste&#187; por ser um &#171;caso terminal&#187;&#44; como aquele que pretende iludir o paciente como se nada de grave estivesse acontecendo&#46; Requer&#8208;se por parte do m&#233;dico uma atitude ponderada&#44; realista&#44; imbu&#237;da da virtude da prud&#234;ncia em verdadeiro balanceamento paradoxal&#46; E levando em considera&#231;&#227;o que cada paciente &#233; diferente e gosta de modos diferentes na abordagem de um processo que&#44; afinal&#44; &#233; o que ele est&#225; sofrendo&#46; Por isso&#44; vale a pena lembrar as palavras de um m&#233;dico humanista&#44; estudioso das quest&#245;es &#233;ticas&#58; &#171;Uma morte realmente digna n&#227;o consiste somente na aus&#234;ncia de tribula&#231;&#245;es externas&#46; A dignidade perante a morte n&#227;o vem conferida por algo exterior&#44; mas surge da grandeza de &#226;nimo com que a pessoa enfrenta essa situa&#231;&#227;o &#250;nica&#46; Por isso&#44; morrer com dignidade significa n&#227;o ser paciente apenas&#44; mas agente&#46; Estar ativo&#44; participar do processo&#187;<a class="elsevierStyleCrossRef" href="#bib0120"><span class="elsevierStyleSup">5</span></a>&#46;</p></span><span id="sec0020" class="elsevierStyleSection elsevierViewall"><span class="elsevierStyleSectionTitle" id="sect0040">Morte e Vida Severina&#58; o homem &#233; a melhor medida</span><p id="par0145" class="elsevierStylePara elsevierViewall">Ao mesmo tempo&#44; existe uma insensibiliza&#231;&#227;o do m&#233;dico perante a morte&#46; A morte &#233; um fen&#244;meno que parece atrapalhar o exerc&#237;cio e o &#234;xito profissional&#46; Embora paradoxal&#44; n&#227;o &#233; incomum o fato de o m&#233;dico n&#227;o contar com a morte como possibilidade real&#44; que deve administrar&#46; A morte n&#227;o &#233; apenas uma circunst&#226;ncia infeliz que surge e dificulta sua &#171;brilhante atua&#231;&#227;o&#187;&#46; Observamos hoje m&#233;dicos que praticam alta tecnologia&#44; mas que&#44; expl&#237;cita ou implicitamente&#44; parecem abandonar os pacientes incur&#225;veis&#44; perante os quais os conhecimentos t&#233;cnicos n&#227;o funcionam&#46; S&#227;o m&#233;dicos de &#171;carros 0 km&#187;&#44; corredores de prova a quem&#44; no entanto&#44; falta f&#244;lego para administrar situa&#231;&#245;es prolongadas&#44; inc&#244;modas&#44; insol&#250;veis do ponto de vista estritamente t&#233;cnico&#46;</p><p id="par0150" class="elsevierStylePara elsevierViewall">Nada tem de estranho que haja uma insensibiliza&#231;&#227;o perante a morte&#44; por parte dos m&#233;dicos&#44; quando essa &#233; a postura da sociedade&#58; afinal&#44; os m&#233;dicos s&#227;o elementos dessa sociedade&#46; Na verdade&#44; a falta de sensibilidade que aparece no momento da morte n&#227;o &#233; mais do que o reflexo de uma falta de sensibilidade habitual para as situa&#231;&#245;es corriqueiras da vida&#46; Quem habitualmente quer consertar tudo &#8211; a pessoa doente &#8211; com a t&#233;cnica&#44; frustra&#8208;se quando repara que a t&#233;cnica nada mais tem a fazer&#46; Quem habitualmente despreza o ser humano&#44; na sua atitude profissional&#44; n&#227;o ter&#225; como encontrar esse mesmo ser humano que sofre no moribundo&#46; Como se poder querer possuir recursos no caso limite &#8211; quando nada mais h&#225; para fazer &#8211; se habitualmente se desprezam esses recursos no dia&#8208;a&#8208;dia&#63; J&#225; comentava algu&#233;m que &#233;tica e humanismo para os m&#233;dicos n&#227;o s&#227;o temas para discutir &#224; beira do leito da UTI&#44; com o paciente agonizante&#46; S&#227;o quest&#245;es para ter presente na hora de prescrever&#44; por exemplo&#44; aspirina&#46; Quem n&#227;o prescreve aspirina com &#233;tica&#44; carecer&#225; dela quando tenha de tomar uma decis&#227;o que sup&#245;e aceitar&#44; serenamente&#44; o final de uma vida&#46; Erroneamente se considera a &#233;tica como assunto para situa&#231;&#245;es&#8208;limite&#44; quando&#44; na verdade&#44; toda a atividade m&#233;dica est&#225; intrinsecamente perpassada pela veia &#233;tica&#46;</p><p id="par0155" class="elsevierStylePara elsevierViewall">Vivemos tempos em que a morte &#233; elemento quase ignorado&#46; Uma curiosa postura que faz quest&#227;o de esconder o que&#44; na pr&#225;tica&#44; &#233; a &#250;nica coisa infal&#237;vel na vida de um ser humano&#58; sua limita&#231;&#227;o e sua morte certa&#46; Algo parecido ao avestruz&#44; que esconde a cabe&#231;a para n&#227;o ver o le&#227;o que est&#225; prestes a devor&#225;&#8208;lo&#46; A morte&#44; como fato concreto&#44; mesmo sendo um evento di&#225;rio&#44; torna&#8208;se &#250;nico quando nos atinge&#46; Com acerto&#44; comenta um escritor que &#171;o fen&#244;meno mais trivial do universo&#44; personalizado&#44; toma propor&#231;&#245;es de maravilha&#46; E todos &#8211; uma gente cansada de ir a missas de s&#233;timo dia &#8211; todos se admiravam do cad&#225;ver do Ferraz&#44; como se estivessem a contemplar uma aurora boreal&#187;<a class="elsevierStyleCrossRef" href="#bib0125"><span class="elsevierStyleSup">6</span></a>&#46;</p><p id="par0160" class="elsevierStylePara elsevierViewall">Na realidade&#44; o despreparo para a morte &#233; um caso particular da falta de prepara&#231;&#227;o para a vida&#46; Uma vida &#8211; a humana &#8211; sulcada de alegrias e realiza&#231;&#245;es&#44; mas tamb&#233;m de sofrimentos e dor&#44; elementos presentes que tonificam o contraste vital&#46; Numa sociedade que foge sistematicamente da dor&#44; que cultua o prazer como meta suprema&#44; que esconde os doentes e os aleijados &#8211; se n&#227;o fisicamente&#44; apagando&#8208;os quanto antes da mem&#243;ria &#8211;&#44; n&#227;o &#233; de se estranhar que o enfrentamento com a morte se d&#234; em inferioridade de condi&#231;&#245;es&#46; Sem contar com o tabu que a morte parece desfrutar&#46; N&#227;o se fala dela&#44; evita&#8208;se o tema com per&#237;frases que s&#227;o am&#225;lgama de medo&#44; esoterismo e superficialidade&#46; Esconde&#8208;se o fato das crian&#231;as&#44; que nada sabem da morte&#59; e se lhes conta que aquele familiar &#171;viajou para muito longe&#187;&#46; Tudo de modo suave&#44; soft&#44; como se n&#227;o fosse esta uma realidade que nos atinge a todos&#46;</p><p id="par0165" class="elsevierStylePara elsevierViewall">A sociedade esconde a morte&#46; Uma conhecida estudiosa do tema&#44; que possui ampla experi&#234;ncia em medicina paliativa na sua cl&#237;nica de Paris&#44; afirma contundentemente&#58; &#171;Em vez de enfrentar a realidade da proximidade da morte&#44; nos empenhamos em aparentar que nunca chegar&#225;&#46; Mentimos aos outros&#44; mentimos para n&#243;s mesmos&#44; e em vez de falar do essencial&#44; ter palavras de amor&#44; gratid&#227;o e perd&#227;o&#59; em vez de nos apoiar mutuamente para cruzar juntos esse momento transcendental que sup&#245;e a morte de um ser querido&#44; colocando todo o humor e o amor de que somos capazes&#44; envolvemos com sil&#234;ncio e solid&#227;o este momento &#250;nica e essencial da vida&#187;<a class="elsevierStyleCrossRef" href="#bib0130"><span class="elsevierStyleSup">7</span></a>&#46;</p><p id="par0170" class="elsevierStylePara elsevierViewall">Por isso&#44; o que melhor prepara para a morte &#233; uma postura realista&#44; profunda&#44; &#171;transcendente&#187;&#44; para usar a linguagem filos&#243;fica&#44; da pr&#243;pria vida&#46; Quer dizer&#58; &#233; necess&#225;rio balizar a vida em termos objetivos&#44; contando com a limita&#231;&#227;o do tempo e da pr&#243;pria exist&#234;ncia&#46; Da&#237; que para enfrentar a morte com coragem&#44; sem medo&#44; enfim&#44; para saber morrer com dignidade&#44; seja preciso aprender a viver pautado em valores perenes&#44; que estruturem uma hierarquia s&#243;lida&#46; Saber morrer &#233;&#44; antes de tudo&#44; saber viver&#44; pois a morte &#233; um passo a mais &#8211; o &#250;ltimo &#8211; no caminho da vida&#46;</p><p id="par0175" class="elsevierStylePara elsevierViewall">Estas considera&#231;&#245;es s&#227;o de capital import&#226;ncia&#44; seja qual for a profiss&#227;o que se desempenha&#46; No caso do m&#233;dico&#44; cuja mat&#233;ria&#8208;prima de atua&#231;&#227;o &#233; o ser humano&#44; revestem&#8208;se de interesse particular&#58; s&#227;o condi&#231;&#227;o necess&#225;ria&#44; imprescind&#237;vel&#44; de compet&#234;ncia&#46; N&#227;o &#233; poss&#237;vel ser m&#233;dico &#224; margem desta dimens&#227;o antropol&#243;gica&#46; O m&#233;dico deveria lembrar&#8208;se disso e dedicar tempo a pensar nessas quest&#245;es&#46; Mas parece que nem para pensar h&#225; tempo nos dias de hoje&#46; N&#227;o ser&#225; o mundo globalizado e intercomunicado quem nos oferecer&#225; a oportunidade da reflex&#227;o necess&#225;ria&#44; da pondera&#231;&#227;o que precisamos&#46; Vivemos um paradoxo de comunica&#231;&#227;o &#171;<span class="elsevierStyleItalic">on line</span>&#187;&#44; com uma falta cada vez maior de conte&#250;do&#46; Fala&#8208;se muito e a toda a hora de coisas cada vez menos importantes&#46; &#201; curioso &#8211; por n&#227;o dizer assustador &#8211; que haja pessoas que consigam &#171;conversar&#187; na Internet durante horas a fio e sejam incapazes de manter um di&#225;logo substancial por 10 minutos&#44; ao vivo&#44; sentados na mesa de um bar&#44; tomando um caf&#233;&#46; A solu&#231;&#227;o&#44; pois&#44; n&#227;o deve vir de fora&#44; do simples progresso&#46; Este &#233; um problema que cada um dever&#225; resolver por si s&#243;&#44; em autodidatismo e com decis&#245;es individuais&#46; Mas &#233; uma condi&#231;&#227;o de sobreviv&#234;ncia&#44; para o m&#233;dico&#44; para a medicina e para a pr&#243;pria vida&#46;</p><p id="par0180" class="elsevierStylePara elsevierViewall">Ampliar os horizontes &#8211; necessariamente quotidianos e n&#227;o apenas tanatol&#243;gicos &#8211; &#233; pensar na rela&#231;&#227;o m&#233;dico&#8208;paciente&#8208;fam&#237;lia&#44; onde a atitude do m&#233;dico deve conquistar&#44; uma vez e outra&#44; a confian&#231;a&#44; condi&#231;&#227;o <span class="elsevierStyleItalic">sine qua non</span> para um bom relacionamento&#44; subs&#237;dio da terap&#234;utica eficaz&#46; A confian&#231;a n&#227;o se imp&#245;e&#59; apenas &#8211; e n&#227;o &#233; pouco &#8211; inspira&#8208;se e o paciente sabe em quem pode confiar&#46; Basta ouvir os coment&#225;rios dos pacientes nos &#171;bastidores&#187; da consulta m&#233;dica&#46; Frases como&#58; &#171;Esse m&#233;dico sabe muito&#44; mas este outro &#233; melhor&#187;&#44; ou &#171;N&#227;o fui com a cara dele e n&#227;o voltei&#187;&#44; ou ainda &#171;Agora os m&#233;dicos n&#227;o te examinam&#46; Somente pedem exames&#46; Nem olham na tua cara&#59; somente digitam no computador&#187;&#44; deveriam nos fazer pensar que o relacionamento m&#233;dico&#8208;paciente n&#227;o est&#225; com a melhor das cota&#231;&#245;es&#46; Algo neste estilo queria significar Sir William Osler&#44; paradigma do m&#233;dico humanista&#44; quando afirmava&#58; &#171;Mais importante que aquilo que o m&#233;dico faz &#233; o que o paciente pensa que o m&#233;dico faz&#187;&#46;</p><p id="par0185" class="elsevierStylePara elsevierViewall">For&#231;oso reconhecer que o estudo da morte&#44; que para os m&#233;dicos deveria ser do seu quotidiano&#44; encerra tamb&#233;m riquezas enormes para a vida do dia&#8208;a&#8208;dia&#46; Novamente&#44; Marie de Hennezel traz novas luzes para nossa considera&#231;&#227;o&#58; &#171;A morte que nos tocar&#225; viver e que agora leva amigos e familiares &#233; a que nos impulsiona a n&#227;o ficar na superf&#237;cie das coisas e dos seres humanos&#44; o que nos empurra a penetrar na sua intimidade&#187;<a class="elsevierStyleCrossRef" href="#bib0130"><span class="elsevierStyleSup">7</span></a>&#46; Refletir sobre a morte nos confere densidade na exist&#234;ncia para enfrentar a vida na sua verdadeira dimens&#227;o&#44; com peso espec&#237;fico&#44; sem conformar&#8208;se com superficialidades que minimizam a pessoa e&#44; no caso do m&#233;dico&#44; o tornam inapto para sua fun&#231;&#227;o&#46; A viv&#234;ncia da morte &#233; uma verdadeira orienta&#231;&#227;o para a vida&#58; &#171;O fato de que a morte nos angustie tanto talvez se deva a que nos situa perante as &#250;ltimas perguntas&#44; as aut&#234;nticas&#44; essas que tantas vezes adiamos para melhor ocasi&#227;o&#44; para quando sejamos velhos&#44; ou s&#225;bios&#44; para quando tenhamos tempo de nos defrontar com as quest&#245;es essenciais da vida&#187;<a class="elsevierStyleCrossRef" href="#bib0130"><span class="elsevierStyleSup">7</span></a>&#46;</p><p id="par0190" class="elsevierStylePara elsevierViewall">Saber cuidar da morte &#233; o resultado de quem sabe cuidar da vida&#46; Ser m&#233;dico&#44; humanista e t&#233;cnico&#44; com ci&#234;ncia e arte&#44; perante a morte implica ser m&#233;dico todos os dias da vida&#44; nas atitudes quotidianas&#44; em permanente aprendizado e constante aten&#231;&#227;o para cuidar do paciente que se confia a n&#243;s&#46; Bem exprime nosso poeta este sentimento que deveria inundar a vida e atitudes dos m&#233;dicos e profissionais de sa&#250;de&#58; &#171;Podeis aprender que o homem&#47;&#233; sempre a melhor medida&#47;Mais&#44; que a medida do homem&#47;n&#227;o &#233; a morte&#44; mas a vida&#187;<a class="elsevierStyleCrossRef" href="#bib0135"><span class="elsevierStyleSup">8</span></a>&#46;</p></span><span id="sec0025" class="elsevierStyleSection elsevierViewall"><span class="elsevierStyleSectionTitle" id="sect0045">Por uma medicina plena&#58; ci&#234;ncia e arte&#44; impregnados de postura &#233;tica</span><p id="par0195" class="elsevierStylePara elsevierViewall">A profiss&#227;o m&#233;dica sup&#245;e dedica&#231;&#227;o peculiar ao ser humano&#44; procurando a sa&#250;de e o bem&#8208;estar&#46; Deve&#8208;se integrar aqui o progresso t&#233;cnico&#44; e todas as outras situa&#231;&#245;es que&#44; fugindo do &#226;mbito t&#233;cnico&#44; requerem estrutura human&#237;stica &#8211; &#233;tica e filos&#243;fica &#8211; para serem abordadas profissionalmente&#58; a dor&#44; o sofrimento&#44; a vulnerabilidade humana&#44; a dignidade que o ser humano possui e a pr&#243;pria morte&#46; A insensibiliza&#231;&#227;o para a morte &#233; reflexo de uma insensibiliza&#231;&#227;o para a vida&#46; Uma atitude irrefletida perante os valores humanos e transcendentes do ser humano&#44; que teimosamente se vai alimentando com elementos t&#233;cnicos&#44; deixando de lado os verdadeiros nutrientes&#58; um matar a fome sem alimentar&#44; uma genu&#237;na subnutri&#231;&#227;o human&#237;stica&#46;</p><p id="par0200" class="elsevierStylePara elsevierViewall">Hans Jonas&#44; com a sua &#233;tica da responsabilidade<a class="elsevierStyleCrossRef" href="#bib0140"><span class="elsevierStyleSup">9</span></a>&#44; adverte que o que nos distingue aos humanos dos animais &#233; um trip&#233; constitu&#237;do pelo utens&#237;lio&#44; pela imagem e pelo t&#250;mulo&#46; O utens&#237;lio &#233; a t&#233;cnica&#59; a imagem &#233; a capacidade de representar a realidade atrav&#233;s das artes&#44; e o t&#250;mulo &#233; a consci&#234;ncia da transcend&#234;ncia&#44; a representa&#231;&#227;o da morte que lhe situa numa dimens&#227;o que vai al&#233;m da sua pr&#243;pria exist&#234;ncia&#46; Facilmente se conclui que&#44; embora no relativo &#224; t&#233;cnica a dist&#226;ncia com os animais &#233; not&#225;vel&#44; cada vez se frequentam menos as artes &#8211; as humanidades &#8211; e o sentido da transcend&#234;ncia est&#225; quase abolido&#46; As consequ&#234;ncias s&#227;o funestas&#44; porque n&#227;o se frequentando &#171;o t&#250;mulo&#187;&#44; porta da transcend&#234;ncia&#44; &#233; dif&#237;cil manter o sentido de miss&#227;o e a necessidade de sentir&#8208;se &#250;til neste mundo&#44; como parte da felicidade que perseguimos&#46;</p><p id="par0205" class="elsevierStylePara elsevierViewall">Esta preocupa&#231;&#227;o human&#237;stica deveria ser di&#225;ria no m&#233;dico e n&#227;o apenas em circunst&#226;ncias finais&#44; perante a morte&#46; Quem&#44; no dia&#8208;a&#8208;dia&#44; n&#227;o sabe atender um paciente considerando a dimens&#227;o humana do mesmo &#8211; ponderando seu ser pessoal e &#250;nico &#8211; tamb&#233;m&#44; no momento da morte&#44; se encontrar&#225; desarmado&#46; Quem tudo quer consertar com t&#233;cnica &#8211; seja esta troca de medicamentos&#44; solicita&#231;&#227;o de sofisticados exames ou terap&#234;uticas revolucion&#225;rias &#8211;&#44; tamb&#233;m no momento final proceder&#225; de igual modo&#46; Surge ent&#227;o a decep&#231;&#227;o de quem&#44; praticando uma fidelidade cega e irracional &#224; t&#233;cnica&#44; verdadeiro fanatismo&#44; repara que a t&#233;cnica falha&#46; J&#225; disse algu&#233;m&#44; em linguagem vital&#44; que a parceria com a t&#233;cnica muito tem de paix&#227;o arrebatadora&#44; que&#44; embriagando os amantes&#44; conduz fatalmente &#224; infidelidade com o passar do tempo&#46; Quem n&#227;o cuida do seu paciente do dia&#8208;a&#8208;dia&#44; com humanismo e ci&#234;ncia&#44; n&#227;o saber&#225; cuidar do moribundo&#46;</p><p id="par0210" class="elsevierStylePara elsevierViewall">Facilmente se entende como&#44; neste contexto&#44; o problema de como atuar perante um doente assim chamado terminal &#8211; valha incluir aqui tamb&#233;m a eutan&#225;sia&#44; distan&#225;sia&#44; ortotan&#225;sia e todas as varia&#231;&#245;es sobre o mesmo tema &#8211; gera perplexidades e discuss&#245;es infind&#225;veis&#46; &#201; um di&#225;logo de surdos&#44; onde a quest&#227;o &#233; acertar a sintonia&#44; falar o mesmo idioma&#44; o que infelizmente n&#227;o acontece&#46; Os t&#233;cnicos parecem solicitar solu&#231;&#245;es pr&#233;&#8208;fabricadas&#44; tamb&#233;m t&#233;cnicas&#44; para atuar&#46; Quem fez de tudo t&#233;cnica &#8211; toda sua atua&#231;&#227;o m&#233;dica &#8211; pretende tamb&#233;m tornar t&#233;cnica sua conduta perante a morte&#46; &#201; gritante o absurdo da situa&#231;&#227;o&#44; j&#225; que o que na verdade se exige &#233; uma postura que ultrapassa a t&#233;cnica&#46; Elaborar um manual de casu&#237;stica &#8211; um vade&#8208;m&#233;cum t&#233;cnico para saber como comportar&#8208;se nestes casos &#8211; seria algo assim como confeccionar um manual de &#171;sintomas e rem&#233;dios&#187; para um balconista de farm&#225;cia&#46; Obviamente&#44; &#233; preciso muito mais para diagnosticar e prescrever a terap&#234;utica adequada&#46; Semelhante despropor&#231;&#227;o existe quando se pretende &#171;reduzir &#224; t&#233;cnica as atitudes perante a morte&#187;&#46;</p><p id="par0215" class="elsevierStylePara elsevierViewall">O m&#233;dico precisa&#44; para abordar estes temas &#8211; que s&#227;o ultra&#8208;t&#233;cnicos&#44; v&#227;o al&#233;m da pura prepara&#231;&#227;o cient&#237;fica &#8211;&#44; de um embasamento &#233;tico&#44; de forma&#231;&#227;o e conhecimento human&#237;stico e filos&#243;fico&#46; Somente poder&#225; se encontrar solu&#231;&#227;o para os dilemas que s&#227;o apresentados&#44; quando sintonizamos e falamos a mesma linguagem&#46; S&#227;o dilemas de ordem filos&#243;fica&#44; que atingem o ser humano como um todo&#59; como tal&#44; devem ser respondidos e isto orientar&#225; em cada caso o m&#233;dico no seu posicionamento&#46; O problema que nos ocupa &#8211; a morte &#8211; e todos os seus sat&#233;lites &#8211; a dor&#44; o sofrimento&#44; a dignidade de homem &#8211; s&#227;o quest&#245;es &#171;insol&#250;veis na t&#233;cnica&#187;&#46; Como as vitaminas e os rem&#233;dios&#44; precisam do meio adequado para dissolver&#8208;se e atuar com efic&#225;cia&#46; No caso destas verdades&#44; a solubilidade das mesmas deve ser garantida pelo meio que o m&#233;dico possui&#58; forma&#231;&#227;o human&#237;stica&#46; S&#227;o&#44; pois&#44; verdades &#171;humano&#8208;sol&#250;veis&#187; e nunca &#171;t&#233;cnico&#8208;sol&#250;veis&#187;&#46;</p><p id="par0220" class="elsevierStylePara elsevierViewall">A forma&#231;&#227;o &#233;tica do m&#233;dico &#233; uma necessidade imperiosa para construir s&#243;lidos alicerces&#44; sobre os quais se possa apoiar um modo coerente de atua&#231;&#227;o&#46; Se carecer dela&#44; o m&#233;dico praticar&#225; uma &#233;tica de ocasi&#227;o&#44; ignorando os fundamentos&#44; e com a possibilidade frequente de errar&#44; mesmo com a melhor boa vontade&#46; Para uma atua&#231;&#227;o &#233;tica&#44; boa vontade n&#227;o &#233; suficiente&#59; &#233; preciso conhecimento dos fundamentos&#44; da natureza humana&#44; da dignidade que dela decorre&#46;</p><p id="par0225" class="elsevierStylePara elsevierViewall">Quando se possui esta base &#233;tica&#44; muitos dos dilemas que a casu&#237;stica traz resolvem&#8208;se com naturalidade&#46; O m&#233;dico n&#227;o se sente na obriga&#231;&#227;o de prolongar a vida&#44; ou de causar a morte&#44; porque sabe que sua fun&#231;&#227;o &#233; atender o paciente de modo digno&#44; estar a servi&#231;o da vida e aliviar as dores e sofrimentos&#46; Saber&#225; rejeitar a tenta&#231;&#227;o de erigir&#8208;se em senhor da vida ou da morte&#44; porque n&#227;o &#233; este seu papel&#46; A &#233;tica coloca&#8208;nos na dimens&#227;o certa&#44; delimita nossa fun&#231;&#227;o&#44; amplia os horizontes da miss&#227;o que v&#227;o al&#233;m da t&#233;cnica&#44; prepara&#8208;nos para desempenh&#225;&#8208;la com atitudes humanas&#46;</p><p id="par0230" class="elsevierStylePara elsevierViewall">Naturalmente&#44; a quest&#227;o &#233;tica &#233; algo que compromete&#44; e da&#237; a dificuldade que estas realidades apresentam na hora de serem vividas&#46; O m&#233;dico deve atuar com profissionalismo&#44; saber guardar as dist&#226;ncias&#44; sem envolver&#8208;se de modo desordenado com a afetividade do paciente&#46; O carinho&#44; a dedica&#231;&#227;o&#44; a aten&#231;&#227;o privilegiada do m&#233;dico n&#227;o implica sucumbir &#224;s emo&#231;&#245;es&#46; Isso &#233; norma cl&#225;ssica da boa conduta m&#233;dica&#46; Mas&#44; por outro lado&#44; o m&#233;dico n&#227;o pode prescindir da sua condi&#231;&#227;o de homem e muito menos da condi&#231;&#227;o humana do paciente&#46; Por isso&#44; tem de saber entrar nessa esfera que foge da t&#233;cnica e que diz respeito &#224;s realidades vitais&#44; onde est&#225; inclu&#237;da a morte&#44; falando a mesma linguagem&#44; em sintonia de quem est&#225; no mesmo barco&#46; Aqui&#44; &#233; onde as coisas se complicam&#58; ningu&#233;m d&#225; o que n&#227;o tem&#46;</p><p id="par0235" class="elsevierStylePara elsevierViewall">Quem nunca se preocupou com estes temas ou na pr&#225;tica e na sua vida pessoal pouco lhe afetam&#44; porque os estocou num recanto pouco frequentado da consci&#234;ncia&#44; carecer&#225; de recursos&#44; nada ter&#225; a oferecer&#46; Da&#237; a insatisfa&#231;&#227;o do paciente&#44; quando n&#227;o a decep&#231;&#227;o&#44; em receber conselhos standard&#44; plastificados&#44; provenientes de quem patentemente n&#227;o os vive&#46; A &#233;tica&#44; quando se vive&#44; acaba modificando a pr&#243;pria vida e da&#237; vem a credibilidade&#44; a for&#231;a do exemplo&#46; N&#227;o h&#225; &#233;tica m&#233;dica sem &#233;tica pessoal&#44; quer dizer&#44; sem que a &#233;tica deixe de atingir plenamente o m&#233;dico como pessoa&#46; As estruturas s&#227;o o reflexo do que os indiv&#237;duos levam dentro de si&#46; Esse &#233; o verdadeiro desafio que nos coloca a considera&#231;&#227;o da insufici&#234;ncia t&#233;cnica perante o paciente que enfrenta o transe da morte&#46; &#171;Ser um profissional &#233; mais do que ser um t&#233;cnico&#46; &#201; algo enraizado na nossa consci&#234;ncia moral&#44; pois somente quem tem a vontade e a capacidade de dedicar&#8208;se aos outros&#44; e procurar um bem mais alto&#44; pode fazer profiss&#227;o p&#250;blica do seu modo de vida&#187;<a class="elsevierStyleCrossRef" href="#bib0145"><span class="elsevierStyleSup">10</span></a>&#46;</p></span><span id="sec0030" class="elsevierStyleSection elsevierViewall"><span class="elsevierStyleSectionTitle" id="sect0050">Cuidados paliativos&#58; o que os outros n&#227;o querem &#40;n&#227;o sabem&#41; fazer&#63;</span><p id="par0240" class="elsevierStylePara elsevierViewall">A nossa vida &#233; feita de hist&#243;rias&#46; S&#227;o as viv&#234;ncias as que marcam e definem o nosso perfil e alimentam nossa exist&#234;ncia&#46; Somente depois vamos buscar as ideias&#44; o embasamento &#8211; o referencial te&#243;rico&#44; como dizem os pesquisadores &#8211; que sustenta e ordena as viv&#234;ncias&#46;</p><p id="par0245" class="elsevierStylePara elsevierViewall">Talvez por isto&#44; enquanto revisava os t&#243;picos que aqui se recolhem e com os quais venho lidando h&#225; muitos anos<a class="elsevierStyleCrossRef" href="#bib0150"><span class="elsevierStyleSup">11</span></a>&#44; uma hist&#243;ria veio &#224; minha lembran&#231;a&#46; Foi anos atr&#225;s&#44; conversando com um amigo m&#233;dico que se dedica aos cuidados paliativos num pa&#237;s da Europa&#46; Perguntei&#8208;lhe como tinha decidido trabalhar nessa &#225;rea&#46; Ele sorriu e respondeu com uma simplicidade esmagadora&#58; &#171;N&#227;o pense voc&#234; que eu tinha voca&#231;&#227;o para fazer cuidados paliativos&#44; ou que isto era o meu sonho&#46; Na verdade&#44; sou geriatra de forma&#231;&#227;o e o que sempre fiz foi dedicar&#8208;me ao meu paciente com afinco&#46; Com o tempo&#44; reparei que&#44; ao cuidar do meu paciente at&#233; o final&#44; olhei em volta e todos os m&#233;dicos que tinham participado na vida dos meus pacientes haviam desaparecido no momento em que eles finalizavam a vida&#46; Fiquei sozinho&#46; Na verdade&#44; me surpreendi praticando paliativos&#46; Como voc&#234; v&#234;&#44; foi apenas uma consequ&#234;ncia da minha dedica&#231;&#227;o&#46; E ver que ningu&#233;m estava l&#225; para fazer isso&#46; Mais nada&#187;&#46;</p><p id="par0250" class="elsevierStylePara elsevierViewall">Praticar os cuidados paliativos &#233; decorr&#234;ncia de quem&#44; ao longo da sua atua&#231;&#227;o m&#233;dica&#44; soube ter o paciente como foco principal do seu atuar&#46; O paciente&#44; repito&#44; e n&#227;o a doen&#231;a&#46; Requer uma prud&#234;ncia cl&#237;nica que ilumina as prioridades a serem tomadas&#46; Gawande explica&#8208;o com clareza&#58; &#171;A diferen&#231;a entre os cuidados m&#233;dicos padr&#227;o e os cuidados paliativos n&#227;o &#233; a diferen&#231;a entre tratar e n&#227;o fazer nada&#46; A diferen&#231;a est&#225; nas prioridades&#46; Na medicina normal&#44; o objetivo &#233; prolongar a vida&#46; Sacrificamos a qualidade da exist&#234;ncia no presente &#8211; realizando cirurgias&#44; oferecendo quimioterapia&#44; colocando na UTI &#8211; em troca da chance de ganhar mais tempo no futuro&#46; Nos cuidados paliativos&#44; se ajuda o paciente com doen&#231;as letais a terem a vida mais plenas que podem ter&#44; concentrando&#8208;se em objetivos como eliminar a dor&#44; preservar as faculdades mentais o maior tempo poss&#237;vel&#44; possibilitar que tenha uma vida que se aproxime do normal&#46; A prioridade nos paliativos n&#227;o &#233; viver mais&#44; mas viver melhor&#187;<a class="elsevierStyleCrossRef" href="#bib0105"><span class="elsevierStyleSup">2</span></a>&#46;</p><p id="par0255" class="elsevierStylePara elsevierViewall">A &#171;convers&#227;o&#187; deste autor&#44; cirurgi&#227;o de forma&#231;&#227;o&#44; aos cuidados paliativos fez com que se debru&#231;asse sobre a pesquisa&#46; Encontra estudos variados que mostram que pacientes com doen&#231;as terminais vivem mais tempo quando colocados em programa de paliativos&#44; do que quando tratados com medicina tradicional mediante cuidados oncol&#243;gicos normais&#46; O autor &#8211; que pensava que os paliativos aceleravam a morte &#8211; comprova que n&#227;o &#233; assim&#44; que vivem melhor e alguns vivem at&#233; mais tempo&#46; E conclui&#58; &#171;li&#231;&#227;o zen&#44; voc&#234; vive mais tempo quando para de tentar viver por mais tempo&#187;&#46;</p><p id="par0260" class="elsevierStylePara elsevierViewall">Mas a pr&#225;tica dos cuidados paliativos n&#227;o &#233; &#8211; como erroneamente se interpreta &#8211; adquirir novas habilidades e compet&#234;ncias t&#233;cnicas&#44; como um elemento acrescentado &#224; pr&#225;tica habitual da medicina&#46; Algo assim como um cirurgi&#227;o que aperfei&#231;oa sua t&#233;cnica com um curso de cirurgia laparosc&#243;pica ou rob&#243;tica&#46; Praticar cuidados paliativos &#233; algo que qualquer m&#233;dico poderia &#8211; e deveria &#8211; saber fazer&#44; se investiu tempo em refletir e praticar sobre todas as considera&#231;&#245;es que at&#233; aqui foram enumeradas e exaustivamente analisadas&#46; Quer dizer&#44; se soube construir&#44; independente da sua especialidade m&#233;dica&#44; uma postura integral&#44; &#233;tica&#44; realista&#44; impregnada de ci&#234;ncia e arte&#44; dedicada ao bem&#8208;estar do paciente&#46;</p><p id="par0265" class="elsevierStylePara elsevierViewall">O desafio n&#227;o &#233; pequeno como&#44; mais uma vez&#44; adverte Gawande&#46; &#171;O problema com a medicina e as institui&#231;&#245;es geradas para cuidar dos doentes e dos idosos n&#227;o &#233; o fato de terem uma vis&#227;o incorreta que d&#225; sentido &#224; vida&#46; O problema &#233; que praticamente n&#227;o t&#234;m vis&#227;o nenhuma&#46; O foco da medicina &#233; estreito&#46; Os profissionais da &#225;rea m&#233;dica concentram&#8208;se na repara&#231;&#227;o da sa&#250;de&#44; n&#227;o no sustento da alma&#46; Por&#233;m &#8211; e esse &#233; o doloroso paradoxo &#8211;&#44; decidimos que s&#227;o esses os profissionais que devem definir a maneira como vivemos nossos &#250;ltimos dias&#46; Por mais de meio s&#233;culo&#44; tratamos as prova&#231;&#245;es das doen&#231;as&#44; do envelhecimento e da mortalidade como quest&#245;es t&#233;cnicas&#46; Tem sido um experimento de engenharia social&#44; colocando nossos destinos nas m&#227;os de pessoas valorizadas mais por suas capacidades t&#233;cnicas do que por sua compreens&#227;o das necessidades humanas&#187;<a class="elsevierStyleCrossRef" href="#bib0105"><span class="elsevierStyleSup">2</span></a>&#46;</p><p id="par0270" class="elsevierStylePara elsevierViewall">Reconhe&#231;o que a conclus&#227;o &#224; qual Gawande chega me conquistou&#46; &#201; o cirurgi&#227;o experiente&#44; que enxerga o cuidado com o mesmo rigor profissional que as interven&#231;&#245;es cir&#250;rgicas&#44; e que&#44; portanto&#44; ambos procedimentos requerem um reconhecimento adequado&#44; tamb&#233;m financeiro&#46; &#171;Considerando que algumas dessas conversas &#40;dos cuidados paliativos&#41; precisam ser longas&#44; muitos argumentam que o problema&#8208;chave tem sido os incentivos financeiros&#58; pagamos aos m&#233;dicos para que fa&#231;am quimioterapia e cirurgias&#44; mas n&#227;o para que dediquem seu tempo a determinar quando n&#227;o s&#227;o aconselh&#225;veis&#46; Temos aqui uma quest&#227;o ainda n&#227;o resolvida&#58; qual &#233; a verdadeira fun&#231;&#227;o da medicina e para que dever&#237;amos estar pagando aos m&#233;dicos&#63;</p><p id="par0275" class="elsevierStylePara elsevierViewall">Neste ponto&#44; a minha identifica&#231;&#227;o com o autor foi total&#44; pois n&#227;o s&#227;o poucas as vezes que tenho afirmado&#44; em aulas e confer&#234;ncias&#44; que enquanto o mercado mantenha altos investimentos em tecnologia&#44; mas considere a humaniza&#231;&#227;o da medicina como um voluntariado apenas louv&#225;vel&#44; n&#227;o vamos nunca mudar o sistema&#46; O gestor gasta em aparelhos&#44; mas fecha o or&#231;amento quando se trata de educa&#231;&#227;o&#44; de sensibilizar os profissionais da sa&#250;de para os cuidados reais&#44; para &#171;o que conta no final&#187;&#44; como diz o t&#237;tulo do livro de Gawande&#46; De novo&#44; o sistema entrega o produto para o qual foi desenhado&#46; Um desastre&#46;</p><p id="par0280" class="elsevierStylePara elsevierViewall">Os paliativos surgiram nas &#250;ltimas d&#233;cadas para trazer esta dimens&#227;o de cuidado aos pacientes que est&#227;o morrendo&#44; com expectativas limitadas de vida&#46; A especialidade avan&#231;a&#44; mas Gawande n&#227;o v&#234; nisto motivo de comemora&#231;&#227;o&#46; O entusiasmo do cirurgi&#227;o converso aos paliativos &#8211; catalisado pela hist&#243;ria de vida do pai dele&#44; &#233; claro &#8211; leva a conclus&#245;es de vulto&#46; &#171;S&#243; ser&#225; poss&#237;vel comemorar quando todos os cl&#237;nicos tiverem esse tipo de posicionamento com cada pessoa por eles tratada&#59; quando n&#227;o houver mais necessidade de uma especialidade separada&#187;<a class="elsevierStyleCrossRef" href="#bib0105"><span class="elsevierStyleSup">2</span></a>&#46; Eu concordo com ele&#44; mas somente em parte&#46; Se os m&#233;dicos fossem o que se sup&#245;em que t&#234;m de ser&#44; isso seria verdade&#46; Mas a distra&#231;&#227;o e o descuido j&#225; levam d&#233;cadas acumuladas&#46; N&#227;o advogo por deixar os cuidados apenas nas m&#227;os de alguns especialistas&#44; dos assim chamados paliativistas&#44; para que o resto dos m&#233;dicos continuem divertindo&#8208;se com a medicina e esquecendo&#8208;se dos pacientes&#46; N&#227;o me parece uma solu&#231;&#227;o sustent&#225;vel&#44; porque estar&#237;amos certificando o fracasso da medicina como ci&#234;ncia humana&#46; Mas&#44; por ora&#44; que um grupo de m&#233;dicos competentes assuma esta tarefa&#44; e seja como um despertador para todos os outros&#44; uma lembran&#231;a hipocr&#225;tica&#44; parece&#8208;me imprescind&#237;vel&#46; Afinal&#44; a ordem dos fatores que cristaliza em produto alterado leva muito tempo sendo praticada e ensinada&#46; &#201;&#44; talvez&#44; no ensino&#44; nos bancos acad&#234;micos&#44; onde deve se reverter essa ordem equ&#237;voca de fatores&#46;</p></span><span id="sec0035" class="elsevierStyleSection elsevierViewall"><span class="elsevierStyleSectionTitle" id="sect0055">Cuidados paliativos na gradua&#231;&#227;o m&#233;dica&#58; invertendo os fatores para chegar no produto correto</span><p id="par0285" class="elsevierStylePara elsevierViewall">Voltamos ao nosso aforismo inicial&#44; interrogando&#8208;nos novamente sobre o processo que fabrica o produto equivocado&#46; &#201; evidente que uma proposta de giro copernicano no aforismo deve passar pela forma&#231;&#227;o m&#233;dica&#44; pelos anos de gradua&#231;&#227;o universit&#225;ria&#46;</p><p id="par0290" class="elsevierStylePara elsevierViewall">O curriculum de gradua&#231;&#227;o m&#233;dica &#233; governado por uma variante do princ&#237;pio de Arquimedes&#58; assim como 2 corpos n&#227;o podem ocupar o mesmo lugar num flu&#237;do&#44; &#233; preciso optar por uma s&#233;rie de conhecimentos e deixar outros de lado&#46; Esta harmonia&#44; t&#227;o dif&#237;cil de estabelecer como necess&#225;ria&#44; requer integrar os conhecimentos e colocar os ingredientes necess&#225;rios do saber m&#233;dico na propor&#231;&#227;o correta<a class="elsevierStyleCrossRef" href="#bib0155"><span class="elsevierStyleSup">12</span></a>&#46;</p><p id="par0295" class="elsevierStylePara elsevierViewall">Selecionar dentre esses conhecimentos&#44; aqueles que s&#227;o absolutamente indispens&#225;veis para um aluno no per&#237;odo de forma&#231;&#227;o&#44; &#233; tarefa que exige esfor&#231;o&#46; O bom senso e a compet&#234;ncia docente indicam que o objetivo n&#227;o &#233; formar m&#233;dicos que sejam capazes de armazenar a maior capacidade de conhecimento&#44; mas garantir que nenhum deles ir&#225; ao mercado de trabalho com car&#234;ncias essenciais&#46; &#201; preciso decidir e exigir aquilo que um m&#233;dico n&#227;o pode deixar de saber&#33;</p><p id="par0300" class="elsevierStylePara elsevierViewall">A faculdade deve formar m&#233;dicos generalistas bem preparados &#8211; o que poder&#237;amos denominar bons m&#233;dicos &#171;c&#233;lulas tronco&#187; &#8211;&#44; que depois tenham capacidade para diferenciar&#8208;se em especialistas competentes&#46; Se a forma&#231;&#227;o &#233; deficiente&#44; as &#171;c&#233;lulas tronco&#187; deixar&#227;o a desejar e a especializa&#231;&#227;o posterior n&#227;o suprir&#225; os defeitos de base<a class="elsevierStyleCrossRef" href="#bib0160"><span class="elsevierStyleSup">13</span></a>&#46;</p><p id="par0305" class="elsevierStylePara elsevierViewall">&#201; neste ponto onde os cuidados paliativos se apresentam como cen&#225;rio f&#233;rtil na educa&#231;&#227;o dos estudantes de medicina&#44; pois atrav&#233;s deles &#233; poss&#237;vel adquirir compet&#234;ncias&#44; saberes&#44; conhecimentos e habilidades que todo m&#233;dico deve possuir&#46;</p><p id="par0310" class="elsevierStylePara elsevierViewall">Educadores concordam sobre a necessidade de se ensinar cuidados paliativos na gradua&#231;&#227;o e em programas de resid&#234;ncia e&#44; por isso&#44; a disciplina tem sido introduzida no curr&#237;culo de muitas escolas m&#233;dicas em todo o mundo<a class="elsevierStyleCrossRef" href="#bib0165"><span class="elsevierStyleSup">14</span></a> O ensino dos cuidados paliativos n&#227;o consta na grade curricular das escolas m&#233;dicas brasileiras e os m&#233;dicos brasileiros n&#227;o s&#227;o educados para lidar com a terminalidade da vida e com o sofrimento&#44; algo que o mercado de trabalho solicita cada vez com maior insist&#234;ncia<a class="elsevierStyleCrossRef" href="#bib0170"><span class="elsevierStyleSup">15</span></a>&#46;</p><p id="par0315" class="elsevierStylePara elsevierViewall">No nosso meio&#44; existem v&#225;rios relatos de atividades did&#225;ticas extracurriculares em cuidados paliativos com estudantes de medicina e residentes&#44; que mostram importante impacto de aprendizado<a class="elsevierStyleCrossRefs" href="#bib0175"><span class="elsevierStyleSup">16&#8211;19</span></a>&#46;</p><p id="par0320" class="elsevierStylePara elsevierViewall">Os estudantes aprendem a ver o paciente como foco principal no atendimento&#44; adquirem familiaridade com o mundo do paciente e buscam conhecer o contexto em que vive e suas cren&#231;as&#44; ferramentas essenciais para um bom cuidado&#46; Quando os residentes come&#231;am a se sentir confort&#225;veis em cuidados paliativos&#44; sua performance melhora intensamente em outros campos de a&#231;&#227;o menos complexos<a class="elsevierStyleCrossRef" href="#bib0160"><span class="elsevierStyleSup">13</span></a>&#46;</p><p id="par0325" class="elsevierStylePara elsevierViewall">Igualmente aprendem a lidar com os familiares&#44; compreendem a import&#226;ncia de permitir que membros da fam&#237;lia falem sobre os sentimentos do paciente e sobre seus pr&#243;prios sentimentos e dificuldades&#46; Uma ocorr&#234;ncia relativamente comum atraiu a aten&#231;&#227;o &#8211; algumas vezes&#44; quando pacientes tinham dificuldades em comparecer ao consult&#243;rio&#44; os familiares iam sozinhos para obter conselhos e prover a continuidade dos cuidados&#46; Alguns familiares expressavam sua gratid&#227;o atrav&#233;s de cartas&#44; telefonemas ou mesmo visitando o ambulat&#243;rio ap&#243;s a morte do paciente&#46; Ocasionalmente&#44; retornavam com uma &#250;nica necessidade&#44; compartilhar sentimentos e experi&#234;ncias relacionados aos momentos finais do paciente<a class="elsevierStyleCrossRef" href="#bib0160"><span class="elsevierStyleSup">13</span></a>&#46;</p><p id="par0330" class="elsevierStylePara elsevierViewall">A atua&#231;&#227;o em cuidados paliativos desenvolve tamb&#233;m habilidades que n&#227;o se aprendem habitualmente na universidade&#44; como melhorar a capacidade de comunica&#231;&#227;o&#46; Os m&#233;dicos n&#227;o aprendem a comunicar&#8208;se durante a sua forma&#231;&#227;o e muitos pensam que o far&#227;o empiricamente&#46; A pr&#225;tica demonstra que comunica&#231;&#227;o &#233; uma habilidade a ser desenvolvida e aprimorada&#44; assim como qualquer conhecimento t&#233;cnico&#44; mas em um cen&#225;rio com pacientes delicados e familiares desgastados pelo contexto&#44; a comunica&#231;&#227;o deve ser uma aliada&#44; esclarecendo as d&#250;vidas das fam&#237;lias&#44; transmitindo seguran&#231;a e dizer com sinceridade que nem tudo tem explica&#231;&#227;o&#44; mas que o nosso intuito &#233; deixar o paciente confort&#225;vel&#46; Alguns m&#233;dicos evitam esses momentos&#44; temem as perguntas para as quais n&#227;o tem respostas&#46; Ou mostram&#8208;se impacientes para explicar&#44; repetidamente&#44; o quadro do paciente&#44; uma vez que n&#227;o &#233; raro a fam&#237;lia mostrar&#8208;se pouco conformada quanto &#224; impossibilidade de cura&#46; Essa habilidade de comunica&#231;&#227;o &#233; uma qualidade do m&#233;dico que pratica os cuidados paliativos e as fam&#237;lias&#44; notando a empatia do profissional&#44; tendem a demonstrar confian&#231;a e expor melhor seus anseios<a class="elsevierStyleCrossRef" href="#bib0160"><span class="elsevierStyleSup">13</span></a>&#46;</p><p id="par0335" class="elsevierStylePara elsevierViewall">Aprende&#8208;se&#44; ao mesmo tempo&#44; o bom senso&#44; o liberalismo que o m&#233;dico tem de praticar&#46; Assim&#44; n&#227;o seguir protocolos restritos por estar focados no paciente&#46; Se ele solicitar a alta m&#233;dica para passar seus &#250;ltimos e preciosos momentos com sua fam&#237;lia&#44; deitado em sua cama e em um ambiente familiar&#44; e tiver condi&#231;&#245;es m&#237;nimas para tal&#44; ele ser&#225; atendido&#46; Do mesmo modo em rela&#231;&#227;o aos caprichos alimentares&#44; orientar as fam&#237;lias quanto &#224; libera&#231;&#227;o da dieta&#44; qualidade de vida n&#227;o apenas viver sem dor ou desconfortos&#44; mas sentir prazer no paladar<a class="elsevierStyleCrossRef" href="#bib0160"><span class="elsevierStyleSup">13</span></a>&#46;</p><p id="par0340" class="elsevierStylePara elsevierViewall">Os ambulat&#243;rios did&#225;ticos de cuidados paliativos mostram&#8208;se como um cen&#225;rio &#250;nico&#44; onde &#233; poss&#237;vel promover o perd&#227;o&#44; a harmonia familiar&#44; comunicando que a t&#227;o temida morte est&#225; iminente&#46; Aprendem&#8208;se&#44; na pr&#225;tica&#44; que quando os demais m&#233;dicos que passaram pelo paciente j&#225; n&#227;o o acompanham mais&#44; o m&#233;dico que pratica os cuidados paliativos est&#225; presente&#44; auxiliando n&#227;o apenas na parte m&#233;dica&#44; mas em contato com a fam&#237;lia&#44; sentindo&#8208;se parte dela&#46; Os cuidados paliativos ensinam compaix&#227;o e a sensa&#231;&#227;o do dever cumprido&#46; &#201; conseguir segurar a m&#227;o do paciente e dizer &#171;foi um prazer cuidar do senhor&#187;&#44; sem culpa e sem nenhum sentimento de impot&#234;ncia<a class="elsevierStyleCrossRef" href="#bib0160"><span class="elsevierStyleSup">13</span></a>&#46;</p><p id="par0345" class="elsevierStylePara elsevierViewall">Certamente&#44; o ensino das Humanidades &#40;literatura e artes em geral&#41;&#44; o qual vem sendo introduzido em muitas escolas m&#233;dicas&#44; com o objetivo de proporcionar um maior conhecimento do ser humano e preparar estudantes e jovens m&#233;dicos a lidar melhor com as quest&#245;es que emergem no cen&#225;rio de cuidados paliativos&#44; tem&#8208;se mostrado&#44; de alguma forma&#44; ben&#233;fico&#46; No entanto&#44; esse ensinamento somente &#233; &#250;til quando realizado paralelamente &#224; pr&#225;tica e proporcionado por profissionais que consigam transitar livremente pelos 2 mundos &#8211; o das artes e o da vida real&#46; Assim&#44; tais profissionais permitem a integra&#231;&#227;o de conhecimentos gra&#231;as a seus exemplos e orienta&#231;&#245;es&#44; os quais remetem &#224; ideia de que n&#227;o existem regras prontas &#8211; &#233; necess&#225;rio refletir e criar em cada situa&#231;&#227;o vivida<a class="elsevierStyleCrossRef" href="#bib0160"><span class="elsevierStyleSup">13</span></a>&#46;</p><p id="par0350" class="elsevierStylePara elsevierViewall">Colocando ponto final a estas reflex&#245;es&#44; outra lembran&#231;a acode &#224; minha mente&#46; As ligas acad&#234;micas que&#44; h&#225; 40 anos&#44; existiam na faculdade onde cursei medicina&#44; na Casa de Arnaldo&#46; Eram apenas 3&#44; n&#250;mero desprez&#237;vel comparado com a prolifera&#231;&#227;o de ligas que hoje vemos&#46; Eram 3&#44; mas com um prop&#243;sito docente muito claro e objetivo&#46; No primeiro ano pod&#237;amos frequentar a liga de combate &#224; s&#237;filis&#44; onde o objetivo n&#227;o era alta pesquisa sobre o treponema&#44; mas simplesmente aprender a dar uma inje&#231;&#227;o intramuscular&#46; Habilidade modesta&#44; mas de suma import&#226;ncia&#46; No terceiro ano&#44; &#233;ramos convidados a frequentar a liga de combate &#224; febre reum&#225;tica&#46; Pouco havia de combate&#44; a n&#227;o ser as mesmas inje&#231;&#245;es que t&#237;nhamos aprendido a dar na liga da s&#237;filis&#44; mas havia um aprendizado riqu&#237;ssimo&#58; a ausculta card&#237;aca&#44; em cima de uma variedade infinita de sopros card&#237;acos que os pacientes acometidos da pancardite reum&#225;tica apresentavam&#46; Finalmente&#44; no quarto ano&#44; t&#237;nhamos a op&#231;&#227;o de frequentar a liga da pediatria&#44; tamb&#233;m com um objetivo t&#227;o claro como importante&#58; aprender puericultura&#46; Ainda lembro o saudoso professor E&#46; Marcondes&#44; titular da pediatria&#44; comentar&#58; voc&#234;s j&#225; viram crian&#231;as com todo tipo de doen&#231;as neste hospital&#44; mas s&#227;o capazes de se formar sem saber o que &#233; uma crian&#231;a normal&#33; Para isso servia a liga de pediatria&#44; para conhecer crian&#231;as normais&#44; praticar a puericultura&#44; saber preparar mamadeiras&#44; pesar e medir as crian&#231;as&#44; aprender o esquema de vacina&#231;&#227;o&#46;</p><p id="par0355" class="elsevierStylePara elsevierViewall">E os cuidados paliativos&#63; Postulamos aqui a inclus&#227;o dessa disciplina no curriculum da gradua&#231;&#227;o m&#233;dica&#44; mas sabemos dos problemas que tal articula&#231;&#227;o requer nas congrega&#231;&#245;es docentes e as negocia&#231;&#245;es pol&#237;ticas pelo espa&#231;o de tempo curricular&#46; Quem sabe&#44; o caminho poderia ser fomentar as ligas de cuidados paliativos&#44; pois o impacto docente j&#225; foi mostrado em projetos extracurriculares semelhantes&#46; Com toda a sinceridade&#44; se me perguntam qual &#233; objetivo did&#225;tico de uma liga de transplante ou de psicoterapia breve &#8211; por dar um par de exemplos &#8211;&#44; n&#227;o saberia dizer&#46; Parecem&#8208;me conhecimentos muito espec&#237;ficos&#44; um diletantismo em quem se prepara para ser um bom m&#233;dico &#171;c&#233;lula tronco&#187;&#46; Mas&#44; em se tratando de uma liga de cuidados paliativos&#44; eu a colocaria no mesmo n&#237;vel de aprendizado que as 3 ligas cl&#225;ssicas dos meus anos de estudante&#46;</p><p id="par0360" class="elsevierStylePara elsevierViewall">O aluno aprenderia&#44; nessa liga de cuidados paliativos&#44; atitudes e habilidades que um m&#233;dico n&#227;o pode deixar de saber&#46; Enquanto n&#227;o chega o espa&#231;o curricular&#44; a liga seria uma op&#231;&#227;o convidativa e interessante&#46; 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Información del artículo

ISSN: 15751813
Idioma original: Portugués

DOI:10.1016/j.edumed.2016.07.010

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